No início dos anos 1980, a bióloga Eliza Maria Xavier Freire saía para coletar lagartos e cobras em matas próximas a Natal, no Rio Grande do Norte, quando essa atividade ainda era vista como exclusividade dos homens. Sofreu alguns preconceitos, mas se tornou uma das referências nacionais em herpetologia – o estudo de répteis e anfíbios –, especialmente nos bichos da Caatinga e da Mata Atlântica do Nordeste.
Desde o mestrado, no início dos anos 1980, ela identificou oito novas espécies de anfíbios, serpentes e lagartos – um deles com 3 centímetros (cm) – e ajudou a mostrar que a biodiversidade da chamada herpetofauna do Nordeste era maior do que se presumia. Com sua equipe, descreveu comportamentos desconhecidos, como um lagarto que acompanha a fêmea depois da cópula, de modo que outros machos não cheguem perto.
Herpetologia
Instituição
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Formação
Graduação em ciências biológicas pela UFRN (1982), mestrado em zoologia pela Universidade Federal da Paraíba (1988) e doutorado em zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001)
A herpetóloga complementou a formação, iniciada no Nordeste, com períodos em São Paulo e no Rio de Janeiro e conviveu com grandes especialistas de sua área. Deu aulas e formou jovens pesquisadores na Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e da Paraíba (UFPB) antes de voltar como professora, em 2001, à UFRN, onde está em plena atividade. A sala da coleção de anfíbios e répteis do museu da Ufal tem seu nome, em reconhecimento ao que fez por lá.
Entusiasmada, falante e divertida, ela vive com o casal de filhos adultos e concedeu a entrevista a seguir por plataforma de vídeo no início de junho.
Desde seu mestrado sobre lagartos, passaram-se 40 anos. O que mudou nesse tempo na herpetologia?
A herpetologia no Nordeste e em outras regiões avançou bastante. Com problemas, mas avançou. Miguel Trefaut Urbano Rodrigues, da USP [Universidade de São Paulo], eu e muitos outros pesquisadores mostramos que a biodiversidade de répteis e anfíbios no Nordeste é muito maior do que se pensava. Fui com Miguel algumas vezes às dunas do rio São Francisco, um centro de endemismo [local de ocorrência exclusiva] para répteis, principalmente lagartos [ver Pesquisa FAPESP nos 57 e 169]. A mata de Murici, em Alagoas, é outro centro de endemismo. É maravilhosa. Das oito espécies novas que descrevi, seis são de lá. Uma delas é endêmica, a jararaca-de-murici, Bothrops muriciensis. A primeira espécie que descobri e descrevi é a de um dos menores lagartos do mundo, o menor da América do Sul e endêmico aqui do Rio Grande do Norte: Coleodactylus natalensis, com 3 cm. Era bem jovenzinha quando encontrei, estava no mestrado, mas só descrevi em 1999. Encontrei o lagartinho pela primeira vez no Parque das Dunas, que tem uns cordões de dunas e restingas, intercalados por mata. É parte da Mata Atlântica, que termina na praia de Touros, 80 quilômetros [km] ao norte de Natal. Existe uma hipótese de que a Mata Atlântica é anterior às dunas e ficou exposta quando o nível do mar estava muito mais baixo do que atualmente. Os ventos atuando na praia e as ondas movendo a areia do fundo do mar ao longo de milhares de anos formaram as dunas. Andando por lá, é visível a areia soterrando a mata, como se as dunas realmente tivessem surgido depois.
Eu e outros pesquisadores mostramos que a biodiversidade de répteis e anfíbios no Nordeste é muito maior do que se pensava
Como foi fazer um trabalho que era apenas realizado por homens?
