Maior metrópole da América do Sul, São Paulo conta com uma malha de transporte público urbano complexa, com uma frota que inclui 14.076 ônibus movidos a diesel e 201 trólebus — veículos elétricos que circulam conectados a cabos aéreos. A partir deste mês, uma novidade poderá ser vista nas ruas da cidade. A prefeitura planeja iniciar, em caráter experimental, a operação de uma frota de 15 ônibus elétricos movidos 100% a bateria, os primeiros do gênero da capital. Os veículos farão um trajeto de 29,7 quilômetros (km) entre ida e volta na zona sul, operado pela concessionária Transwolff. “Será uma oportunidade para verificarmos o desempenho dos elétricos no dia a dia, em condições rigorosas de operação”, diz Simão Saura Neto, superintendente de engenharia veicular e mobilidade especial da SPTrans, responsável pela gestão do transporte público paulistano.
Fabricantes de ônibus, fornecedores de peças e baterias, companhias de distribuição de energia, gestores municipais e especialistas em transportes acompanham com atenção essa experiência, que poderá servir de referência para a expansão de ônibus elétricos no Brasil. A prefeitura pretende avaliar a confiabilidade técnica dos veículos — que precisarão rodar mais de 200 km por dia sem recarga —, a infraestrutura de abastecimento energético, o impacto ambiental e a viabilidade econômica de manter uma frota movida a bateria.
A substituição da frota a diesel paulistana parte de uma necessidade legal. Em 2018, a Lei Municipal nº 16.802 estabeleceu que os veículos que atendem o transporte público devem reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2) em 50% no prazo de 10 anos e 100% em 20 anos. A liberação pelos escapamentos de material particulado (MP) deve cair em 90% e 95%, respectivamente, e a emissão de óxido de nitrogênio (NOx) precisa ser reduzida em 80% e 95%.
“Combustíveis como etanol e biogás atendem as metas para 10 anos, mas só os elétricos e os veículos a hidrogênio contemplam o estabelecido para 20 anos, quando as emissões devem ser zeradas”, informa Saura Neto. Ele ressalta, porém, que os veículos a hidrogênio ainda têm custo proibitivo, na casa de R$ 3 milhões por unidade. Já os trólebus, que circulam na cidade desde 1949, são uma alternativa pouco atraente. Pesam contra eles o alto custo de manutenção da rede aérea de abastecimento energético e a baixa flexibilidade operacional dos veículos, que só circulam em vias específicas sob os cabos aéreos.
O engenheiro mecânico Paulo Henrique de Mello Sant’Ana, professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (Cecs-UFABC), estuda o impacto socioambiental que pode ser proporcionado até 2038 com a mudança gradual da frota paulistana de ônibus a diesel para a bateria. Para isso, seu grupo de pesquisa leva em consideração não apenas os poluentes emitidos pelos escapamentos — que é zero nos eletrificados —, mas também as emissões geradas em toda a cadeia de produção de eletricidade, no conceito conhecido como “do poço à roda”.
Uma dissertação de mestrado recém-defendida por um dos membros de seu grupo concluiu que, considerando-se a substituição dos ônibus paulistanos a diesel por veículos elétricos a bateria, seria possível evitar a emissão de 19 mil toneladas de NOx e 78 toneladas de MP na cidade, reduzindo, respectivamente, em 45% e 19% a liberação desses poluentes — esse cálculo levou em conta a idade média e a vida útil da frota paulistana em 2018. “No futuro, quanto mais renovável for a matriz energética, com o uso de fontes como a eólica e a solar, melhor será o resultado global das emissões dos veículos elétricos”, diz Sant’Ana, esclarecendo que, dessa forma, a energia usada na recarga das baterias virá de fontes menos agressivas ao ambiente.
Além de mais amigáveis ao planeta, os ônibus impulsionados por bateria têm custos operacionais significativamente inferiores. “Os gastos com o abastecimento são em média cinco vezes menores do que os apresentados pelos veículos a diesel”, declara Ricardo Takahira, vice-coordenador do comitê técnico de veículos elétricos híbridos da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE-Brasil). Em um motor elétrico, 95% da energia consumida se transforma em impulso da roda, enquanto em um motor a combustão essa eficiência é de apenas 35% — quanto maior esse índice, melhor o aproveitamento da fonte energética, seja ela eletricidade, biocombustível ou combustível fóssil. Os gastos para manutenção dos elétricos também é menor, uma vez que os veículos são controlados eletronicamente, não possuem pistão e velas de ignição e dispensam óleo lubrificante.
Por outro lado, o desembolso inicial para aquisição de um ônibus elétrico é muito maior. Enquanto um veículo de 13 metros (m) para 80 passageiros movido a diesel sai por volta de R$ 600 mil, um equivalente elétrico custa pouco mais que o dobro: R$ 1,3 milhão. A bateria responde por metade desse valor. Os gastos não param aí. As companhias de transporte urbano precisam dotar suas garagens com eletropostos — totens com conectores para a recarga — e adequar a rede elétrica e transformadores, um investimento estimado pela SPTrans em R$ 40 mil por veículo.
Para ter uma autonomia entre 200 e 250 km, a recarga de cada conjunto de bateria demanda em torno de três horas. Takahira informa que estão em estudo no mundo várias alternativas para reduzir o tempo de recarga e o custo da bateria. Uma opção em teste na Alemanha são baterias de menor autonomia e com recarga rápida, feita em minutos — em vez de horas — em locais distribuídos pela cidade, como terminais e pontos de parada.
