Desde o início de 2020, a médica reumatologista Eloisa Silva Dutra de Oliveira Bonfá está no centro do combate à pandemia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FM-USP), o maior centro médico da América Latina e referência para a Covid-19 em São Paulo. Como diretora clínica do HC desde 2011, com sua equipe, ativou o plano de desastre um mês antes do primeiro caso de Covid-19 ser diagnosticado no Brasil e antecipou a compra de luvas, máscaras e outros materiais de que precisariam para trabalhar. Em março, o comitê de crise, de que ela participava, transformou o Instituto Central em um espaço exclusivo para pacientes com Covid-19, transferindo o pronto-socorro e 35 clínicas especializadas para outras unidades do HC. No início da pandemia, um dos grandes problemas foi a falta de leitos de UTI, que em dois meses passou de 85 para 300, e de pessoal – a equipe foi de 4 mil para 6 mil integrantes.
Bonfá teve de motivar as equipes, gerenciar o medo de se infectarem com uma doença desconhecida, enfrentar protestos de médicos residentes e aprender a pedir doações, já que não havia dinheiro para contratar os reforços de que precisava. Nesta entrevista, concedida por plataforma de vídeo, ela contou que também viu colegas se destacarem como lideranças criativas ou que, mesmo exaustos, pediam para trabalhar mais.
Nascida em Ribeirão Preto, casada com um economista e mãe de três filhos adultos, ela voltou recentemente a um ritmo quase normal, incluindo idas a restaurantes e caminhadas noturnas, três vezes por semana, acompanhada pelo marido.
Especialidade
Reumatologia
Instituição
Universidade de São Paulo (USP)
Formação
Graduação em medicina pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (1981), doutorado pela Faculdade de Medicina da USP (1991)
Produção
377 artigos científicos e coautoria em 6 livro
Quase dois anos depois do início da pandemia, como está sua vida?
Ainda evito lugares fechados e com muita gente, mas já vou a um restaurante aberto e ventilado. Temos no Brasil uma capacidade de vacinação muito grande, sem a resistência que existe em outros países. O resultado é um declínio constante do número de casos. Isso abre uma perspectiva de, no médio prazo, repensar a nova forma de viver pós-Covid. A Covid-19 não desapareceu, ainda que a taxa de ocupação de leitos reservados para essa doença esteja muito baixa. Nosso hospital é referência para casos graves e com a vacinação diminuíram muito. Atualmente estamos com 30% dos leitos ocupados.
Como o HC se preparou para enfrentar a pandemia no início de 2020?
Enfrentamos crises há muito tempo no HC. Uma das integrantes da diretoria clínica, a doutora Bia [Maria Beatriz de Moliterno Perondi], é especializada em desastres. Em 2010 ela foi como voluntária ao Haiti para ajudar a atender as pessoas atingidas pelo terremoto. Em 2013, montamos um comitê de crise, ativado sempre que se prevê uma demanda maior do que a nossa capacidade de atender. Além da febre amarela e da Covid-19, o comitê foi ativado em um incêndio no Memorial da América Latina [em 2014], na Copa do Mundo [de 2014, em São Paulo] e na greve dos caminhoneiros [de 2018], porque temos 2.400 leitos e a greve poderia dificultar a entrega de comida para os pacientes. Ativamos o comitê novamente em 29 de janeiro de 2020. Não havia ainda nenhum caso de Covid-19 no Brasil, mas começamos a comprar gorro, luva, tudo o que seria necessário para trabalhar. Muita gente não acreditava que poderia chegar ao país, mas, olhando o contágio, vimos que precisávamos nos preparar. A primeira proposta do comitê de crise foi a mais lógica. O HC tem oito institutos especializados: em cardiologia, oncologia, pediatria, ortopedia e outras áreas. Então cada um deveria fazer sua própria área de isolamento para Covid-19 e aguardar os pacientes. Estávamos tranquilamente pensando nisso quando Bia viu que um hospital de Israel isolou um instituto para tratar apenas pacientes com essa doença e sugeriu que poderíamos pensar nessa possibilidade. Em março essa ideia reapareceu.
Por que em março?
Foi quando percebemos que a pandemia era mais grave do que parecia inicialmente. Conversei com Bia para avaliarmos a possibilidade de isolar o Instituto Central, mas era uma proposta ainda distante. No final de semana, comuniquei ao diretor da Faculdade de Medicina e aos membros do Conselho do HC que estávamos estudando a proposta de concentrar o atendimento no Instituto Central. No domingo à tarde o governador de São Paulo, João Doria, veio inaugurar leitos de UTI [Unidade de Terapia Intensiva], nada a ver com a Covid-19. Mas, ao chegar à UTI a ser inaugurada, o governador anuncia que iríamos isolar o Instituto Central para Covid-19. Soube depois que ele tinha subido no elevador com o diretor da faculdade, que comentou sobre essa possibilidade. Quase tive um infarto, mas não tinha como voltar atrás. Já estava anunciado.
