Nana LahozA parcela de 1% da população mundial que convive com as terríveis dores da artrite reumatoide, uma inflamação crônica que provoca a degeneração das articulações, sabe bem quão importantes são os corticoides para melhorar sua qualidade de vida. Mas não apenas ela: milhões de portadores de alergias respiratórias, de doenças da pele, vítimas de tumores cerebrais e pacientes de variadas outras condições em que a resposta inflamatória do corpo se torna exagerada têm se beneficiado nas últimas décadas da potente ação anti-inflamatória desses compostos, em geral derivados sintéticos da cortisona, o principal corticoide secretado pelas adrenais humanas.
Identificados no início do século passado por Edward Calvin Kendall e Philip Showalter Hench, descoberta que lhes valeu o Nobel de Medicina de 1950, os corticoides, entretanto, nem sempre funcionam na direção desejada – pelo menos quando se trata dos hormônios sintéticos. Em algumas regiões do cérebro eles podem provocar exatamente o efeito oposto ao esperado e aumentar a inflamação, sugere estudo dos pesquisadores Carolina Demarchi Munhoz e Cristoforo Scavone, da Universidade de São Paulo (USP), e Robert Sapolsky, da Universidade de Stanford, Estados Unidos, publicado no Journal of Neuroscience no final de 2010.
Por meio de injeção intravenosa de fragmentos de bactérias, o grupo de pesquisadores induziu respostas inflamatórias em ratos de laboratório para avaliar o poder dos corticoides na modulação de reações bioquímicas provocadas por inflamações no cérebro, como a que ocorre em caso de tumores ou mesmo de um acidente vascular cerebral (AVC). A resposta natural do organismo diante de uma inflamação é, sabidamente, secretar corticoides – e a adrenal dos ratos produz corticosterona, hormônio similar à cortisona humana.
Antes de provocar a inflamação, Carolina retirou as glândulas adrenais dos ratos (adrenalectomia) e implantou sob sua pele cápsulas de corticosterona que liberariam a substância lentamente. Assim, controlando as doses, ela poderia investigar se a ação anti-inflamatória variava com diferentes níveis de corticoides no sangue dos animais, separados em três grupos – cada um com uma dose diferente do hormônio. O primeiro recebeu nível baixo de corticosterona, equivalente à produzida naturalmente pelos roedores; o segundo, uma dose intermediária, semelhante à encontrada no organismo em casos de estresse leve, como o susto provocado pela batida inesperada de uma porta; e o último, uma quantidade elevada, que corresponde a níveis moderados de estresse, a exemplo do despertado pela preocupação de não conseguir pagar as contas no final do mês. Um quarto grupo, com as adrenais mantidas, foi usado como controle.
A relação entre nível de corticoides no sangue e grau de estresse é importante porque essa reação adaptativa do organismo a situações novas ou ameaçadoras também faz as adrenais liberarem corticoides. E o grupo de pesquisadores já havia demonstrado anos antes que o estresse crônico e imprevisível pode causar inflamação cerebral (ver Pesquisa FAPESP nº 129). A questão agora era descobrir se o efeito era mediado pelos corticoides e de que maneira acontecia.
Por meio de técnicas de imunologia e biologia molecular, eles avaliaram o que diferentes taxas de corticoides causavam em duas regiões do cérebro dos ratos: o hipocampo, envolvido com a memória, a aprendizagem e, em situações patológicas, com o desenvolvimento da epilepsia; e o córtex frontal, associado a processos cognitivos superiores, como a tomada de decisões. E observaram um complexo padrão de respostas dos genes analisados.
A depender da dosagem, alguns genes apresentaram o mesmo padrão de funcionamento nas duas regiões – por exemplo, foram acionados ou desativados em ambas –, enquanto outros apresentaram funcionamento distinto: estavam ativos em uma e desligados na outra. Essas alterações decorrem do controle da atividade do fator nuclear kappaB (NF-kappaB), molécula de comunicação intracelular central no processo bioquímico que regula a resposta inflamatória.
Até então se pensava que o NF-kappaB fosse sempre bloqueado pelos corticoides, que assim teriam efeito anti-inflamatório. Na dose mais elevada, os corticoides diminuíram a atividade do NF-kap-paB e reduziram a inflamação no hipocampo. Mas, nos níveis baixo e médio, aumentaram a ação do NF-kappaB e, portanto, a sinalização que dispara a inflamação. No córtex frontal a relação foi diferente: a dose alta de corticosterona foi anti-inflamatória, enquanto a intermediária agravou a inflamação.