Inovação e produção
Reduzir custos e criar alternativas que permitam uma migração do diesel para a eletromobilidade são desafios para os quais a indústria busca soluções. A chinesa BYD mantém desde 2017 uma fábrica de chassis para veículos elétricos pesados em Campinas (SP), tendo já comercializado 45 ônibus no país, incluindo os 15 que serão testados pela SPTrans — os demais rodam em Brasília (DF), Maringá (PR), Volta Redonda (RJ), Campinas, Santos e Bauru (SP). Adalberto Maluf, diretor de novos negócios da companhia, relata que o centro de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da BYD está empenhado em diminuir o peso do chassis, substituindo o aço por alumínio. “Ao reduzir o peso aumentaremos a autonomia dos veículos”, explica.
A Volkswagen Caminhões e Ônibus (VWCO) tem em Resende (RJ) seu centro mundial de P&D. É lá que está sendo desenvolvido o primeiro ônibus com tração elétrica da multinacional, o Volksbus e-Flex, em fase de protótipo. “Será um veículo capaz de contemplar todas as variantes de mobilidade elétrica”, conta Roberto Cortes, presidente da VWCO.
O modelo é um híbrido, podendo rodar com bateria ou com motor movido a gasolina e etanol, uma novidade da Volks. As baterias serão alimentadas em carregadores externos no conceito plug-in —conectadas a tomadas em totens de recarga — ou ainda por um gerador interno impulsionado pelo motor a combustão. O acionamento do gerador é feito de forma automática por um sistema eletrônico que controla o nível de carga das baterias. “É um modelo que reduz a necessidade de infraestrutura de recarga”, observa Cortes.
A flexibilidade também é uma preocupação da paulista Eletra, que já produziu mais de 300 ônibus elétricos entre trólebus, híbridos e elétricos puros. Segundo a diretora comercial Iêda Maria Oliveira, estão sendo desenvolvidos em parceria com a fabricante de baterias Moura dois modelos elétricos, um movido apenas a bateria, com autonomia de 180 km, e outro elétrico híbrido dual, em que a tração é somente elétrica, mas que pode ser alimentado por bateria ou por um grupo motor gerador a diesel. “É um modelo pensado para cidades que estão criando zonas de emissão zero”, diz Oliveira. Ao entrar na área restrita, um sinal por GPS desliga o grupo gerador, que é religado ao sair.
Panorama mundial
Um total de 425 mil ônibus eram impulsionados por baterias no mundo em 2018, cerca de 17% da frota total, segundo a organização Bloomberg New Energy Finance. Noventa e nove por cento deles rodam na China, que adotou políticas públicas para subsidiar o sistema como forma de melhorar a qualidade do ar de suas metrópoles. A agência projeta que 60% da frota mundial será movida a bateria em 2040. “Em um primeiro momento, a expansão deve ocorrer não apenas por razões econômicas, mas também motivada pela regulação ambiental e por políticas públicas de incentivos”, diz Flávia Consoni, do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade de Campinas (DPCT-IG-Unicamp).
Nos Estados Unidos, o governo da Califórnia determinou que toda a frota de transporte público deve ter tração elétrica até 2029. Alemanha, Inglaterra e Holanda também já anunciaram políticas nesse sentido. No Chile, a meta é de eletrificação total até 2050. O Brasil, com mais de 100 mil ônibus de transporte urbano e apenas cerca de 500 deles elétricos (incluindo os trólebus), iniciou as tratativas para a formulação de um plano nacional de eletromobilidade no âmbito do antigo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. “As discussões pararam com a mudança de comando no governo federal”, relata Flávia Consoni, que estava envolvida no projeto.
Os maiores municípios do país não estão parados. Campinas, Curitiba, Belo Horizonte e Brasília desenvolvem alternativas para a eletrificação de suas frotas. A iniciativa mais avançada é a de São Paulo, mas enfrenta problemas. A cidade estabeleceu uma licitação pública com as regras para renovar a concessão do serviço de transporte público municipal, que, por ora, está parada por conta de questionamentos judiciais. No entanto, um comitê gestor da frota municipal é responsável por implementar as medidas previstas na lei municipal que trata da redução de emissão de poluentes pelo transporte público, independentemente da licitação. Os elétricos são uma alternativa para o cumprimento dessa legislação.
BYD cria sistema de comercialização para baratear aquisição de seus ônibus
Os ônibus que compõem o projeto-piloto da SPTrans foram adquiridos pela concessionária de transporte coletivo Transwolff da chinesa BYD. A empresa criou um sistema de comercialização capaz de baratear o investimento. Os ônibus, que possuem valor unitário de R$ 1,3 milhão, foram comercializados por R$ 660 mil cada um (valor dos veículos a diesel), sem a bateria. A BYD, que fornece a bateria importada da China, faz um aluguel do componente em um contrato de 10 anos, no valor mensal de R$ 8 mil por ônibus, responsabilizando-se pela manutenção e eventual substituição do item, se necessário. Por mais R$ 2 mil mensais, a companhia também faz a recarga da bateria. Para garantir o fornecimento da energia, a BYD está investindo em geração fotovoltaica própria.
Como explica Adalberto Maluf, diretor de novos negócios da BYD, R$ 10 mil mensais equivalem ao gasto médio com diesel de um ônibus em São Paulo que circula 6,5 mil quilômetros por mês, a média na cidade. “O valor que seria gasto com diesel financia o custo da bateria e o abastecimento elétrico”, afirma.