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PRÊMIO

Dupla que tornou as vacinas de mRNA possíveis recebe o Nobel de Medicina

A bioquímica húngara Katalin Karikó e o médico norte-americano Drew Weissman desenvolveram a estratégia que deixou a molécula menos tóxica para o organismo

Katalin Karikó e Drew Weissman, na Universidade da Pensivânia

Peggy Peterson Photography, cortesia Penn Medicine

Muitos esperavam a homenagem um ou dois anos atrás. Demorou um pouco mais, mas veio. Na manhã desta segunda-feira (2/10), a Assembleia do Nobel do Instituto Karolinska, na Suécia, anunciou o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina deste ano para a dupla de pesquisadores cujo trabalho permitiu o desenvolvimento de vacinas de RNA mensageiro (mRNA) seguras e eficazes. A bioquímica húngara Katalin Karikó e o imunologista norte-americano Drew Weissman dividirão igualmente o prêmio de 11 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 5 milhões), a ser entregue em uma cerimônia no final do ano.

“As descobertas dos dois laureados foram fundamentais para o desenvolvimento de vacinas de mRNA eficazes contra a Covid-19 durante a pandemia que começou no início de 2020”, informou a Assembleia do Nobel, responsável pela concessão do prêmio na área, em um comunicado à imprensa. “Por meio de suas descobertas inovadoras, que mudaram fundamentalmente a nossa compreensão de como o mRNA interage com o sistema imunitário, os laureados contribuíram para o desenvolvimento de vacinas a um ritmo sem precedentes durante uma das maiores ameaças à saúde humana dos tempos modernos.”

Filha de um açougueiro e de uma contadora, Karikó nasceu em 1955 em Szolnok, na região central da Hungria, e iniciou sua carreira científica em seu país natal, onde permaneceu até que o laboratório em que trabalhava começasse a enfrentar dificuldades financeiras em meados dos anos 1980. Com o marido, Bela Francia, e a filha, Zsuzsanna, então com 2 anos, Karikó migrou para os Estados Unidos, onde realizou um estágio de pós-doutorado na Universidade de Temple antes de ser contratada, em 1989, pela Universidade da Pensilvânia.

Lá, ela trabalhou inicialmente com o cardiologista Elliot Barnathan, tentando desenvolver terapias à base de mRNA para tratar acidente vascular cerebral, mas enfrentou dificuldades para obter financiamento, o que a impedia de progredir na carreira acadêmica. Em 1997, ao lidar com uma fotocopiadora do departamento emperrada, Karikó conheceu, por acaso, Weissman, que buscava novas estratégias para tentar desenvolver uma potencial vacina contra o HIV, o vírus causador da Aids. Ela sabia trabalhar com a molécula de RNA e ele dispunha de verbas para realizar os experimentos e iniciaram uma parceria.

As vacinas então disponíveis eram quase sempre produzidas a partir de patógenos inteiros ou de proteínas deles para estimular a resposta do sistema de defesa, mas exigiam o cultivo de grandes quantidades de células, razão pela qual se buscavam alternativas. A molécula de RNA era uma delas, mas utilizá-la costumava ser muito desafiador. Formado por sequências de quatro bases nitrogenadas – adenina (A), citosina (C), guanina (G) e uracila (U) –, o mRNA funciona como uma espécie de garoto de recados no interior das células. Ele copia um trecho do DNA que codifica uma proteína e leva essa informação do núcleo, onde fica armazenado o DNA, para o citoplasma, na periferia da célula, onde a síntese da proteína de fato ocorre.

Uma possibilidade que se imaginava era criar em laboratório uma molécula de mRNA com a informação de uma proteína capaz de despertar a resposta imune contra um microrganismo invasor e administrá-la ao organismo. A expectativa era que, uma vez injetado no corpo, esse mRNA chegasse ao interior das células e iniciasse a produção da proteína ativadora do sistema de defesa. Trabalhar com a versão sintética dessas moléculas é difícil. Elas são instáveis e, assim entram no organismo, são reconhecidas como invasoras e atacadas pelo sistema de defesa, o que exige o seu encapsulamento em esferas de gordura para que passem despercebidas e cheguem ao interior das células. Mas havia outra complicação. Ao entrarem nas células dos mamíferos, as moléculas sintéticas de mRNA despertavam uma intensa resposta inflamatória que destruía as próprias células e podia causar danos ao organismo.