Apesar de se tratar de resultados experimentais, eles podem ter importância clínica, em especial para a neurologia e a psiquiatria, que lidam com as inflamações cerebrais e suas consequências. Segundo Carolina, as doses usadas nos testes com os ratos são próximas das adotadas em estudos com seres humanos. Ela propõe, no entanto, que os dados sejam olhados com cautela: “Mostramos que a ação dos corticoides, mesmo com doses adequadas, não é apenas anti-inflamatória, mas”, ressalta, “o trabalho foi feito com ratos e usando o corticoide natural deles”.
Isso pode fazer uma grande diferença. Os corticoides que o organismo produz funcionam de modo distinto dos sintéticos, usados como medicamento. Uma das diferenças é que só 10% da quantidade de corticoides secretados pelas glândulas adrenais se encontra livre no sangue e pronta para atuar tanto nos tecidos periféricos quanto no sistema nervoso central. Já os sintéticos ficam totalmente disponíveis para agir nos tecidos periféricos, mas são, em boa parte, filtrados ao chegar à circulação cerebral – uma barreira especial (hematoencefálica) reveste os vasos sanguíneos no cérebro e controla a passagem de vários compostos.
Por essa razão, quando têm de tratar inflamações cerebrais, os médicos aumentam a dose do medicamento, na expectativa de que uma proporção maior ultrapasse a barreira hematoencefálica, que funciona como uma capa de chuva semipermeável: quando a chuva é fraca, evita a passagem da água e que a pessoa se molhe, mas, se a água é muita, certo tanto atravessa os poros do tecido.
Por causa desse mecanismo, o nível de corticoides sintéticos no sangue periférico pode ser substancialmente diferente do que alcança o cérebro. Assim, o que os médicos calculam como dose alta talvez seja, de fato, elevada na periferia, mas intermediária no tecido cerebral. Como foram as doses intermediárias que aumentaram a sinalização inflamatória no hipocampo e no córtex frontal, os resultados servem de alerta para o uso médico desses compostos quando o alvo é o sistema nervoso central. Mas ainda faltam experimentos, que Carolina e Scavone pretendem iniciar em breve, para determinar se os corticoides sintéticos agem no cérebro do mesmo modo que os naturais. “Esses dados servem de alerta para ressaltar que há variáveis ainda não compreendidas sobre o funcionamento dos corticoides”, diz Scavone.
Transtornos de humor
Recentemente Scavone iniciou uma colaboração com a equipe de Beny Lafer, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, com o objetivo de identificar a possível influência de processos inflamatórios sobre o desenvolvimento de problemas psiquiá-tricos. Em especial, Lafer está interessado em ver se alterações bioquímicas associadas à inflamação podem afetar o equilíbrio das células e induzi-las a morrer em pessoas com transtorno bipolar, marcado por alternância de episódios de depressão e de mania (euforia).
Descrito há quase 2 mil anos por Areteu da Capadócia, esse transtorno mental, antes chamado de psicose maníaco-depressiva, atinge em sua forma mais grave (tipo 1) cerca de 1% da população e vem sendo tratado de modo relativamente eficiente nas últimas décadas. Mas sua origem biológica permanece incerta. Nos anos 1990 estudos internacionais identificaram diminuição considerável no número de células (neurônios e células gliais) e redução dos mecanismos de proteção celular no cérebro de pessoas com transtorno bipolar. Associada à inflamação, essa perda celular, que se intensifica nas crises de mania e depressão, afeta o córtex frontal e, possivelmente, o hipocampo, duas das regiões estudadas por Carolina e Scavone – a perda ou disfunção de neurônios no córtex frontal talvez ajude a explicar a dificuldade dos pacientes de controlar os impulsos nos episódios de mania.
Em um trabalho de revisão publi-cado este ano na revista Progress in Neuro-Psychopharmacology & Biological Psychiatry, ele e Scavone propõem um modelo tentando explicar como os mecanismos inflamatórios podem alterar uma via de sinalização intracelular acionada pela Wnt, proteína que regula a proliferação, a migração e a especialização das células. Todos esses processos aparentam estar, em maior ou menor grau, comprometidos nos transtornos de humor, como o bipolar e a depressão. Uma forte evidência de que nesses problemas psiquiátricos algo está errado na cadeia de reações químicas disparada por essa proteína é o fato de que dois dos medicamentos mais usados para tratar o transtorno bipolar – o lítio e o valproato – atuam sobre essa via de comunicação intracelular, restabelecendo esse canal de transmissão de informações e eventualmente evitando a morte de neurônios. “As descobertas sobre os mecanismos de ação dos estabilizadores de humor mudaram o foco de pesquisas dos receptores nas membranas celulares e dos neurotransmissores que se ligam a esses receptores para o que ocorre no universo intracelular”, explica Beny Lafer.
