Como comprovar que determinada madeira não tem origem ilegal analisando apenas os elementos químicos da amostra? E que um café é de fato orgânico ou que uma soja não é oriunda de área de desmatamento? A engenheira-agrônoma Elisabete Aparecida De Nadai Fernandes, responsável pelo Laboratório de Radioisótopos do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena-USP), em Piracicaba, trabalha há décadas com uma técnica baseada em princípios da física nuclear para analisar alimentos e plantas e busca responder a essas questões.
Um de seus projetos, apoiado pela FAPESP, visa a desenvolver meios para autenticar, a partir da radiação nuclear, a origem de commodities brasileiras com base na medição direta de seus elementos químicos. O método poderá se tornar uma ferramenta no combate a fraudes. “Uma coisa é dizer que uma amostra não veio de área desmatada. Outra é demonstrar isso apresentando características intrínsecas do material, que pode variar conforme sua origem”, diz a pesquisadora.
No ano em que completa 50 anos de formada pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, Fernandes, de 72 anos, tem o que comemorar. Em março, foi agraciada com o George Hevesy Medal Award 2024, principal prêmio internacional em química nuclear e radioanalítica. Em setembro, recebeu o Prêmio Fundação Bunge na categoria Vida e Obra, com o tema “Rastreabilidade na produção de alimentos: Segurança alimentar, capacitação e redução de assimetrias regionais”.
Nessa entrevista, a pesquisadora detalha como funciona a técnica de análise por ativação neutrônica com a qual trabalha, originada em uma descoberta de 1936 do físico-químico húngaro George Hevesy, laureado com o Nobel de Química em 1943, e da física germano-dinamarquesa Hilde Levi. Eles verificaram que um tipo de terras-raras ficava radioativo após exposto a uma fonte de nêutrons. Fernandes relembra sua experiência ao examinar alimentos contaminados pela radioatividade de Chernobyl e o acidente com césio-137, ocorrido em Goiânia, ambos nos anos 1980.
A tecnologia com a qual a senhora trabalha pode promover a transparência nas cadeias produtivas brasileiras de commodities agrícolas de exportação?
A análise por ativação neutrônica permite determinar os elementos químicos presentes em uma amostra, seja ela do reino animal, vegetal ou mineral, e, com isso, obter a assinatura química de cada uma delas. Aplicando quimiometria [ciência que interpreta medidas de um sistema ou processo químico] e métodos de inteligência artificial a esses dados da composição química, conseguimos distinguir as amostras. Um exemplo recente é um projeto financiado pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] para a rastreabilidade da carne bovina no Brasil. Por meio da análise por ativação neutrônica, diferenciamos carnes oriundas das cinco regiões brasileiras, do Paraguai, do Uruguai, da Argentina e da Austrália. Pela composição química e por meio do uso de inteligência artificial, foi possível diferenciar com quase 100% de acurácia a origem dessas carnes.
Como funciona a técnica de análise por ativação neutrônica?
Consiste em duas etapas fundamentais. Uma é a ativação de uma amostra do material a ser analisado pela irradiação com nêutrons, produzindo radionuclídeos, estados excitados de nuclídeos estáveis [núcleos dos átomos dos diferentes elementos químicos presentes], que também são chamados isótopos radioativos ou radioisótopos. Para isso, a amostra é exposta dentro de um reator nuclear a um bombardeio de nêutrons, o que provoca a formação de núcleos radioativos nos átomos do material exposto. Para voltar ao seu estado de equilíbrio, os átomos emitem radiação. Aí entra a segunda etapa da análise, quando é feita a detecção da radiação característica desses núcleos ativados, ao passarem para o estado menos energético. A atividade radioativa e o número de radionuclídeos da amostra diminuem gradativamente. É o chamado decaimento radioativo – e cada elemento químico apresenta diferenças nesse processo. Com isso, determinamos os elementos químicos de uma amostra, sem o seu processamento químico efetivo. Usamos apenas princípios de física nuclear.
A amostra precisa de alguma preparação?