Depois de vários experimentos frustrados, Karikó e Weissman notaram que essa resposta inflamatória acontecia porque o mRNA naturalmente produzido pelas células dos mamíferos apresentava uma pequena alteração química que não estava presente na versão produzida em laboratório. Eles, então, decidiram acrescentar uma modificação na versão sintética das bases nitrogenadas do RNA antes de injetá-las no organismo. Deu certo. O mRNA sintético passou a chegar sem problemas às células e a ser utilizado para produzir as proteínas que despertam uma resposta imunológica adequada. A inflamação também diminuiu muito.

“A descoberta feita por eles permitiu chegar a uma forma segura de usar o mRNA em vacinas, e com maior capacidade de gerar imunidade. A inflamação levava à destruição das células que haviam incorporado o mRNA sintético contendo a receita da proteína do agente infeccioso, o que prejudicava a ativação do sistema de defesa contra o invasor”, explica o microbiologista Luís Carlos de Souza Ferreira, da Universidade de São Paulo (USP).

O próximo passo era publicar os resultados, tarefa que também esbarrou em dificuldades. O artigo foi recusado pelas revistas Science e Nature, antes ser aceito em 2005 por um periódico especializado, a Immunity. Em dois outros trabalhos, publicados em 2008 na Molecular Therapy e em 2010 na Nucleic Acids Research, eles mostraram que o mRNA modificado aumentou acentuadamente a produção de proteínas que estimulam a ativação do sistema imune.

“O trabalho deles foi seminal. Embora outros pesquisadores tenham feito contribuições importantes, sem a solução proposta por Karikó e Weissman não se teria conseguido chegar às vacinas de mRNA”, afirma a bioquímica Santuza Teixeira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que trabalha no desenvolvimento de vacinas de mRNA contra leishmaniose, malária e doença de Chagas. “Era esperado que em algum momento recebessem um reconhecimento como o Nobel”, diz.

Há pouco mais de uma década, a tecnologia desenvolvida por Karikó e Weissman começou a ser testada em compostos candidatos a imunizante contra os vírus causadores da febre zika e da síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers). Durante a pandemia de Covid-19, a tecnologia foi licenciada para os laboratórios farmacêuticos Moderna e Pfizer/BioNTech, que produziram dois dos imunizantes mais eficientes contra o novo coronavírus, aplicados em centenas de milhões de pessoas no mundo – só nos Estados Unidos foram administrados 400 milhões de doses da vacina da Pfizer/BioNTech e 250 milhões do imunizante da Moderna. Vice-presidente sênior da BioNTech desde 2019, Karikó é atualmente professora da Universidade de Szeged, na Hungria, e da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, onde Weissman é professor desde 1997. Desde 1901, o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina foi concedido a 114 pesquisadores, dos quais apenas 13 eram mulheres.

No Brasil, além dos candidatos a imunizantes testados pela UFMG, a equipe de Ferreira, na USP, atualmente avalia o desempenho de uma potencial vacina de mRNA, desenvolvida em parceria com o grupo de Karikó, para tratar o câncer provocado pelo vírus do papiloma humano, o HPV (ver Pesquisa FAPESP nº 326).

Artigos científicos
KARIKÓ, K. et al. Suppression of RNA recognition by toll-like receptors: The impact of nucleoside modification and the evolutionary origin of RNA. Immunity. 2005.
KARIKÓ, K. et al. Incorporation of pseudouridine into mRNA yields superior nonimmunogenic vector with increased translational capacity and biological stabilityMolecular Therapy.  2008.
ANDERSON, B.R. et al. Incorporation of pseudouridine into mRNA enhances translation by diminishing PKR activationNucleic Acids Research. 2010.

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