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Fisiologia

Dogma derrubado

Pesquisadores recuperam movimentos e reduzem perda de neurônios em ratos com a medula lesada

Em fevereiro de 1996, dez meses após ter sofrido uma queda de um cavalo que o deixou imobilizado em uma cadeira de rodas, sem poder movimentar o corpo do pescoço para baixo, o ator norte-americano Christopher Reeve comentou, em uma entrevista à rede norte-americana de televisão CNN: “Qualquer coisa pode acontecer a qualquer um. Por que eu deveria ser exceção?” O comentário do ator, conhecido no mundo todo por ter representado o Super-Homem no cinema, escapando ileso de prédios que caíam sobre ele, alimentou o medo de as pessoas comuns enfrentarem um destino semelhante após um acidente de carro ou um passeio malogrado de ultraleve que resulte em um golpe sério na coluna.

Outro efeito foi cristalizar a idéia de que a medula espinhal não se regenera – um dos dogmas da medicina. Não é bem assim, ao menos no laboratório. “É só haver um ambiente favorável que os neurônios do sistema nervoso central conseguem se recuperar das lesões”, atesta Francisco Carlos Pereira, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) que ajudou a descobrir uma forma de conter as lesões na medula espinhal, como é chamado o conjunto de feixe de fibras e células nervosas – os neurônios – que percorre o interior da coluna vertebral e conduz os estímulos ligados aos movimentos, às sensações e às reações do corpo.

Em ratos submetidos a lesões controladas de medula espinhal foi possível recuperar 70% dos movimentos e induzir a regeneração de 50% dos neurônios com o uso combinado de três substâncias: um medicamento antidepressivo chamado rolipram, já em uso em seres humanos; uma solução com células de Schwann, que formam a bainha de mielina, camada que recobre as fibras nervosas de modo semelhante à capa de plástico dos fios de telefone; e outra solução com monofosfato cíclico de adenosina (cAMP), um composto que funciona como mensageiro químico no interior das células.

Foi um experimento sofisticado e trabalhoso, realizado no Projeto Miami para a Cura da Paralisia, que ocupa um prédio de seis andares instalado na Universidade de Miami, nos Estados Unidos. Pereira chegou lá como professor do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP em fevereiro de 2000 para um estágio de pós-doutoramento que terminaria em fevereiro de 2002. Nos seis primeiros meses, ele trabalhou com o cultivo de células de camundongos, ratos e seres humanos, incluindo as células de Schwann.

Só então começou o trabalho com os animais. A equipe coordenada por Mary Bunge, da qual também fazia parte o australiano Damien Pearse, bolsista da Christopher Reeve Paralysis Foundation, utilizou 150 ratos, submetidos a uma contusão na medula espinhal na altura do tórax. Para garantir que o grau de lesão fosse semelhante em todos os animais, um aparelho ligado a um computador controlava a intensidade da contusão, que provocou a perda de movimento das coxas, das pernas e dos pés.

Terapia múltipla
Em seguida, os roedores foram divididos em sete grupos, dos quais apenas um não foi tratado com nenhuma substância. Os outros receberam um, dois ou três compostos, com uma diferença sutil: mesmo entre os animais que receberam as três medicações o rolipram foi usado de duas formas, logo após a lesão ou uma semana mais tarde, sempre liberado continuamente por uma minibomba colocada sob a pele do animal. Uma semana depois do início do experimento os ratos tomaram injeções com 2 milhões de células de Schwann no centro da lesão e de cAMP a alguns milímetros das extremidades do ferimento.

De acordo com os resultados, publicados em junho na Nature Medicine, oito semanas depois do início do estudo, os roedores que receberam os três medicamentos (rolipram logo após a lesão e as células de Schwann com cAMP) apresentaram o melhor desempenho: num teste de avaliação da capacidade motora, que vai de 0 (nenhum movimento) a 21 (movimento normal), ganharam nota 14, equivalente a 70% de recuperação dos movimentos. Conseguiram firmar os pés no chão mais facilmente que os animais do grupo controle, que tiraram nota 9 e andavam puxando a perna, sem apoiar a sola dos pés.

O estudo ganhou repercussão: foi noticiado por cerca de 120 emissoras de televisão e 600 de rádio nos Estados Unidos, enquanto, no Brasil, apareceu no Jornal Hoje e no Jornal Nacional, ambos da TV Globo. De repente, a perspectiva de andar de novo voltou a brilhar na mente de quem sofreu um acidente grave e está imobilizado em uma cadeira de rodas. No entanto, a aplicação em seres humanos ainda é uma possibilidade um tanto distante, que exige testes mais refinados.

Das três substâncias adotadas no experimento, só o rolipram “pode rapidamente se tornar uma ferramenta terapêutica a mais, a ser empregado logo após a lesão medular ter ocorrido”, afirma Pereira. Por enquanto, segundo ele, não há evidência de que o cAMP e as células de Schwann cultivadas em laboratório possam ser usados sem prejudicar outras funções do organismo.