Sim. É preciso levá-la a um estado de pulverização. Ela passa primeiro por uma secagem, em estufa ou por liofilização [processo de desidratação por sublimação]. Depois tem que ser transformada em um pó. Há moinhos para fazer a moagem com a granulometria desejada. A amostra em pó é colocada em cápsulas de polietileno ultrapuro. Em seguida, é enviada ao reator nuclear de pesquisas do Ipen [Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares], em São Paulo. Lá, é irradiada com nêutrons, e os nuclídeos dessa amostra se transformam – passam para o tal estado excitado. Após dois ou três dias, as amostras são liberadas e voltam ao Cena.
O acidente com césio-137 ocorrido em Goiânia colocou o Brasil na lista de países contaminados com radioatividade
E o que acontece lá?
Ao retornar ao estado fundamental, as amostras emitem radiações características dos elementos químicos presentes nela. Um espectrômetro detecta a radiação gama e transforma esses dados em sinais elétricos que geram um espectro de contagens em função da energia emitida. Dependendo da matriz da amostra irradiada, é possível determinar até 40 elementos químicos de uma vez. A tradução, ou melhor, a deconvolução dos espectros gama e o cálculo das frações de massa dos elementos químicos são feitos por um pacote computacional criado pelo engenheiro-agrônomo Márcio Arruda Bacchi. Trata-se de uma ferramenta robusta, especialmente pelo fato de não necessitar da dissolução da amostra, como ocorre com o método mais usual. Essa é uma das vantagens da análise por ativação neutrônica. Para se fazer a dissolução, usam-se ácidos, mas nem sempre se consegue identificar na solução resultante todos os elementos químicos presentes na amostra original, pois parte deles foi destruída pelos ácidos.
No caso da carne bovina, como é feita a diferenciação? Tem algum elemento químico na carne argentina que não tem no produto brasileiro?
Os elementos químicos, em sua maioria, são os mesmos na carne daqui e de lá, mas há os que variam conforme o local onde o animal foi criado. Também diferem conforme a raça, a alimentação, o bem-estar durante a vida, a forma de abate. Tudo isso fica, de alguma forma, registrado na composição química da carne. O fingerprint [assinatura química] daquela amostra vai variar segundo essas características. A discriminação não se baseia apenas nos teores individuais dos elementos, mas nas relações entre eles, o que torna o fingerprint uma ferramenta poderosa para determinar a origem da carne. Ao longo do nosso projeto, publicaremos os elementos que caracterizam cada região e os modelos que permitem identificar a origem das amostras por meio das relações entre esses elementos químicos.
Há alguma desvantagem na técnica de análise por ativação neutrônica?
Não posso dizer que seja desvantagem, mas há a necessidade de um reator nuclear para fazer a irradiação. Como não temos esse equipamento no Cena, recorremos ao Ipen. Contudo, ela apresenta méritos e elevado rigor metrológico. Em 2001, participei de um grupo de trabalho criado em Paris para demonstrar as características de medição em estudos-piloto e comparações promovidos pelo Bureau Internacional de Pesos e Medidas [BIPM] e outras entidades. Seis anos depois, a técnica foi reconhecida como método primário de medição pelo Comitê Consultivo para a Quantidade da Matéria – Metrologia em Química e Biologia [CCQM] do BIPM. É a mais alta categoria para um método analítico.
Quando começou a trabalhar com essa metodologia?
Há 42 anos. Em 1982, iniciamos um projeto para lidar com um problema da cana-de-açúcar no estado de São Paulo, quando a colheita dela era ainda feita manualmente e com auxílio de pás carregadeiras. O método foi concebido para detectar a presença de resíduos do solo na cana processada pelas usinas. Esses resíduos acabavam danificando o maquinário. Fizemos um processo de rastreabilidade e, utilizando a técnica de análise por ativação neutrônica, conseguimos determinar o quanto havia de resíduo de solo na amostra. O escândio [metal de baixa dureza] foi escolhido como traçador de solo na cana-de-açúcar. Ele estava presente nos 10 tipos distintos de solo em que a variedade havia sido plantada, mas não na cana livre de impurezas. Queríamos investigar até onde esses resíduos poderiam chegar e o impacto que teriam. A rastreabilidade mostrou-se adequada para avaliar o teor de terra aderida à cana, bem como a eficiência dos processos de lavagem. Anos depois, em 1999, com uma tese de doutorado sobre metrologia dos cafés brasileiros, conseguimos diferenciar cafés advindos de produção orgânica, da produção convencional e do processo de transição [entre os dois sistemas] pelo fingerprint das amostras. Césio, cobalto e rubídio foram os elementos químicos que se destacaram como traçadores dessa diferenciação. Ora estavam mais concentrados em um sistema, ora em outro.