Nos anos 1980, quando comecei, pegar lagartixa e cobra no meio do mato não era coisa de mulher. Atualmente há muitas herpetólogas, mas não era assim na época. Aqui no Nordeste, menos ainda. Eu ia com um professor, médico, apaixonado por biologia, Adalberto Varela-Freire. Ele criava cobras. Apesar do sobrenome igual, não somos parentes. Como sempre andávamos juntos e sozinhos pelas dunas, acabei ficando “falada”, por acompanhar um homem no mato. A geração mais antiga de professores era muito machista e, se houvesse algum problema, as mulheres eram as culpadas. Mas mudou. Hoje as mulheres se juntam e fazem barulho. Voltando: Adalberto era uma pessoa muito generosa e muito tímida. Fomos primeiro para o Parque das Dunas, que ainda hoje funciona como um laboratório a céu aberto em frente à universidade. Coletei alguns lagartinhos, depois fomos para as matas de Santa Cruz [município do Rio Grande do Norte, a 116 km da capital].
O machismo só acontecia no campo?
Não. Eu fui professora na Ufal e, ao mesmo tempo, fazia doutorado no Museu Nacional da UFRJ. Fui muito bem acolhida, especialmente por meu orientador, Ulisses Caramaschi, mas vivi situações discriminatórias, apesar de já ser docente de uma universidade federal. Outra coisa que mudou nesses 40 anos é que o espaço das mulheres aumentou bastante. Tomei posse em janeiro como presidente da Sociedade Brasileira de Herpetologia, a SBH. Sou a segunda presidente mulher, sucedendo Denise Rossa-Feres, especialista em anfíbios. Agora existem grupos de trabalho só de mulheres e todas se ajudam. Juntas, publicamos em 2020 um artigo na Herpetologia Brasileira, uma das revistas da SBH, contestando um pesquisador de fora do Brasil que disse que, se as mulheres se davam bem nessa área, é porque foram orientadas por homens. Quando vimos isso, tocamos fogo.
O que pretende fazer na SBH?
Planejamos muitas atividades inclusivas, sempre em parceria com as demais companheiras da diretoria. Uma delas é estimular os alunos e alunas, desde a iniciação científica, a se associarem, acompanhar as pesquisas sobre a herpetologia no Brasil e até mesmo publicar na principal revista da Sociedade, a South American Journal of Herpetology. Outra é consolidar os minicursos sobre répteis e anfíbios para professores do ensino fundamental e médio, que começamos no final do ano passado, com participação de 42 municípios do país inteiro. São cursos presenciais, com bichos expostos e tudo. Os monitores são os alunos que fazem iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado com pesquisadores das instituições participantes. Passar por essas situações faz parte da formação deles.
Você também trabalhou na área de conservação ambiental.
Quando saí da Ufal e vim de Maceió para Natal, vi que, à época, só havia dois programas de pós-graduação no Centro de Biociências da UFRN, um de psicobiologia e outro de bioquímica. Em Alagoas havia a rede Prodema, Programa Regional de Pós-graduação em Desenvolvimento em Meio Ambiente, do qual a UFRN não fazia parte. Comecei a divulgar o Prodema e, com pessoas das ciências biológicas, humanas e sociais, elaboramos a proposta do programa, que foi aprovado pela Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Coordenei durante 13 anos, até 2018. Eu disse que sairia da coordenação só quando o programa estivesse consolidado. Reunindo o pessoal da biologia e das ciências humanas, temos estudado problemas e transformações ambientais importantes. Um deles: o Rio Grande do Norte está tomado de aerogeradores para turbinas eólicas. Falam em energia limpa e preservação, mas sabe o quanto já devastaram? Isso impacta o ambiente. Vou dar um exemplo: é difícil coletar anfisbenas no campo. Trata-se das chamadas cobras-de-duas-cabeças, mas na verdade não são cobras nem têm duas cabeças. É um intermediário entre lagarto e cobra, com vida subterrânea, de coleta em campo relativamente difícil. Faz pouco tempo, um ex-aluno que trabalha em uma empresa de consultoria ambiental trouxe 84 anfisbenas feridas ou mortas, resgatadas de uma área em que se revirava o solo para fazer terraplanagem para a instalação de mais turbinas eólicas. E ainda dizem que a energia limpa não causa impacto ambiental.
