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Medicina

Doutor esperança

Hematologista paranaense Ricardo Pasquini foi o pioneiro dos transplantes de medula óssea no Brasil

Pasquini: dados detalhados sobre mais de 2 mil transplantes

jader rochaPasquini: dados detalhados sobre mais de 2 mil transplantesjader rocha

Em outubro de 1979, uma equipe brasileira conseguiu realizar o primeiro transplante bem-sucedido de medula óssea na América Latina. A façanha não foi obtida em São Paulo ou no Rio de Janeiro, centros normalmente associados à pesquisa clínica de vanguarda do país. A boa notícia veio de Curitiba, onde um grupo de médicos coordenados pelo hematologista Ricardo Pasquini, do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC/UFPR), realizou o delicado procedimento num paciente com um tipo de câncer de sangue. O pioneirismo do médico paranaense não parou por aí. Em 1993, sua equipe também foi a responsável pela realização do primeiro transplante de células do cordão umbilical na América Latina e, em 1995, fez o primeiro transplante de medula óssea entre indivíduos não aparentados no Brasil.

Essas contribuições fizeram do nome de Pasquini, um curitibano de poucas palavras e muitas ações, uma referência no estudo e tratamento de doenças do sangue e do metabolismo. Hoje, passados 31 anos da conduta pioneira, o Serviço de Transplante de Medula Óssea (STMO) do HC paranaense contabiliza mais de 2 mil procedimentos realizados, cerca de um quinto do total efetuado no Brasil. “Os transplantes se disseminaram pelo país e atualmente mais de 50 centros são capazes de fazê-los”, diz Pasquini. “Em 80% dos casos, os procedimentos são cobertos pelo SUS (Sistema Único de Saúde).” Extremamente organizado, o hematologista mantém uma base de dados com informações detalhadas sobre cada um dos pacientes transplantados em Curitiba. Registros tão duradouros são raros no país e permitem acompanhar a eficiência dos transplantes para o tratamento de distintas doenças.

Filho de uma dona de casa e de um gerente de uma fábrica de louças, Pasquini exibia um pendor para a área biológica desde muito cedo. Aos 4 anos de idade, surpreendeu a irmã Ruth, cinco anos mais velha, com uma frase precocemente assertiva: “Eu quero ser médico”. Nunca mais tirou a ideia da cabeça. Aos 14 anos, ensaiou os primeiros passos rumo ao objetivo. Começou a dar expediente no laboratório de análises clínicas do irmão, Darcy. “Achava tão bom trabalhar e passava as tardes no laboratório”, lembra. O emprego no negócio da família lhe abriu, literalmente, as portas do mundo da medicina. Pôde prestar serviços ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba e estagiar no HC, onde aprendeu novas técnicas laboratoriais. Em 1956, quando entrou aos 18 anos no curso de medicina da UFPR, já tinha mais experiência com certos temas médicos do que a maioria dos colegas.

Na faculdade teve aulas com Paulo Barbosa da Costa, o primeiro hematologista de Curitiba, uma influência para que o jovem universitário se encaminhasse para a mesma disciplina médica. Aluno de destaque, já no segundo ano do curso foi enviado ao Rio de Janeiro para aprender novas técnicas de coagulação do sangue e, mesmo antes de formado, frequentava os congressos de hematologia. “Naquela época, a gente tinha de fazer tudo no laboratório, inclusive os reagentes”, conta. Como ainda não havia sido instituída a residência médica na faculdade, os alunos da graduação ganhavam experiência clínica atuando como voluntários em tempo parcial do HC. Pasquini formou-se em dezembro de 1963 e em março do ano seguinte casou-se.

Pasquini aos 14 anos: trabalho no laboratório de análises do irmão

reprodução Pasquini aos 14 anos: trabalho no laboratório de análises do irmãoreprodução

Não demorou muito para o médico recém-formado virar professor universitário. Em 1965 foi contratado como instrutor de ensino, cargo hoje equivalente a auxiliar de ensino, pela faculdade em que se formara. Em paralelo às atividades acadêmicas, tornou-se sócio do laboratório de análises clínicas da Santa Casa e começou a exercer a clínica hematológica num consultório particular. Antes do final da década, tomou uma decisão que iria influenciar de forma substancial sua maneira de trabalhar: resolveu se especializar ainda mais em hematologia e optou por procurar aperfeiçoamento nos Estados Unidos. “As pessoas então não saíam tanto do Brasil e a hematologia ainda era vista mais como uma especialidade de laboratório do que da área clínica”, afirma. Passou três anos, de 1969 a 1972, em Salt Lake City, na Universidade de Utah, como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

