Um colegiado com representantes de nove ministérios foi encarregado de uma missão fundamental: fazer com que 12 doenças infecciosas ligadas à pobreza deixem de ser um problema de saúde pública no Brasil ou que parem de ter transmissão entre mãe e filho. Para moléstias como tuberculose, hanseníase, hepatites e Aids, a meta é reduzir o número de casos.O prazo para realizar a tarefa é apertado e se esgota no dia 1º de janeiro de 2030. Algumas das ambições do Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente (Ciedds) parecem utópicas, mas suas propostas estabelecem um horizonte para o país cumprir compromissos assumidos com órgãos multilaterais e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
“Não se trata de erradicar as doenças, mas eliminá-las como problema de saúde pública e reduzi-las a níveis aceitáveis”, explica o coordenador do comitê, o sanitarista Draurio Barreira, diretor do Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites virais e Infecções sexualmente transmissíveis do Ministério da Saúde – as doenças sob seu guarda-chuva estão entre os focos do Ciedds, juntamente com enfermidades como hanseníase, malária e esquistossomose.
Para três moléstias da lista do comitê, o esforço não precisará ser muito grande. A filariose linfática, doença parasitária crônica também conhecida como elefantíase, não tem registros no país desde 2017. Transmitida por pernilongos, teve como última área endêmica quatro municípios pernambucanos: Recife, Olinda, Paulista e Jaboatão dos Guararapes. Há também o tracoma, um tipo de conjuntivite causado por uma bactéria que é frequente em áreas sem saneamento. Em 2019, estava presente em 387 municípios, mas só o estado do Ceará estava acima do limite apontado como aceitável. O terceiro exemplo é a oncocercose, transmitida por insetos, que pode causar cegueira. Ela pode ser controlada com a aplicação do vermífugo ivermectina e há só uma área endêmica no país: o Território Indígena Yanomami.
Já para outras enfermidades, o prazo de apenas sete anos soa irrealista para o tamanho da incumbência. O exemplo mais complicado talvez seja o das geo-helmintíases, doenças causadas por parasitas intestinais presentes no solo, como a ascaridíase ou a ancilostomíase. A ocorrência é maior no Norte e no Nordeste, onde há crianças que morrem ou precisam ser operadas devido a infestações de lombrigas que causam bloqueio intestinal. Mas a sua incidência nem sequer é conhecida – o último inquérito nacional foi concluído em 2015.
A ideia de eliminar um conjunto de doenças até 2030 surgiu no início do ano, quando o departamento dirigido por Draurio Barreira levou à ministra da Saúde, Nísia Trindade, um projeto para reduzir a carga de tuberculose na população brasileira. “A ministra nos desafiou a incluir a hanseníase e outras moléstias”, conta o coordenador do Ciedds. Várias delas estão no rol das doenças negligenciadas, que atingem pessoas e países pobres e, por isso, atraem investimentos insuficientes em prevenção, diagnóstico e tratamento.
A meta para a tuberculose é ousada: reduzir a incidência no país para menos de 10 casos por 100 mil habitantes e o número de mortes para menos de 230 por ano. Os dados mais recentes, de 2019, contabilizam 38 casos por 100 mil habitantes e 45,8 mil mortes. O infectologista Marcos Boulos, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), é pessimista. Ele conta que a vacina BCG só protege contra formas mais graves da doença em crianças e adolescentes e, com o tempo, deixa de conferir imunidade. “É muito difícil eliminar a tuberculose com a população pobre nos centros urbanos vivendo em condições precárias de moradia.” A situação é mais complexa em estados como Amazonas, Acre e Rio de Janeiro, com cerca de 60 casos por 100 mil habitantes, mas há lugares em que o objetivo deverá ser alcançado, como o Distrito Federal, que tem hoje 10,5 casos por 100 mil habitantes.