O que destacaria sobre as pesquisas de seu grupo com comportamento de répteis?
Temos trabalhos muito interessantes sobre dieta, procura por alimento, regulação da temperatura corporal e reprodução. Avançamos bastante especialmente com o Peld [Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração] da Caatinga, financiado pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Destaco os trabalhos com lagartos tropidurídeos [da família Tropiduridae] que vivem sobre pedras grandes, chamados saxícolas, que achatam o corpo na rocha quando está frio, de modo a pegar o máximo de calor armazenado ali. Quando chega meio-dia, eles somem. Se fica algum, mantém só as pontinhas dos dedos encostadas nas rochas, com o corpo arqueado, longe da fonte de calor, porque não conseguem regular a temperatura do corpo; esse processo foi parte das teses de Leonardo Ribeiro e Miguel Kolodiuk. Outro exemplo: um aluno que está comigo desde a graduação e recentemente concluiu o pós-doutorado, Raul Sales, estudou a reprodução de um lagarto que por aqui chamam de calanguinho, Ameivula ocellifera. Ele observou que, quando o macho sabe que a fêmea está na toca, ele fricciona a cloaca e a parte ventral das patas posteriores, que contêm poros como abertura de glândulas, até que a fêmea saia, provavelmente atraída pelo cheiro. Aí começa o ritual de reprodução. O macho mordisca atrás do pescoço da fêmea, ela levanta a cauda e ele exterioriza o hemipênis e faz um enrosco para atingir a cloaca. Depois da cópula, ele continua seguindo a fêmea, impedindo que outro macho chegue perto.
Com seu grupo, você tem feito também estudos com a ecologia da Caatinga, inclusive bromélias. O que encontraram de mais interessante?
Orientei o doutorado de Jaqueiuto Jorge, que estudou a herpetofauna de macambiras-de-flecha ou macambira rupícola [Encholirium spectabile], uma espécie de bromélia espinhosa, que não acumula água em seu interior e vive sobre rochas expostas no semiárido. Obtivemos resultados extraordinários, especialmente sobre anfíbios, que dependem dessas plantas para abrigo e reprodução. Coletamos também dados sobre aves e artrópodes, abelhas em especial, e vimos que essas bromélias são promotoras de biodiversidade, e verdadeiras engenheiras de ecossistemas. Elas são bastante utilizadas pelas comunidades locais, tanto para alimentação do gado em períodos de estiagem como para fabricação de artesanatos, com as plantas secas.
Por que os bichos da herpetologia, principalmente os anfíbios, geralmente são malvistos por quem não os estuda?
É um problema cultural; geralmente se deve a medo ou nojo. É uma pena, porque já há uma perda significativa de diversidade de espécies de anfíbios e répteis, no mundo todo, por causa de perda de hábitat, doenças ou mudança do clima. Nas aulas, faço um carnaval, mostro que eles fazem muito mais bem do que mal, porque se alimentam de insetos e roedores. Ou seja, promovem o controle biológico natural de pragas. Os estudantes saem das aulas com outra visão.
Como chegou ao Instituto Butantan, no início de sua carreira de pesquisadora?