Quem mais trabalha no país com essa técnica?
Há pesquisadores no Ipen e no Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear [CDTN], em Belo Horizonte, mas muitos já se aposentaram. Em 2023, iniciei um projeto temático financiado pela FAPESP focado na transparência e na rastreabilidade da cadeia produtiva de commodities brasileiras com base na medição direta de isótopos e elementos químicos. Há na equipe pesquisadores do Ipen, da Embrapa Pecuária Sudeste, do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia] e de outros cinco países: Canadá, Áustria, Holanda, Bélgica e República Tcheca. As commodities envolvidas são a carne bovina, a madeira e a soja. Já temos um ano de projeto e conseguimos fazer algumas análises. Um artigo, com foco no perfil elementar de espécies de ipê para auxiliar no rastreamento de madeira da floresta amazônica, acaba de ser publicado na revista Trees, Forests and People. Apesar de todo mundo conhecer os diferentes tipos de ipê, o roxo, o amarelo, o branco etc., não se sabia que, por conta das cores, havia variações na composição química da madeira. Muito menos que há variações entre as espécies de ipê-amarelo existentes. Analisamos árvores de duas espécies e a composição química variou. É incrível. Esse primeiro trabalho com amostras coletadas na Amazônia evidenciou que cada espécie de árvore nativa tem a sua assinatura química. A partir desse trabalho, estamos elaborando um banco de dados com o fingerprint das diferentes espécies arbóreas da Amazônia. Esse banco será disponibilizado em publicações, especialmente, e de outras formas, seguindo a política de confidencialidade.
Como participou da análise de alimentos contaminados pelo desastre de Chernobyl?
O acidente nuclear de Chernobyl [na Ucrânia, então parte da antiga União Soviética] aconteceu em abril de 1986, quando eu fazia um curso em Viena. Na Europa, se formaram nuvens de material radioativo. Grande quantidade de leite em pó oriundo de países como França, Áustria e Suécia foi contaminada e deveria ter sido descartada. Mas parte do produto ia para a Irlanda, onde recebia nova embalagem e era exportado. Esse leite chegou ao Brasil. De volta a Piracicaba, trabalhando com técnicas analíticas capazes de fazer a detecção de radionuclídeos, comprei o leite importado, pois tinha filhos pequenos na época. Ele era vendido no supermercado por um preço inferior. Para nossa tristeza, havia nele radionuclídeos liberados na precipitação da nuvem nuclear. Rastreamos esses produtos e descobrimos que eram contaminados pela radiação de Chernobyl.
O que aconteceu a partir dessa descoberta?
Nada. Meu orientador de doutorado, Epaminondas de Barros Ferraz, hoje com 89 anos, ligou para um ministro na época, que prefiro não nomear, e avisou o que estava acontecendo. Com a notícia da possível contaminação, diretores de escolas infantis, públicas e creches traziam sacos com leite em pó aqui no Cena para análise. Passei várias noites analisando as amostras. Todo aquele leite estava contaminado. O professor Epaminondas alertou as autoridades, mas o produto já estava no mercado – e sua venda não foi proibida. Não chegamos a nenhuma conclusão sobre os efeitos do leite contaminado no organismo das crianças que o consumiram.
O número de pesquisadoras no Cena é reduzidíssimo. Somos apenas cinco mulheres em um grupo de 29 pessoas
Seu grupo atuou no caso do vazamento de césio-137 em Goiânia.
