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Fisiologia

Dormir de forma fragmentada é mais nocivo do que dormir pouco, e afeta mais as fêmeas

Estudo com mosca-da-fruta revela que interrupções no sono desorganizam o ritmo circadiano e comprometem a eficiência energética das células, de forma diferente entre os sexos

Intervenção gráfica sobre foto de Winsten Slowswakey

Queda acentuada na capacidade motora, níveis de glicose e triglicerídeos bem abaixo do normal, mitocôndrias trabalhando mais, porém produzindo menos energia. Esse quadro nada saudável foi observado em moscas-da-fruta (Drosophila melanogaster) após períodos de privação de sono e alterações no ciclo circadiano. Esse relógio biológico interno, em ciclos de aproximadamente 24 horas, regula uma variedade de processos fisiológicos, comportamentais e metabólicos nos seres vivos.

Não é possível extrapolar os resultados diretamente para outras espécies, mas a mosca-da-fruta é um modelo muito usado para investigar princípios biológicos mais gerais. Em 2017, o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina reconheceu o trabalho de pesquisadores que identificaram os genes centrais do relógio biológico por meio de estudos em drosófilas. Elas apresentam – assim como os seres humanos – ciclos bem definidos de sono e atividade, diretamente regulados pela luminosidade. No caso dessas moscas, quando expostas à luz constante ou a ciclos luminosos fragmentados, as fêmeas apresentam um desequilíbrio generalizado no organismo, indicativo de estresse metabólico e oxidativo.

“Elas apresentam respostas mais intensas às interrupções no ciclo luminoso do que à exposição contínua à luz”, ressalta a bioquímica Tâmie Duarte, pesquisadora em estágio de pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela é a primeira autora de um estudo publicado em setembro na revista Journal of Experimental Biology. “Com isso, pudemos entender que o sono fragmentado pode ser mais nocivo à saúde do que dormir um pouco menos.”

Os machos da mesma espécie, por sua vez, ainda que afetados, demonstram maior estabilidade do sono e resiliência metabólica, mantendo as funções mitocondriais mais preservadas sob os mesmos esquemas de ciclos de luz. “Isso revela diferenças nas respostas ao ciclo circadiano, ao sono e ao estresse oxidativo entre os sexos, o que pode indicar mecanismos distintos ou alterações específicas em cada um deles”, sinaliza a biomédica Monica Andersen, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que não participou do estudo.

O sono fragmentado pode ser mais nocivo à saúde do que dormir um pouco menos

Especialista em sono humano, ela reforça a importância de trabalhar com os dois sexos nas amostras, que, via de regra, contemplam apenas machos. “O organismo feminino apresenta aspectos fisiológicos e comportamentais diferentes do masculino, o que pode fazer com que responda de outra forma às mudanças no sono e no ciclo circadiano. Especialmente porque, no caso de algumas espécies, há oscilações hormonais ligadas ao ciclo reprodutivo”, explica.

A amostragem restrita a indivíduos machos também incomodava Duarte. Ao revisar a literatura sobre o tema, ela percebeu que, mesmo em estudos com outras espécies – incluindo mamíferos –, a predominância desse sexo é recorrente. Além disso, a falta de um método padronizado impedia comparações robustas entre os trabalhos sobre padrões de sono e modelos de privação. Durante o doutorado, realizado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ela percebeu a necessidade de desenvolver um modelo experimental de privação e fragmentação do sono que comparasse os sexos, evitasse estímulos mecânicos e priorizasse o uso controlado da luz, condição mais próxima das perturbações enfrentadas por humanos. Persistente, levou dois anos para aperfeiçoar o procedimento adotado na pesquisa. O estudo também teve financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs).

O experimento foi conduzido com moscas adultas virgens, para evitar flutuações hormonais e que ponham ovos durante o experimento, criadas em ambiente controlado. Inicialmente, centenas delas foram submetidas a uma alternância entre ciclos com 12 horas de luz e 12 horas de escuridão e outro de escuridão constante, para calibrar seu mecanismo de relógio biológico. No experimento, as moscas foram divididas em três regimes de luz durante três dias consecutivos. O primeiro grupo ficou em ambiente constantemente iluminado. O segundo recebeu quatro interrupções luminosas de uma hora cada um durante a fase escura, configurando uma fragmentação moderada do ritmo biológico. O terceiro impôs uma fragmentação mais severa, com oito eventos de iluminação: quatro eventos de luz apagada durante a fase clara e quatro de luz durante a fase escura, todos com duração de uma hora. “Essa mudança inesperada no período em que a luz deveria permanecer acesa confunde o relógio biológico ainda mais e aumenta a fragmentação do ritmo circadiano”, explica Duarte.

“Ninguém havia testado esse esquema de oito interrupções ou comparado protocolos com diferentes regimes de luz”, afirma a bióloga Cristiane Lenz Dalla Corte, que foi orientadora de Duarte na UFSM e coautora do artigo. “Queríamos entender as diferenças entre os modelos de fragmentação de sono causados pela luz e como eles afetam o comportamento, a resposta ao estresse e o metabolismo energético em ambos os sexos.”

Elas apresentam respostas mais intensas às interrupções no ciclo luminoso

Após o período de exposição irregular, as moscas ficaram dois dias em ciclo normal (12 horas de luz, 12 de escuridão), etapa destinada a avaliar a capacidade de recuperação do sono e da atividade locomotora. Durante todo o experimento, cada indivíduo foi mantido isoladamente em um tubo de vidro com 65 milímetros (mm) de comprimento e 5 mm de diâmetro, todos conectados ao sistema Drosophila Activity Monitoring (DAM2), equipamento que monitora a atividade locomotora por meio de um feixe infravermelho que atravessa o centro do tubo. O critério para marcar episódios de sono é validado para a espécie: o inseto precisa passar ao menos 5 minutos sem cruzar o feixe.

O desenho experimental permite análises segmentadas, com dados gerados durante e após a exposição à luz. O modelo também possibilita avaliar separadamente os efeitos em machos e fêmeas, com monitoramento contínuo que registra as variações a cada minuto. Para Duarte, essa estrutura torna o método versátil, uma vez que outros pesquisadores podem aplicar apenas partes do protocolo e ainda assim obter resultados comparáveis entre diferentes estudos, algo que considera essencial para o avanço das pesquisas sobre sono e ritmos circadianos.

Além da análise do padrão de sono, o estudo envolveu avaliações comportamentais, fisiológicas e bioquímicas, como a quantificação de glicose e triglicerídeos, a atividade de enzimas antioxidantes e a função mitocondrial ao fim dos três dias de tratamento experimental.

Nesse universo experimental em canudinhos de vidro, as drosófilas ressaltam os danos metabólicos causados pela falta de descanso, que provavelmente valem para outros organismos, em ambientes mais complexos. Fica o alerta para proteger as suas noites.

A reportagem acima foi publicada com o título “Luz demais, energia de menos” na edição impressa nº 358 de novembro de 2025.

Artigo científico
DUARTE, T. et al. Sex shapes the systemic response to light-induced sleep disruption in Drosophila melanogaster. Journal of Experimental Biology. v. 228, n. 17, e250079. 2 set. 2025.

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