O Adalberto não saía de Natal. Os alunos estavam se formando e ele não ia nem para o mestrado em biologia, embora gostasse muito, por causa de sua timidez. Mas tinha credibilidade pelo que já havia feito. Antes dele, estudando répteis, especialmente cobras, no Nordeste, houve o José Santiago Lima-Verde (1945-2019), da UFC [Universidade Federal do Ceará]. Em 1981, Adalberto recebeu um convite para participar do primeiro congresso internacional de serpentes e de artrópodes peçonhentos, no Instituto Butantan. Eu estava na graduação. Quando vi o cartaz e o convite, perguntei se iria, mas ele não gostava de sair de Natal. Sugeriu que eu fosse, topei. O problema era como. Eu não tinha bolsa, mas, não lembro como, consegui comprar uma passagem de ônibus. Foram três dias para chegar em São Paulo. No congresso, vi que tinha mais pesquisadores do que estudantes. Sentei perto dos mais jovens, e foi como conheci Pedro Federsoni Júnior, que depois foi diretor do museu do Instituto Butantan. Puxei conversa, contei por que estava ali e ele disse: “Você é corajosa, veio sozinha”. Aproveitei e perguntei quem era Alphonse Richard Hoge [1912-1982], um brasileiro filho de franceses, o “top” da herpetologia na época, para quem eu queria pedir um estágio. Pedro indicou e, no intervalo, me apresentei e disse que meu sonho era fazer um estágio no Butantan. Ele ficou me olhando e topou me ajudar, pela minha coragem de chegar até lá e falar com ele. Consegui o estágio, mas não podia começar porque iria colar grau no final daquele ano. Voltei para Natal e vi que a universidade dava um prêmio em dinheiro para o melhor aluno e para o melhor trabalho final de graduação. Faltavam seis meses e decidi buscar esses prêmios. Consegui: no dia da minha colação de grau, recebi o diploma de bacharel em biologia, o diploma de aluno distinto pelo primeiro lugar com uma monografia sobre acidentes com animais peçonhentos na microrregião da Borborema Potiguar e adjacências, o prêmio em dinheiro e a medalha de mérito estudantil. Tenho até hoje. Com o dinheiro do prêmio consegui comprar uma passagem de avião. Mas ainda tinha de pensar em como me manter nos três meses de estágio em São Paulo.
Nos anos 1980, quando comecei, pegar lagartixa e cobra no meio do mato não era coisa de mulher
Como resolveu?
No dia seguinte à colação de grau, botei a monografia e os diplomas embaixo do braço e fui falar com o pró-reitor de assuntos estudantis. Disse que tinha sido convidada para um estágio no Butantan, mas não tinha como viver em São Paulo durante esse tempo. Ele disse: “Posso conseguir um auxílio, só por três meses”. E fui. Havia um técnico maravilhoso no Butantan, Joaquim Cavalheiro [1930-2020], o seu Quim, que nos ensinava tudo. Eu chegava às 7h30 para identificar cobra, cuidar de cobra, o que fosse necessário. Quando terminou, fui à sala do doutor Hoge para me despedir. Ele sugeriu que eu ficasse mais, mas não tinha bolsa. Como já tinha ouvido falar no [Paulo Emílio] Vanzolini [1924-2013], do Museu de Zoologia da USP, resolvi procurá-lo para ver se conseguia estágio ou orientação de mestrado. Quando cheguei lá, uma assistente do Vanzolini, Regina Spieker, me atendeu e disse que não adiantava esperar, porque não tinha marcado e ele não teria vaga naquele dia. Mas me deu uma sugestão: “Olhe, você é do Nordeste, o melhor aluno de doutorado dele, o Miguel Trefaut Rodrigues, está terminando o curso agora, vai passar um tempo como professor da UFPB e trabalhar com os bichos de lá. Veja se consegue fazer o mestrado com ele”. Fui para a Paraíba, me inscrevi em um curso de especialização em sistemática [classificação] zoológica; era a única forma de conhecer de fato o tal Miguel. Fui selecionada, consegui uma bolsa do CNPq, me mudei para lá e fiz o curso, durante três meses. Quando estava terminando, conversei com o Miguel e ele me perguntou por que não me inscrevia para fazer a seleção para o mestrado, dali a dois meses. Propus: “Se você quiser, posso começar a trabalhar já com algum tema legal”. E ele disse: “Então vá para casa e faça um projeto”. Passei a noite acordada e fiz um projeto de pesquisa com foco no Parque das Dunas, contei que já tinha coletado lá uns lagartos interessantes, e os olhos dele brilharam quando leu, porque era o que estava procurando.
