A microbiologista holandesa Elisabeth Bik tornou-se referência na identificação de indícios de erros e fraudes em artigos científicos, sobretudo imagens duplicadas ou manipuladas. Ela afirma ter analisado mais de 200 mil trabalhos, dos quais 5,5 mil tinham problemas. A pesquisadora escreve sobre eles no blog Science Integrity Digest, ao qual se dedica integralmente desde 2018, quando deixou seu emprego na uBiome, empresa de biotecnologia com sede na Califórnia, Estados Unidos. Paralelamente, também ministra palestras sobre má conduta científica e presta consultoria a editoras e instituições de ensino e pesquisa.
Formada na Universidade de Utrecht, Bik colabora assiduamente com plataformas como Retraction Watch, que monitora e noticia retratações de trabalhos científicos (ver Pesquisa FAPESP nº 282), e PubPeer, em que usuários discutem papers já publicados e sinalizam inconsistências. A pesquisadora foi uma das primeiras a apontar problemas na metodologia e nos achados do controverso artigo de autoria do médico francês Didier Raoult sobre o uso do antimalárico hidroxicloroquina e do antibiótico azitromicina no tratamento de pessoas com Covid-19. Desde então, sofre injúrias nas redes sociais e ameaças de processos por Raoult e seus colaboradores.
Bik falou a Pesquisa FAPESP em entrevista pelo Zoom em fins de outubro. De sua casa em São Francisco, tratou de sua carreira como pesquisadora, dos desafios para detectar imagens adulteradas em artigos e dos esforços das editoras para combater esse e outros tipos de má conduta científica, além das polêmicas envolvendo Raoult.
Como surgiu seu interesse por identificar fraudes em trabalhos científicos?
Participei de um evento sobre plágio em 2013 e, ao chegar em casa, resolvi jogar trechos de um artigo meu no Google Acadêmico. Esperava achar semelhanças com coisas minhas do passado, mas acabei encontrando trechos do meu texto em um trabalho mais recente de outra pessoa. Pensei que fosse azar, mas aí então encontrei outro trabalho com partes de artigos meus. Comecei a me dedicar a isso como um passatempo. Tempos depois achei uma tese de doutorado com trechos de um artigo que havia publicado. Ela também usava uma mesma imagem de western blot [para detectar proteínas] em diferentes capítulos para ilustrar coisas distintas, sendo que uma delas aparecia de ponta-cabeça. Passei a analisar outros artigos e percebi duas coisas: que eu tinha um talento para achar imagens duplicadas e que esse é um problema recorrente.
Como foi a decisão de se dedicar exclusivamente a esse trabalho?
Chegou um momento em que eu percebi que contribuiria muito mais com a ciência trabalhando com integridade científica do que em meu emprego tradicional. Eu e meu marido avaliamos nossa situação financeira e decidimos tentar por um ano. Se não funcionasse, voltaria para o emprego antigo. No fim, consegui fazer dar certo.
É difícil identificar fraudes em imagens na revisão por pares?
Nem sempre é fraude. Pode ser um erro honesto. Mas, em geral, observei que as revistas e os pareceristas não prestavam muita atenção nisso. Estão mais preocupados com plágio e falhas metodológicas nos manuscritos. Por isso decidi falar sobre esses casos no meu blog e nas minhas redes sociais. A ideia é fazer com que as pessoas fiquem mais atentas a esse problema e possam identificá-lo.
Os casos de imagens adulteradas ou duplicadas estão aumentando?
Acho que estão caindo, mas não tenho números que corroborem isso. Sei que a vigilância é maior e frequentemente recebo e-mails de revisores dizendo que identificaram imagens adulteradas. O problema maior são as fábricas de papers, que produzem imagens falsas e as incorporam a artigos científicos fraudulentos. É muito difícil conseguir reconhecê-las. São imagens únicas, criadas por inteligência artificial. Funciona como aqueles sites que criam rostos de pessoas que não existem a partir de pedaços de rostos reais em redes sociais ou bancos de dados. As fábricas de papers usam várias imagens reais para montar uma imagem única – e falsa. Você percebe alguma coisa errada, mas não consegue determinar o que é.
Qual é o tamanho desse problema?
É muito problemático porque envolve organizações criminosas. É algo recorrente na China por conta de uma exigência do governo. Para se formar no curso de medicina, os estudantes precisam publicar um paper. Mas eles não estão interessados nem têm tempo de fazer pesquisa. Então, compram artigos falsos. Esses papers se parecem muito uns com os outros, como se tivessem sido escritos a partir de uma mesma forma. Existem milhares deles infiltrados na literatura médica, de tal modo que esse fenômeno está minando a credibilidade e a confiabilidade dos artigos produzidos na China. Muitos editores estão se recusando a avaliar manuscritos feitos por pesquisadores vinculados a hospitais ou departamentos de medicina chineses.