A temporada no exterior foi proveitosa e proporcionou um grande impulso em sua carreira. Em Salt Lake City Pasquini adquiriu a disciplina e o treino médico que se tornariam marcas de atuação como pesquisador e clínico. “A viagem mudou meu comportamento”, diz. “Aprendi a avaliar o contexto, a enxergar o ser humano no paciente. Tudo ficou mais organizado na minha cabeça.” Na Universidade de Utah teve também a oportunidade de ser orientado por Maxwell Wintrobe, médico austríaco-canadense que praticamente deu à hematologia o status de especialidade ao editar nos anos 1940 o primeiro tratado sobre a área, intitulado Clínica hematológica. Quando voltou a Curitiba, começou a pôr em prática o jeito de trabalhar que aprendera nos Estados Unidos. Em paralelo às pesquisas em hematologia, dedicou-se a organizar toda a residência médica do curso da UFPR. Sabia que tinha de estruturar esse setor para dar um bom suporte ao trabalho clínico-acadêmico do hospital.

Mais de três décadas atrás, não era uma tarefa trivial criar a infraestrutura necessária para realizar com segurança um transplante de medula óssea, um procedimento com particularidades em relação aos transplantes de órgãos como coração, rim ou fígado. Afinal, as defesas imunológicas do receptor de uma nova medula têm de ser suprimidas – sua medula original é destruída e são dados medicamentos para minimizar o risco de rejeição – antes de o doente ser submetido ao procedimento e há sempre o risco de ocorrer intolerância às células transplantadas. Para realizar o transplante de medula com um mínimo de segurança, um centro médico deve passar por uma pequena revolução em termos organizacionais e assepsia. Ele precisa de uma equipe treinada de médicos, enfermeiros, psicólogos e outros profissionais da saúde. Necessita de instalações apropriadas para isolamento do paciente e de pessoal disponível para dar atenção médica 24 horas por dia. Isso sem contar a obrigatoriedade de ter de dar apoio a longo prazo para o paciente em recuperação e sua família.

“A execução bem-sucedida de um transplante de medula é uma verdadeira operação de guerra”, afirma o hematologista Marco Antonio Zago, pró-reitor de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), colega de profissão e amigo de Pasquini. “Em 1979 havia muito ceticismo quanto à capacidade de se realizar esse tipo de tratamento em nosso país.” Com ousadia e determinação, Pasquini preparou o hospital da universidade para vencer o desafio e realizou o primeiro transplante de medula no Brasil há exatos 31 anos. “Ele serviu de modelo e inspiração para muitos grupos de pesquisa e abriu caminho para jovens médicos e cientistas tanto no Brasil como em outros países, particularmente nos Estados Unidos”, comenta o médico Cármino Antonio de Souza, coordenador do Hemocentro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em 1988, o médico paranaense realizou outro sonho: ao lado de membros de destaque da sociedade curitibana, fundou a Associação Alírio Pfiffer, entidade sem fins lucrativos que visa prestar assistência aos pacientes e angariar recursos para manter equipada a unidade de transplantes e garantir a formação continuada da equipe médica do serviço. O nome da entidade, ativa até hoje, é uma homenagem ao primeiro paciente que recebeu o transplante.

Pasquini está oficialmente aposentado da universidade desde 2008, mas continua dando expediente matutino normalmente em sua sala no 17º andar do HC. Fotos de antigos amigos, de momentos importantes da carreira e um desenho dos pais dos transplantes de medula óssea (Robert A. Good, E. Donnall Thomas e George W. Santos) adornam seu escritório. Sua rotina de trabalho não mudou muito. Mantém, por exemplo, o hábito adquirido há 25 anos de participar às segundas e quartas-feiras, sempre às 7h30, de uma reunião com a equipe médica para discutir a situação dos pacientes transplantados e dos candidatos a receber uma nova medula. “A reunião tem de ser cedo para não perdemos toda a manhã e deve durar não mais do que uma hora”, afirma Pasquini. À tarde, passa pelo Hospital Nossa Senhora das Graças, onde cuida do setor de transplantes de medula óssea, e três ou quatro vezes por semana ainda atende pacientes em seu consultório particular.

Quadro na sala do médico: retrato dos pais do transplante de medula óssea

Jader rocha Quadro na sala do médico: retrato dos pais do transplante de medula ósseaJader rocha

Sua produção acadêmica continua alta. Os artigos científicos sobre formas raras de falência congênita ou adquirida da medula óssea, causadas por doenças como a anemia aplástica severa e a anemia de Fanconi, são referência mundial. Nos últimos 10 anos, participou da maioria dos estudos sobre o tratamento da leucemia mieloide crônica, um tipo de câncer do sangue, com um novo grupo de fármacos revolucionários da oncologia moderna, os inibidores de tirosino-quinases. Para ter uma ideia de seu prestígio internacional, basta mencionar que em junho deste ano Pasquini foi um dos coautores de dois artigos no New England Journal of Medicine, umas das revistas médicas mais prestigiosas do mundo.

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