Alguns substantivos relativos a determinadas disposições humanas de humor costumam ser insistentemente repetidos quando o físico Sérgio Mascarenhas, 79 anos feitos em maio passado, é o alvo de uma conversa. Entusiasmo, por exemplo. Ou dinamismo. Em parte porque ao longo de sua vida, como observa o empresário José Fernando Perez, 62 anos, também físico e ex-diretor científico da FAPESP (1994-2005), Mascarenhas sempre tenha colocado “essas duas belas qualidades a serviço de duas iniciativas” que o distinguem de forma muito especial no meio da comunidade científica: “a formação de pessoal e a criação de novos fronts institucionais” para o desenvolvimento da ciência no Brasil. “A área de física da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, no final dos anos 1950, a Embrapa Instrumentação Agropecuária, no final da década de 1960, e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no começo dos anos 1970, são algumas das fundamentais criações institucionais de Mascarenhas”, resume Perez, até recentemente professor titular do Instituto de Física da USP em São Paulo.
No quesito formação de pessoal, é tão forte a vinculação do nome de Sérgio Mascarenhas à sua dimensão de educador que Vanderlei Bagnato, 48 anos, professor titular de física na USP de São Carlos, diz que conhecia sua fama muito antes de se tornar aluno da universidade. “Moleque ainda, correndo pelas ruas da cidade, jogando bola, eu já ouvia falar do professor Sérgio Mascarenhas e da unidade de física que estava se instalando na Engenharia.”
Na verdade, Mascarenhas chegara a São Carlos antes mesmo de Bagnato aportar no mundo. Em 1956 ele desembarcou na cidade com a mulher, a física Yvonne P. Mascarenhas, vindos ambos de seu amado Rio de Janeiro natal, porque ele entendera que naquele centro universitário emergente teria uma chance de provocar o desenvolvimento da física do estado sólido, ou física da matéria condensada, área incipiente no Brasil e muito distante do prestígio que desfrutava entre nós a física de partículas, por exemplo – mas, em sua visão, absolutamente estratégica para o país. O jovem carioca de Copacabana percebia, com uma clareza surpreendente para seus verdes anos, “que o futuro da sociedade estava nos semicondutores do estado sólido, aquilo que deu o transistor, e depois a explosão dos computadores”, disse ele numa longa entrevista que concedeu a Pesquisa FAPESP (edição 137, de julho de 2007), logo depois de ganhar o Prêmio Conrado Wessel. Na verdade, essa área da física está nos fundamentos do mundo contemporâneo, porque ela é que está na base dos computadores, da informática, da tecnologia da informação e das telecomunicações.
Mal se instalara, Mascarenhas começou a pensar em abrir as portas dos laboratórios de física para alunos que haviam acabado de entrar no curso ginasial. E tempos depois, no fim dos anos 1960, Vanderlei Bagnato foi um daqueles muitos meninos que ficaram fascinados com o universo excitante que o jovem professor descortinava, impelindo-os suavemente para o mundo da pesquisa científica. “E mais: ele transmitiu a idéia de quanto era necessário a comunidade acadêmica oferecer à comunidade local algo de que é tão capaz, isto é, lhe dar ferramentas para despertar a curiosidade, o interesse geral pelo conhecimento”, diz. Uma lição que, sem ter sido exatamente discípulo de Mascarenhas, dado que se encaminhou para outro campo da física e fez só eventuais disciplinas com ele, Bagnato incorporou muito bem, a julgar por seu trabalho à frente do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof), marcado por um forte caráter educativo e de divulgação da ciência com a população de São Carlos, a par da pesquisa de ponta que ali se faz.
Tanta ênfase no lado educador de Mascarenhas pode gerar a falsa noção de que a pesquisa científica em si não teve tanto peso em seu caminho. Ao contrário, ela sempre teve, principalmente a pesquisa experimental, e, hoje ainda, a investigação que visa determinados aperfeiçoamentos tecnológicos, em especial na área de física médica, ocupa muitas horas de seus dias. É curioso como o jovem que até os 15 ou 16 anos, segundo suas próprias revelações, parecia que iria se encaminhar mal na vida, tão avoado e desinteressado dos estudos se mostrava, faria anos depois as descobertas dos bioeletretos e de novos métodos de dosimetria e datação arqueológica, entre outras, e estabeleceria colaborações importantes com alguns dos mais respeitados físicos do século passado, como Lars Onsager, da Universidade Yale, ganhador do Prêmio Nobel por seu trabalho sobre efeitos físicos fora do equilíbrio. Vale a pena retomar aqui o que disse com muita graça o próprio Mascarenhas a esse respeito, na citada entrevista a Pesquisa FAPESP, depois de qualificar Onsager como um cientista de “visão realmente ampla, interdisciplinar”.
“Ele fez umas equações, um modelo, que diz o seguinte: tudo o que acontece na vida comum são estados de equilíbrio. E esses estados não levam a muita coisa porque não se tem excitações, flutuações fora do equilíbrio. Ele começou a ver que importante na física era também o que saía do equilíbrio. Isso vale para muito mais conceitos e situações, claro, mas Onsager conseguiu relacionar quantitativamente, pela primeira vez, efeitos físicos fora do equilíbrio. Eu apliquei as equações dele para entender quantitativamente aquele efeito que eu descrevera, e publiquei numa revista famosa naquele tempo, Il Nuovo Cimento. As contas que fiz com a equação do Onsager bateram com a parte experimental. E quando Onsager viu o meu trabalho dando base real às equações dele, gostou muito. Quando apresentei o trabalho na Europa, ele foi de uma imensa gentileza. E eu, de repente, me vi sentado à mesa num hotel, na Suíça, explicando as equações de Onsager para Onsager! Nossa Senhora! Só mesmo brasileiro e carioca! Ele calmo, quietinho, não ficou melindrado. Acabei ficando grande amigo dele.”
Mascarenhas publicou com Onsager um dos raros trabalhos dele na área de transições de fase com aparecimento de campos elétricos. “Me orgulho muito disso, porque ele era muito bom e muito generoso. Há cientistas assim e há outros muito arrogantes”, disse. Ele manifesta, aliás, com grande freqüência o reconhecimento à generosidade alheia, quando toda sua vida profissional parece demonstrar que precisamente a generosidade sempre foi uma das marcas de sua prática. E isso, recorrendo ainda à mesma entrevista, em paralelo à “entrega à atividade intelectual incessante, incansável, pragmática em larga medida, junto com uma imaginação fervilhante, um borbulhar de idéias sem fim”, que torna a biografia de Sérgio Mascarenhas “uma das mais ricas e multifacetadas na comunidade científica brasileira”.
Sérgio Mascarenhas graduou-se em química pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1951 e em física pela mesma instituição em 1952. Acumula doutoramento e pós-docs por grandes centros de pesquisa internacionais, entre eles Princeton, Harvard e Londres. No Brasil espalhava experiências educacionais para além de São Paulo, mas voltava sempre a São Carlos, onde hoje, professor aposentado da USP, pode-se contudo encontrá-lo tocando o Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade, laborando a idéia de um grande portal de divulgação científica, ou em andanças pelos laboratórios de física, química e medicina, aperfeiçoando um de seus mais novos inventos, um aparelho para medir de forma não invasiva a pressão intracraniana. Ativo sempre, voltado para a ciência e com imensa preocupação social.
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