Como fazer o curso sem dinheiro?
Fiz a seleção do mestrado na UFPB, fui aprovada e ganhei bolsa do CNPq. Fui a primeira aluna de mestrado do Miguel. Iniciado o projeto, ele avisou que iríamos para a restinga de Ponta de Campina [município de Cabedelo, na Grande João Pessoa], uma das minhas áreas de trabalho. Chegando, ele arrumou uma lata, pegou uma garrucha, botou a bala e me deu: “Atire”. Eu nunca tinha dado um tiro, mas tinha de aprender porque era assim que pegávamos alguns lagartos maiores, sempre com licença ambiental, mas para os menores geralmente usamos armadilhas. Acertei. Ele botou a lata mais distante, expliquei: “Não sei, esse foi o primeiro tiro”. E ele: “E daí? Se errar, errou. Vamos lá”. Não sei como, mas acertei. “Pronto, a partir da semana que vem tem um carro da universidade que vai deixá-la aqui de manhã e pegá-la às 5 horas da tarde.” Uns seis meses depois, o Miguel volta para a USP. Fiquei um tanto desnorteada e insegura por estar começando. Então terminei os créditos, fui para lá também e me alojei na sala do Miguel. Terminei a dissertação, voltei e defendi na UFPB. Fiz o concurso para a Ufal e passei.
O que fez por lá?
Em Alagoas, para onde se olhava havia Mata Atlântica, e eu queria saber que espécies de lagartos viviam somente ali. Encontrei um aluno que conhecia as matas e, trabalhando ali por cerca de quatro anos, descrevi seis espécies novas. Fiquei quase especialista em Mata Atlântica. Mas, retornando do doutorado no início de 2001, pedi transferência para a UFRN. Antes de iniciar o doutorado, me separei. Tinha 33 ou 34 anos, uma filha de 4 anos e um filho de 2. Tinha entrado no doutorado e não podia levá-los. Ficaram com minha mãe. Ela perguntou quanto tempo eu precisava, pedi um ano para fazer os créditos, no Rio de Janeiro. Sofri muito, mas eles sofreram muito mais, porque minha mãe era das antigas e a criação era diferente, rigorosa. Antes de sair da Ufal, criei a sala da coleção de herpetologia do Museu de História Natural da universidade. Quando o museu fez 20 anos, me homenagearam com o nome “Sala Professora Eliza Freire Juju”. Todo mundo me conhece como Juju, por causa de uma personagem da novela O bem-amado, de 1973.
Por que fez o doutorado no Museu Nacional?
Eu queria muito continuar com o Miguel, mas o processo de seleção do Museu Nacional era um semestre antes do que seria na USP. Minha prioridade era optar pelo que adiantasse mais a minha vida. Meu orientador foi Ulisses Caramaschi, que foi contemporâneo do Miguel no doutorado com o Paulo Vanzolini. Me mantive próxima do Miguel, ele foi da minha banca examinadora. Sou muito grata aos meus dois orientadores.
Todos ficavam em uma mesa, da 1ª à 8ª série, e a professora falava de assuntos diversos com diferentes alunos
Desde quando gosta de répteis e anfíbios?
Comecei a me interessar por lagarto e cobra nas coletas do Adalberto nas dunas e em Santa Cruz. Mas minha paixão hoje é lagarto. Nasci em Pendências, interior do Rio Grande do Norte. Uma família típica do Nordeste, com sete filhos, muito pobre. Meu pai era salineiro e minha mãe dona de casa. Tivemos de morar no mato, porque meu pai só conseguiu alugar um casebre que era uma bodega, um comerciozinho, no distrito de Logradouro, município de Carnaubais, no Rio Grande do Norte. De um lado da bancada de venda ficava a rede de um, do outro lado a rede do outro, dois filhos em uma cama em outro espaço, ele com a mamãe na cozinha. Quando amanhecia, o Sol aparecia por um buraco na parede. Meus pais faleceram ano passado, com seis meses de diferença. Viveram juntos por 66 anos. Eles sempre diziam: “A única forma do filho do pobre sentar de igual para igual com o filho do rico é pela educação”. Tínhamos muita dificuldade, até de alimentação, mas eles incentivavam o estudo. Cinco filhos fizeram universidade. Só as duas mais novas pararam de estudar para se casar.