Boulos, porém, não subestima o efeito de medidas bem articuladas por governos para eliminar doenças. “Tínhamos 8 milhões de casos de malária no Brasil em 1948, e cinco anos depois, em 1953, passamos a ter 50 mil”, conta. Isso ocorreu em um tempo em que países europeus enfrentavam a moléstia e foi resultado de uma abordagem aplicada internacionalmente, baseada no tratamento com cloroquina e na aplicação do pesticida DDT na parede das casas para eliminar os mosquitos. “Quando acabou a malária no mundo desenvolvido, o financiamento para combater a doença nos países pobres diminuiu – e o problema acabou voltando. Tivemos mais de 600 mil casos na década de 1990”, lembra Boulos. A meta do Ciedds é diminuir o número para menos de 68 mil por ano e a quantidade de óbitos para zero até 2030. Em 2020, houve 140 mil casos de malária e 51 mortes. “A decisão política de eliminar a malária passa por reverter as invasões de garimpeiros em áreas indígenas”, afirma o infectologista.
O plano de criar um comitê interministerial se baseou na necessidade de envolver diferentes atores e segmentos no enfrentamento das doenças. A participação de um representante do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação busca afinar os esforços de pesquisa financiados pelo governo federal com as metas a serem alcançadas pelo Ciedds. O engajamento do Ministério da Justiça é essencial para combater as enfermidades dentro do sistema prisional. Da mesma forma, a pasta do Desenvolvimento Social e a dos Povos Indígenas podem facilitar em ações com pessoas em situação de rua e aos povos originários, que também são grupos vulneráveis. “A articulação entre ministérios é bem-vinda e penso que deveria se estender a outras pastas, como a do Meio Ambiente, porque algumas dessas doenças têm vetores ou reservatórios e o manejo ambiental inadequado facilita o aumento do número de casos, e também a das Mulheres, já que mulheres e crianças são os grupos mais afetados por muitas dessas doenças”, afirma a médica Rosa Castália Ribeiro Soares, que foi coordenadora do Programa Nacional de Hanseníase e Doenças em Eliminação do Ministério da Saúde.
O Ministério das Cidades, responsável por projetos de saneamento do governo federal, não faz parte da composição original do Ciedds, mas deve se juntar ao comitê em breve. Investimentos em saneamento foram cruciais para vários países se livrarem dessas enfermidades e tiveram efeito também no Brasil, como na evolução de outro alvo do comitê, a esquistossomose, infecção gerada por vermes da família Schistosoma, transmitida pelo contato com água doce contaminada. Já foi uma das principais endemias do país até a década de 1970 e pode ser controlada por ações educativas e, sobretudo, pelo acesso a saneamento e a medicamentos. “Uma das propostas do comitê é reforçar o investimento em saneamento em 175 municípios que têm uma grande carga dessas doenças e merecem tratamento prioritário”, afirma Barreira.
Hepatites virais A e E podem ter incidência atenuada por investimentos em saneamento, mas há outras estratégias a considerar. No caso da hepatite B, a eliminação é possível, pois a cobertura de vacinas em crianças está próxima dos 100%. Mas ainda há infecção por compartilhamento de agulhas e por via sexual, o que requer ações junto a indivíduos com comportamento de risco. Na hepatite C, a chave é o diagnóstico e o tratamento precoces, pois não há vacina.
A despeito de progressos recentes, algumas doenças na mira do Ciedds vão exigir monitoramento reforçado. Existem ao menos 2 milhões de pessoas com doença de Chagas no Brasil, mas a forma tradicional de transmissão do protozoário Trypanosoma cruzi foi praticamente erradicada com o combate em áreas endêmicas do principal transmissor, o barbeiro Triatoma infestans, e a substituição de casas de pau a pique, próprias para a proliferação do inseto, por outros tipos de construção. Persistem, contudo, casos de transmissão por ingestão, quando o barbeiro contaminado é triturado no processamento de caldo de cana ou de açaí. Um desafio estabelecido pelo Ciedds é eliminar a transmissão vertical, com a realização de exames de diagnóstico em gestantes e a aplicação de medicamentos.
