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Obituário

Economista solidário

Paul Singer dedicou sua vida à compreensão do Brasil e à expansão das possibilidades de desenvolvimento dos trabalhadores

Agência Brasil / Wikimedia Commons Paul Singer em 2010 durante a 2ª Conferência Nacional de Economia Solidária, em BrasíliaAgência Brasil / Wikimedia Commons

Sobre Paul Singer, é possível dizer que deu vida ao lema de Montesquieu: “Para se fazer grandes coisas não se deve estar acima dos homens, mas junto deles”, escreveu Rui Namorado, no prefácio de Ensaios sobre economia solidária (Almeidina). Organizado pelo próprio Namorado, coordenador do Centro de Estudos Cooperativos e da Economia Social da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (CECES-FEUC), o livro foi lançado em março, mês em que Singer completou 86 anos, em Portugal.  Como o título indica, reúne textos sobre o tema que mobilizou sua reflexão teórica e seu fazer diário nas últimas décadas e que, nas palavras de Singer, “pretende ser alternativa ao capitalismo”. Professor titular aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), morreu em 16 de abril em consequência de sepse.

Em depoimento de despedida, publicado no jornal Folha de S.Paulo, o cientista político André Singer diz que a economia solidária foi uma descoberta feita na maturidade, pelo pai. “Quando se encerrou o ciclo da prosperidade que o país viveu entre 1930 e 1980, o desemprego se tornou estrutural. Meu pai juntou a ideia de que o socialismo precisava ser construído por baixo, dentro do capitalismo, e não como algo que vem de fora, com a situação de penúria dos trabalhadores. Passou a propor a auto-organização em cooperativas como saída que atendia, ao mesmo tempo, às duas necessidades.” Paul Singer dirigiu a Secretaria Nacional de Economia Solidária, criada em 2003, nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Roussef (2011-2016). “Sentia-se completamente realizado com os avanços do que ele chamava ‘o movimento’. Fechou o ciclo de sua vida por onde havia começado: implantando o princípio kibutzim da produção coletiva em solo brasileiro ”, escreveu André um dos três filhos do economista ao lado de Suzana e Helena.

Paul Israel Singer nasceu em Viena, Áustria. Filho único e órfão de pai desde os dois anos de idade, foi criado pela mãe, com quem chegou ao Brasil, em 1940, fugindo do nazismo. Começou a trabalhar por volta dos 14 anos, cursou eletrotécnica, filiou-se ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e foi um dos líderes da “greve dos 300 mil”, que paralisou São Paulo, em 1953. Autodidata, antes de ingressar no curso de ciências econômicas e administrativas da USP, já tinha lido autores como Marx e Engels.  Logo após a formatura, em 1959, foi convidado a permanecer como professor na universidade. Sob a orientação do sociólogo Florestan Fernandes, defendeu sua tese de doutorado, “Desenvolvimento econômico e evolução urbana”, em 1966.

Na Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP, onde também lecionou, participou da criação do interdisciplinar Centro de Estudos de Dinâmica Populacional (Cedip) no grupo liderado pela demógrafa Elza Berquó. Em busca do conhecimento envolvendo a área de demografia, até então não disponível no país, frequentou o curso de estudos populacionais ministrado por Ansley Johnson Coale no Office of Population Research, em Princeton. “Quando voltou, era um economista-demógrafo”, lembra Elza. “Suas ideias marxistas marcaram a demografia brasileira. Na primeira pesquisa nacional sobre comportamento reprodutivo, por exemplo, ele ajudou a construir uma tipologia envolvendo áreas urbanas e rurais”, conta. Em 1968, com a pesquisa desenvolvida nos Estados Unidos e mais tarde publicada sob o título de Dinâmica Populacional e Desenvolvimento (Brasiliense), Singer prestou seu concurso de livre docência em demografia, na USP.

Aposentado compulsoriamente um ano depois, em decreto assinado pelo general Costa e Silva, instituiu com Elza, José Arthur Giannotti e Fernando Henrique Cardoso, dentre outros, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Entre as “acusações” que pesavam sobre Singer estava a de divulgar dados sobre situação familiar, nível de vida, ocupação e rendimentos de trabalhadores no estado de São Paulo. “Ele esteve o tempo todo dialogando com os dilemas da economia e da política”, observa Adalberto Cardoso, professor de sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). “Nos anos 1970, em plena ditadura, mostrou que o crescimento produziu muita miséria e denunciou o milagre brasileiro como instrumento de concentração de renda. Na década seguinte, foi decisivo para a compreensão da inflação no país e escreveu bastante sobre o conflito distributivo.”

No início dos anos 1980, o ex-militante do Partido Socialista Brasileiro participou da fundação do Partido dos Trabalhadores e publicou Dominação e desigualdade: estrutura de classes e repartição de renda no Brasil (Paz e Terra). “Paul concebia, elaborava e interpretava as informações estatísticas com facilidade. Seu rigor analítico se destacava pelo criterioso uso dos dados, o que fica evidente na leitura dessa obra”, observa Frederico Mazzucchelli, professor aposentado do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e seu assistente de pesquisa, no início dos anos 1970. “Outro de seus grandes méritos foi ter trazido, para a sala de aula, a discussão sobre a obra econômica de autores como Marx, Lênin, Galbraith e Keynes”, avalia. Adalberto Cardoso foi seu aluno e destaca o apreço de Singer pelo debate: “Ele tinha um dom muito especial de valorizar a intervenção, o pensamento dos estudantes. E era muito didático”.

Autor de dezenas de livros, publicou em alemão, espanhol, francês e inglês. “Como bom marxista, foi capaz de fazer análises econômicas, sociológicas e políticas. Em um ensaio de 1973, previu a grande crise econômica e a desaceleração da economia brasileira”, assinala Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). “E seu socialismo era rigorosamente democrático.” Ugo Giorgetti, cineasta que prepara um documentário sobre o economista, com quem conviveu “tardiamente”, faz coro: “Para ele, ser de esquerda é ser integralmente democrático”.

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