Era possível estudar em Pendências?
Fiz o primário [ensino fundamental I] lá no lugarejo, Logradouro. A escola era na verdade uma casa grande, de uma família tradicional, cuja sobrinha era professora. Todo mundo ficava em uma mesa grande, da 1ª à 8ª série, e a professora falava de assuntos diversos com diferentes alunos. Meu irmão mais velho já tinha ido morar com minha avó em Pendências para fazer um primário melhor. Quando terminei o primário, avisei minha mãe que queria fazer o exame de admissão ao ginásio [ensino fundamental II] em Pendências. Fui com a cara e a coragem e passei. Como o ginásio era à noite, durante o dia eu ajudava minha tia, que era professora e também morava ali, a cuidar de minha avó paterna, que era cega e paralítica. Minha tia me ensinou a fazer plano de aula no caderno, aprendi a dar aula com ela. Quando minha avó ficava doente, eu a substituía na escola. Como os outros irmãos já estavam no ginásio, minha mãe viu que teríamos de mudar para fazermos o colegial [ensino médio]. Fomos para uma cidade próxima, Macau, a maior produtora de sal do estado. Meu pai foi transferido para uma salina que era lá também, com uma função melhor, e minha mãe era sacoleira, vendia perfumes, para ajudar a pagar o aluguel. Em Macau, só havia curso técnico em contabilidade, para os homens, e pedagogia para as mulheres serem professoras. Não sei de onde tirei a ideia, mas disse para minha mãe que não queria ser nem uma coisa nem outra. Queria ser cientista.
O que fez?
Tive sorte. Um tio comerciante tinha convidado meu irmão mais velho para trabalhar e morar com ele, em Natal, enquanto estudava em outra modalidade do colégio, o científico, que era o que me interessava. Mas meu irmão não quis ir. Eu ouvi a conversa, chamei minha mãe no cantinho e pedi: “Já que ele não quer ir, eu quero. Pergunta se o tio me leva”. Meu tio aceitou. Nos anos 1970, os colégios públicos eram maravilhosos, mas havia uma concorrência enorme para entrar. Os pais faziam fila de madrugada. Minha mãe veio, pegou a fila e conseguiu uma vaga para mim. Eu estudava à noite e trabalhava em um escritório de venda de açúcar. Na época do vestibular, uma prima me convidou para ficar na casa dela e estudarmos juntas. Encontramos uma amiga que tinha estudado no mesmo colégio, um ano à nossa frente, e tinha passado em ciências biológicas. Perguntei: “E você vai fazer o quê?”. “Ah, vou ser cientista.” Pronto. Minha prima e eu fomos para ciências biológicas, mas era separado: ela foi para licenciatura, para formação de professores do ensino fundamental e médio, e eu para o bacharelado, mais para a pesquisa. Morei um ano na residência universitária, para estudantes carentes. Depois disso, meu pai se aposentou e minha mãe o convenceu a se mudarem para Natal e voltei a morar com eles. Para sair do aluguel, ela se inscreveu no financiamento de uma casa em um conjunto habitacional em Ponta Negra, hoje uma área nobre da cidade. Meu pai reclamou: “Você é maluca, ali é lugar de gente rica”. “Você quer ir para a zona norte? Jamais. Quero um ambiente bom para meus filhos”, disse minha mãe. “Como a gente vai pagar?”, ele perguntou. “Trabalhando”, foi a resposta. Meu pai não tinha renda para o contrato com a Caixa Econômica Federal, mas meu irmão já trabalhava. Somando tudo, conseguiram.