Além das fábricas de papers, quais os problemas mais comuns envolvendo fraudes em imagens científicas?
Existem três categorias. A primeira é a das imagens duplicadas. Ou seja, a mesma imagem é usada para ilustrar coisas diferentes. A segunda diz respeito a imagens iguais e repetidas, mas apresentadas de formas distintas, de ponta-cabeça ou invertida. A terceira categoria se refere às duplicações dentro da imagem, isto é, quando a mesma célula aparece duas, três vezes na mesma figura.
Quantos artigos já escrutinou?
Uns 200 mil, dos quais cerca de 5,5 mil tinham problemas.
E quantos foram retratados?
Segundo a última contagem, 624.
Por que tão pouco?
Muitos estão em análise e podem ser retratados no futuro. Alguns não devem ser retratados porque são erros honestos e os autores estão cooperando para resolver o problema. Nesse caso, serão apenas corrigidos. Dos artigos que analisei, 509 já foram corrigidos.
Há alguma resistência de editores em retratar esses artigos?
Alguns estão apenas sobrecarregados com a quantidade de papers suspeitos para analisar. Já cheguei a enviar e-mails para editores com até 40 artigos problemáticos. Há situações em que o artigo suspeito é de autoria de alguém do corpo editorial do periódico, ou o editor é próximo do autor do artigo. Noto nesses casos que a coisa se desenvolve de forma mais lenta.
Como os artigos suspeitos chegam até você?
Costumo receber e-mails de pessoas pedindo para eu dar uma olhada em figuras desse ou daquele artigo porque suspeitam que elas têm problemas. Também me escrevem pedindo para analisar trabalhos de pesquisadores ou instituições específicos. Quando me deparo com um artigo suspeito, olho a lista de autores para ver se consta o nome de alguém que tenha assinado papers problemáticos no passado. Tento seguir algumas pistas.
É possível diferenciar um caso intencional de má conduta de um erro honesto analisando as imagens no artigo?
É difícil acreditar que se trata de um erro honesto quando você vê células iguais na mesma imagem, pois não há uma explicação técnica razoável para isso. É diferente quando se trata de imagens duplicadas. Às vezes, você percebe pela legenda que era para outra imagem estar ali. Pode ter dado algum problema na geração do arquivo. Por isso, costumo não fazer acusações quando indico esses casos para os editores. Apenas escrevo dizendo que parece ter algo errado.
Você usa algum software para analisar imagens adulteradas ou o faz manualmente?
Fazia tudo no olho até alguns anos atrás. Hoje uso um software chamado ImageTwin. Ele funciona bem com algumas imagens. Consegue achar semelhanças em segundos. Mas não dá para confiar totalmente nele. Esse programa já deixou passar duplicações bastante óbvias, mas também já identificou algumas que eu jamais teria encontrado sozinha.
Os softwares de imagem ainda não são tão bons quanto os usados para plágio, não é?
Os softwares de plágio também têm limitações. O ponto é que sempre será necessário um ser humano para analisar os resultados desses programas. Existem softwares que identificam quando você usa aspas em uma citação para definir um conceito em um artigo, mas, se você coloca essa mesma definição em itálico, o programa não faz o reconhecimento.
As editoras estão investindo para melhorar os softwares de análise de imagem?
Elas estão testando algumas opções, mas não sei qual o estágio de desenvolvimento disso. Eu queria ter acesso a esses programas para testá-los. Já compartilhei meus dados com pessoas que diziam estar trabalhando no desenvolvimento desses programas com a condição de que pudesse testar o produto final, mas não tive retorno.
Poderia explicar o processo que Didier Raoult diz estar movendo contra você?
Um de seus colaboradores anunciou em abril no Twitter que Raoult havia entrado com um processo contra mim. Publicou a foto de uma queixa que ele teria submetido a um procurador de Marselha, na qual constava meu endereço pessoal. Ele deletou esse post depois. Alguns jornais foram atrás dessa história. Pelo que soube, até agora ele não entrou com um processo. Parece se tratar de um boletim de ocorrência, em que ele me acusa de assédio, chantagem e extorsão.
No que se baseiam essas acusações?
Em comentários que fiz sobre seus estudos no PubPeer. Toda vez que alguém comenta um estudo nessa plataforma, os autores recebem um e-mail. Eu postei mais de 60 comentários sobre artigos de Raoult, sobretudo aquele envolvendo a hidroxicloroquina, de modo que ele recebeu mais de 60 e-mails meus. Seja como for, não acredito que isso seja um processo. Parece mais uma ameaça.