Estratégias complementares
No caso dos pacientes crônicos, o mais provável é que tenham de ser adotadas ainda outras estratégias, como a estimulação elétrica dos músculos e a reposição celular, alternativas que ainda se encontram em fase experimental. “Não será uma estratégia isolada que levará à cura das lesões na medula”, afirma o pesquisador da USP.

Cientificamente, os resultados desse estudo são notáveis por atestarem o papel do cAMP na regeneração dos neurônios. Uma das integrantes da equipe, a bióloga Marie Filbin, do Hunter College, em Nova York, já havia demonstrado que esse composto ajudava na recuperação de alguns tipos de neurônios dos nervos espinhais – conjuntos de fibras nervosas que unem o sistema nervoso central (encéfalo e medula espinhal) ao resto do corpo e são responsáveis pela transmissão dos estímulos associados à sensibilidade e à movimentação das pernas, do tronco, dos braços e também da cabeça.

Mas os nervos espinhais fazem parte do sistema nervoso periférico (SNP). Faltava provar se o cAMP, relativamente abundante no interior das células em geral, teria a mesma importância no caso dos neurônios da própria medula espinhal, com feixes de fibras nervosas que se ligam ao encéfalo e fazem parte do sistema nervoso central (SNC).

Até esse momento, pareciam dois mundos com comportamentos bastante diferentes. Nas fibras nervosas do sistema nervoso periférico, a remoção dos fragmentos de mielina destruídos – realizada por células do próprio organismo e pré-requisito para a regeneração dos neurônios – tomava cerca de duas semanas. Nas fibras nervosas do sistema nervoso central, a limpeza da área lesada é mais lenta: estudos feitos por outros grupos demonstraram que nove meses depois de uma lesão de fibras do SNC ainda havia pedaços de mielina.

Essa degeneração leva ao acúmulo de uma proteína conhecida como MAG, glicoproteína de mielina, que inibe o crescimento do axônio, um dos tipos de ramificações dos neurônios. O espanhol Santiago Ramon y Cajal, considerado um dos fundadores da neurologia e ganhador do Prêmio Nobel de Medicina em 1906, junto com o italiano Camillo Golgi, já havia proposto há 80 anos que os neurônios do sistema nervoso central poderiam voltar, sim, a crescer. O problema, segundo ele, é que algo impedia esse crescimento.

Como outras pesquisas mostraram, além de muita MAG, molécula que atrapalha a regeneração das células da medula espinhal, havia muito pouco cAMP na área da lesão. Logo, pensaram os pesquisadores, por que não temperar os neurônios destruídos com cAMP? Aproveitando o experimento, adicionaram o antidepressivo, que havia se mostrado um potente inibidor de uma molécula conhecida como fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa), que dispara o processo de morte das células próximas à lesão. Esperava-se que a lesão não se expandisse tanto com menos TNF em circulação – essa propriedade do rolipram tem sido aproveitada em estudos com seres humanos para deter também o avanço do vírus da Aids e o desenvolvimento da esclerose múltipla, doença degenerativa do sistema nervoso central. Já se sabia também que esse medicamento impede a destruição do cAMP, que, assim, permanece mais tempo em ação.

Deu certo: o rolipram permitiu que a quantidade de cAMP se mantivesse alta na região próxima à contusão, evitando que mais neurônios morressem. A aplicação de 2 milhões de células de Schwann uma semana após a lesão provocada nos animais foi um reforço a essa estratégia, porque se sabia que essas células produzem substâncias capazes de manter os neurônios vivos. Porém essas células só existem nos nervos periféricos – fora da medula. “Essa é a melhor estratégia (de tratamento) que encontramos até agora, após 15 anos de trabalho árduo”, comentou Mary Bunge, a coordenadora da pesquisa, em uma das entrevistas que concedeu após a publicação dos resultados na Nature Medicine.

Mais recentemente, em outro experimento realizado também com ratos, a equipe de Marie Filbin obteve resultados animadores, que reforçam o papel do rolipram no auxílio à recuperação da lesão na medula espinhal. Em uma abordagem um pouco diferente, os pesquisadores do Hunter College enxertaram um pedaço de medula espinhal de embrião de rato logo após causarem uma contusão na medula de roedores adultos. Dessa vez, no entanto, aplicaram o rolipram somente duas semanas mais tarde – tempo considerado bastante longo.

Os animais recuperaram em grande parte a capacidade de controlar e movimentar as patas antes paralisadas, como revela o estudo, publicado na edição de 8 de junho dos Proceedings of the National Academy of Sciences. De acordo com os autores do trabalho, esse é um sinal de que o rolipram pode ajudar na regeneração da medula mesmo passado algum tempo da lesão.

O Projeto
Regeneração da Medula Espinhal (nº 99/08665-2); Modalidade Bolsa no Exterior (Pós-doutorado); Coordenador Francisco Carlos Pereira – ICB/USP; Investimento R$ 91.358,94 (FAPESP)

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