Além da doença de Chagas, o Ciedds quer interromper a transmissão vertical da hepatite B, do HTLV e da sífilis, o que depende de ampliar o diagnóstico pré-natal e aplicar remédios. Há um medicamento antiviral que pode ser utilizado pelas mães contaminadas pela hepatite B a partir do terceiro mês de gestação. A mesma estratégia está disponível para a sífilis. Uma vez diagnosticada em gestantes, pode ser tratada com a aplicação de penicilina benzatina a fim de evitar a transmissão para o feto. Mas nem sempre isso acontece. “Incrivelmente, está aumentando a transmissão vertical de sífilis no país, porque muitos médicos não pedem a sorologia no pré-natal”, critica Marcos Boulos. Esse problema foi resolvido para a Aids. “Os obstetras têm medo de se infectar com o HIV quando fazem partos, então não esquecem de pedir o exame para as gestantes. Com isso, estamos perto de zerar a transmissão, pois 94% das grávidas brasileiras hoje são testadas”, afirma Barreira.
Também se busca eliminar a Aids como um problema de saúde pública. As metas são diagnosticar ao menos 95% das pessoas contaminadas, oferecer tratamento para mais de 95% dos casos detectados e eliminar a carga de vírus de, no mínimo, 95% dos indivíduos tratados – com isso, quebra-se a cadeia de transmissão. Os objetivos em relação ao acesso ao tratamento e à redução da carga viral foram atingidos, mas ainda falta resolver o primeiro elo da cadeia: menos de 90% dos infectados são diagnosticados no país. O vírus HTLV, que tem parentesco com o da Aids, é transmitido de forma semelhante e causa uma moléstia degenerativa caracterizada por problemas de locomoção, concentra vítimas em algumas poucas cidades, como Salvador, São Luís e Recife. A testagem de gestantes foi aprovada recentemente pela comissão nacional de incorporação de tecnologias do Sistema Único de Saúde (SUS), o que amplia as chances de eliminação.
A hanseníase representa um dos principais desafios do Ciedds, pois seus registros não têm diminuído nos últimos anos mesmo com a ampliação do atendimento. “É uma doença da Idade Média. É vergonhoso ainda termos isso no Brasil”, afirma Barreira. O Brasil só é superado pela Índia em registros de hanseníase. Em 2022, contaram-se 19.635 casos novos no país, 7,2% a mais do que em 2021. Os estados com maior incidência foram Mato Grosso (2,4 mil), Maranhão (2,3 mil) e Bahia (1,7 mil). As metas consistem em interromper a transmissão em 99% dos municípios brasileiros, eliminar totalmente a doença em 75% dos municípios e reduzir em 30% o número absoluto de casos novos até 2030. “O número de pessoas incapacitadas vem caindo graças ao aumento no diagnóstico. Mas é preciso ir além e fazer uma busca ativa de pessoas que tiveram contato com os indivíduos contaminados, e adotar a quimioprofilaxia com um medicamento chamado Rifampicina. A OMS preconiza essa solução”, afirma Rosa Castália.
Luiz Carlos Dias, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que os pesquisadores também têm um papel a cumprir no esforço para eliminar doenças negligenciadas. “Desde a década de 1970, não temos um tratamento novo contra a doença de Chagas. Nosso complexo industrial da saúde precisa se engajar na busca por vacinas e medicamentos”, afirma o pesquisador, que coordena no Brasil um consórcio internacional para desenvolver medicamentos contra Chagas, leishmaniose visceral e malária, com investimentos da FAPESP e de organizações como a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi) e Medicines for Malaria Venture (MMV).
Na avaliação do infectologista Reinaldo Salomão, a iniciativa do Ciedds é importante também por uma razão simbólica. Ela ajuda a quebrar um círculo vicioso que perpetua a incidência das doenças negligenciadas. “Nos acostumamos a conviver com moléstias endêmicas como se elas fizessem parte da paisagem do Sul global, mas elas matam uma quantidade enorme de gente e só continuam por aqui porque atingem populações desfavorecidas”, afirma. No final de outubro, Salomão foi um dos organizadores no auditório da FAPESP da assembleia geral da Global Research Collaboration for Infectious Disease Preparedness (Glopid-R), que reúne agências que apoiam pesquisas sobre doenças infecciosas novas ou emergentes. “O foco da Glopid-R são enfermidades com potencial para gerar pandemias, capazes de atrair financiamento e produzir respostas rápidas dos pesquisadores, como ocorreu com o novo coronavírus. Precisamos utilizar esse aprendizado com a Covid-19 para enfrentar de vez as doenças negligenciadas.”
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