Essa nova forma de compreender os problemas psiquiátricos aproximou a equipe de Scavone e a de Lafer e talvez gere novos tratamentos. Dentre as moléculas que, no futuro, podem se tornar um bom alvo terapêutico para o transtorno bipolar, Lafer destaca o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF). Entre seus muitos papéis, essa molécula regula a sobrevivência e a ramificação dos neurônios, funções que envolvem a sinalização pela Wnt e de alguma maneira se encontram desreguladas durante a depressão e a mania.
Parece mesmo haver um elo molecular entre os transtornos de humor, a ação dos corticoides e a influência do estresse, embora ele ainda não tenha sido definido. Os pesquisadores suspeitam que esse elo seja o NF-kappaB, envolvido tanto na resposta cerebral aos corticoides quanto na sinalização da Wnt, alterada no transtorno bipolar.
Em busca de resposta para essas questões – e, se possível, de novas formas de tratamento –, Lafer e sua aluna de doutorado Li Wen Hu, em parceria com Eliza Kawamoto, investigam as alterações que ocorrem na via da Wnt. Eles querem comparar o nível de proteínas dessa cadeia bioquímica achado no sangue de pessoas com transtorno bipolar que recebem medicação (lítio) desde o início da pesquisa com o de pessoas com transtorno que não usam lítio e com o de indivíduos saudáveis. Até o momento, eles conseguiram coletar amostras de 20 integrantes do primeiro grupo, 17 do segundo e 36 do terceiro. “Ainda não sabemos se a disfunção nos processos inflamatórios é causa ou consequência dos episódios da doença, que melhoram com o uso de estabilizadores de humor”, afirma Lafer.
A suspeita de que os corticoides agravem a inflamação cerebral vem da observação clínica. Pacientes bipolares que tomam corticoides para combater inflamações apresentam piora do quadro psiquiátrico. Além disso, encontra-se em fase inicial de testes o uso de medicamentos com ação contrária à dos corticoides para tratar depressão. Ainda que o lítio apresente mecanismo de ação diferente daquele dos corticoides, os pesquisadores não descartam que possam atuar sobre alguns alvos intracelulares em comum. Mas é difícil saber. “Trata-se de uma complexa cascata bioquímica finamente regulada pelo organismo em resposta ao estresse e a processos inflamatórios”, comenta Scavone. “Interferir nesse sistema pode desencadear consequências ainda desconhecidas.”
Os projetos
1. Estresse e a sinalização intracelular na inflamação desencadeada pelo lps no sistema nervoso central: participação dos glicocorticoides e da via glutamato-no na modulação do fator de transcrição nf-kb (nº 2002/02298-2); Modalidade Auxílio regular a projeto de pesquisa; Coordenador Cristoforo scavone – ICB/USP; Investimento R$ 191.086,25 (FAPESP)
2. Participação das map kinases, proteínas de choque térmico e da via de apoptose nos efeitos adversos dos glicocorticoides no sistema nervoso central (nº 2004/11041-0); Modalidade Auxílio regular a projeto de pesquisa; Coordenador Cristoforo scavone – ICB/USP; Investimento R$ 229.197,46 (FAPESP)
3. Avaliação do envolvimento da via de sinalização wnt na fisiopatologia de transtorno afetivo bipolar (nº 2008/08191-1); Modalidade Auxílio regular a projeto de pesquisa; Coordenador Beny Lafer – FM/USP; Investimento R$ 57.564,57 (FAPESP)
Artigos científicos
MUNHOZ, C. D. et al. Glucocorticoids exacerbate lipopolysaccharide-induced signaling in the frontal cortex and hippocampus in a dose-dependent manner. Journal of Neuroscience. v. 30(41), p. 13.690-8.
13 out. 2010.
HU, L.W. et al. The role of Wnt signaling and its interaction with diverse mechanisms of cellular apoptosis in the pathophysiology of bipolar disorder. Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry. v. 35. n. 1, p. 11-17. 15 jan. 2011.