Quais os problemas que você identificou no estudo dele sobre o uso da hidroxicloroquina contra a Covid-19, em 2020?
O estudo envolvia um grupo pequeno de participantes e eles não foram divididos de forma randomizada em grupo controle e de tratamento. Tampouco eram do mesmo hospital. Alguns não responderam bem à hidroxicloroquina. Um morreu. Outros foram transferidos para a UTI. Ocorre que esses indivíduos foram deixados de fora da pesquisa e isso, claro, influenciou os resultados. Não bastasse isso, o trabalho teve início antes do aval do comitê de ética. Raoult submeteu o artigo ao International Journal of Antimicrobial Agents em 16 de março de 2020. Ele foi aceito um dia depois e publicado on-line em 20 de março. Isso significa que a revisão por pares foi feita em apenas 24 horas. Descobriu-se depois que um dos autores era editor da revista que publicou o artigo.
Após esse episódio, você passou a ser atacada no Twitter. Como isso afetou seu trabalho?
Não é agradável ler mensagens cruéis sobre você na internet. Se fosse apenas uma ou outra pessoa com poucos seguidores me insultando, tudo bem. O problema é que alguns perfis têm milhares de seguidores. E não são apenas desconhecidos. Há também acadêmicos, como Eric Chabrière, que divulgou meu endereço. Ele é professor no instituto que Raoult dirige e publicou e compartilhou várias montagens comigo atrás das grades, além de posts com frases do tipo “Você será presa se vier à Europa” ou “Eu vou te visitar na cadeia”. Também são recorrentes as tentativas de me desqualificar como cientista.
De que forma?
Eles insinuam que eu sou paga por empresas farmacêuticas. Também dizem que eu só tenho 40 artigos publicados, enquanto Raoult tem 3,5 mil.
Ele respondeu aos seus comentários no PubPeer?
Não. Prefere me atacar no YouTube, com textos em francês e ameaças judiciais.
Existem milhares de artigos falsos produzidos por fábricas de papers na China infiltrados na literatura médica
É comum os pesquisadores lidarem mal com as suas críticas?
Esse comportamento se restringe a um tipo específico de cientista, abusivo, acostumado a fazer as coisas do seu jeito, que acha que está sempre certo. A maioria sabe lidar com críticas e com os próprios erros. Ninguém gosta de ver seu trabalho sendo contestado, mas os pesquisadores com quem tive problemas poderiam ter refutado minhas considerações com dados ou documentos. Se recorreram a ameaças e insultos é porque não tinham argumentos.
Muitos artigos sobre a Covid-19 foram publicados em plataformas de preprints, sem revisão por pares. Houve muitos problemas?
Não acho que isso tenha aumentado os casos de má conduta. O problema principal, a meu ver, é que muitos papers sobre a Covid-19 são ruins. São artigos do tipo “Os impactos da Covid-19 em pacientes pediátricos” ou “Os impactos da Covid-19 em pacientes com câncer”, com dados fracos ou irrelevantes, mas que não necessariamente envolvem má conduta.
Editoras e universidades costumam convidá-la para palestras e consultoria. O que você oferece a elas?
Nas palestras falo mais sobre as fábricas de papers e como identificar artigos falsos. Minhas consultorias consistem em analisar casos de artigos suspeitos de ter imagens adulteradas. Quando algum usuário do PubPeer sugere que um trabalho pode ter problemas, a instituição à qual o autor é vinculado ou as editoras me pedem para analisar o caso e indicar se as suspeitas têm fundamento. Essas instituições também me chamam para analisar casos que ainda não estão públicos.
O que a comunidade científica pode fazer para diminuir os casos de má conduta?
Acho que se deve olhar mais para o que acontece nos laboratórios. Muitos ainda são chefiados por pesquisadores abusivos que se aproveitam de sua posição para assediar, insultar ou ameaçar seus subordinados. Muitas vezes jovens cientistas praticam má conduta para conseguir atender as demandas de seu superior e salvar seus empregos. Acho que as instituições devem ouvir mais os pesquisadores jovens.
Você acha que o seu trabalho pode se tornar uma especialidade no futuro?
Sim. Algumas editoras estão contratando pessoas para escrutinar papers suspeitos de problemas com imagens e coordenar processos de controle de qualidade. Também tenho visto universidades interessadas em profissionais desse tipo para analisar artigos de seus pesquisadores antes de eles serem submetidos para revisão.
Vi que você usa seu Twitter para ensinar as pessoas a identificar imagens duplicadas.
Secretamente estou treinando meus seguidores.