Sim, o maior acidente radioativo do Brasil aconteceu em setembro de 1987. Catadores de materiais recicláveis abriram inadvertidamente uma fonte de césio de uma clínica de radioterapia abandonada. Mais de 200 pessoas entraram em contato com o pó branco da cápsula. O professor Epaminondas foi convocado pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Chegando ao local, observou que crianças pegavam manga de uma árvore sob a qual a cápsula havia sido quebrada. Prevendo o risco a que o público estava exposto, ele solicitou que cercassem a área e coletassem amostras de folhas e frutos daquela mangueira. Eu analisei esse material no Cena. Quando colocamos a manga no detector de radiação gama, se viu um fotopico enorme correspondente ao césio-137. Chovia muito quando a cápsula foi manipulada. Parte do material que saiu da cápsula escorreu sobre o solo, chegando à raiz. A planta absorveu e, pelo fato de uma mangueira como aquela ter uma evapotranspiração enorme, circulou muita água contaminada. O césio saía pelas folhas, subia na atmosfera, depositava de novo nas folhas e nas mangas. Até o professor Epaminondas chegar ao local do acidente, muita gente pode ter consumido os frutos.
Que outras consequências o acidente causou?
Afetou o país, uma vez que o Brasil entrou para uma lista de países contaminados com radioatividade. O radionuclídeo césio-137 tem uma meia-vida física de 30 anos. Para que seja considerado não mais presente na natureza, são recomendadas cinco meias-vidas. Ou seja, 150 anos.
O Brasil, portanto, ainda está nessa lista.
Sim, vai figurar nela até meados do próximo século, uma vez que só decorreram até agora 37 anos. O setor de exportação foi muito afetado, porque os países compradores, independentemente de o episódio de ter sido limitado a uma região brasileira, podem exigir um certificado, um laudo de não radioatividade. A primeira commodity de exportação a ser questionada foi o café. Depois, o açúcar. As commodities brasileiras tiveram que se submeter a esses requisitos do comércio exterior. Já elaboramos mais de 100 mil certificados. As receitas provenientes desses serviços vêm propiciando investimentos em infraestrutura laboratorial, equipamentos e bolsas para alunos de graduação e pós-graduação, sendo relevantes para financiar atividades de pesquisa e desenvolvimento em técnicas analíticas nucleares, metrologia e inteligência artificial aplicadas à agricultura e a estudos ambientais. Continuamos a emitir esses certificados, uma vez que o Brasil permanece na relação de países atingidos por radiação.
Os produtos passam pelo Cena apenas para certificar a possível radioatividade?
Na documentação de exportação também estão exigindo um certificado de origem. Algumas instituições podem emiti-lo baseado em documentos, que são passíveis de fraude. Por isso, surgiu o projeto de rastreabilidade das commodities com ativação neutrônica. Uma coisa é você dizer que aquela amostra não veio de uma área desmatada. Outra é provar a partir de alguma característica intrínseca do material que ela realmente não veio. Somos pioneiros no país nessa certificação.
No último ano a senhora recebeu vários prêmios. O que sentiu?
É de respirar fundo, pois não estou acostumada. Sempre trabalhei timidamente e sem grande visibilidade, publicando, apresentando trabalhos no exterior, fazendo estágios. Durante a solenidade de formatura de 50 anos na Esalq, meus colegas me disseram: “Você sempre foi a melhor aluna da turma”. Então, acordei: “Acho que mereço”. Tenho mais contatos e reconhecimento fora do que no país.
Por quê?
Dirijo esse laboratório desde 1988, quando o professor Epaminondas se aposentou. Enquanto era ele, tudo ia bem. Mas depois passou a ser uma mulher a responsável. A luta é árdua para você se manter e mostrar a seus colegas que você é capacitada, independentemente do sexo. Tem sido assim até hoje. O número de pesquisadoras no Cena é reduzidíssimo. São cinco docentes mulheres em um grupo de 29. É uma coisa que vem de longe e, infelizmente, persiste.
Com essas premiações, meninas e jovens pesquisadoras podem se inspirar no seu exemplo.
Exatamente. Minhas alunas me dizem isso. Um dia a gente chega lá.