Como fez a adequação de espaços?
Transferimos equipamentos e pessoas do maior pronto-socorro terciário da América Latina, de múltiplas especialidades, para o InCor [Instituto do Coração], que do dia para a noite se tornou um pronto-socorro geral. Distribuímos 35 clínicas especializadas nos outros institutos, que se tornariam de baixa exposição à Covid-19 e atenderiam os pacientes com outras doenças. As clínicas médicas foram para o Instituto de Ortopedia, a área cirúrgica para o Icesp [Instituto de Câncer do Estado de São Paulo] e o berçário de alto risco para o HU [Hospital Universitário]. Em 15 dias transformamos o Instituto Central em um espaço exclusivo de atendimento a pacientes com Covid-19.
Houve resistência a essas mudanças?
Muita. A primeira resistência foi, digamos assim, justificada, porque eu tinha ligado para os membros do Conselho do HC dizendo que apresentaríamos o projeto para todos eles. De repente todo o plano foi atropelado. Era difícil para os membros do Conselho acreditarem que não fui eu que avisei o governador. Mas, de todo modo, essa medida permitiu que os colaboradores com fatores de risco para Covid-19, como hipertensão e diabetes, fossem atendidos nos institutos de baixa exposição e os que não tivessem nenhum ficassem no Instituto Central. As pessoas estavam com muito medo de ser infectadas com o coronavírus ou passar para um familiar. No Instituto Central, começamos uma organização rígida: só entrava quem já tivesse feito treinamento e no início não era permitido passar de um instituto para outro. Transformamos os anfiteatros em espaços para treinamento de paramentação, de uso de ventiladores e de todos os cuidados que deveríamos tomar, e as salas dos professores em alojamentos para as pessoas que iriam trabalhar com Covid-19. A mesa dos professores ia para um canto e abria espaço para dois beliches destinados às equipes da linha de frente.
A equipe cresceu muito?
Chegamos a ter em torno de 6 mil funcionários no Instituto Central. Antes trabalhávamos com 3,5 mil, 4 mil. Precisamos de mais gente porque aumentamos muito os leitos de UTI. Tínhamos 84 no Instituto Central e entre abril e maio esse número cresceu para 300. Como não havia cirurgia eletiva durante a pandemia, transformamos 35 salas cirúrgicas em leitos de UTI. Mas aí surgiu um problema: não havia intensivista nem pneumologista para contratar, também não tínhamos ventiladores mecânicos para os pacientes. Os anestesistas nos ajudaram usando o equipamento de anestesia para ventilar os pacientes. Muitos estavam sem trabalho, porque não havia cirurgia eletiva, mas também não havia dinheiro para contratá-los. Nunca vendi uma rifa nem deixava meus filhos venderem, eu comprava tudo porque morria de vergonha, mas nessa hora superei a vergonha e saí pedindo tudo. Com o superintendente pedi uma doação para o banco BTG Pactual e com ela contratamos anestesistas. Só que eles não sabiam trabalhar sozinhos, porque não eram intensivistas. Então, em cada sala cirúrgica colocamos um intensivista para trabalhar com um anestesista. E assim conseguimos manter 300 leitos de UTI por dois meses. Médicos de outras especialidades, como ortopedistas e oftalmologistas, também foram recrutados e fizeram um trabalho incrível. Eles ficavam na enfermaria e cuidavam dos pacientes menos graves. Oferecíamos times de apoio assistencial, um de intubação, outro para pegar um vaso sanguíneo grande ou fazer traqueostomia [inserção de uma cânula na região da traqueia para facilitar a chegada de ar aos pulmões]. Para acionar qualquer um dos times, bastava ligar e vinha alguém rapidamente para ajudar. Além de montar UTI, criamos enfermarias especializadas para receber os pacientes com Covid-19 de forma adequada – uma pediátrica, outra psiquiátrica, outra para grávidas. Mas não foi suficiente. O dinheiro que o BTG deu não bastou para manter os 300 leitos. Era preciso mais.
O que a senhora fez?
Liguei para todos os hospitais de São Paulo com que tínhamos mais afinidade e pedi que mandassem equipamentos e equipes multidisciplinares. Deu certo. O Sírio-Libanês montou uma UTI de 10 leitos para completar os 300. O [Hospital Israelita Albert] Einstein mandou pessoas para treinar funcionários do HC, porque o número de diálises aumentou sete vezes. A Rede D’Or montou uma UTI e uma enfermaria para pacientes com Covid-19 e câncer. O HCor trouxe uma equipe multidisciplinar inteira, que era uma das grandes carências. Não recebi nenhum não. Até a equipe do Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] me procurou, contou que não havia acidente, portanto estava subutilizada, e montou uma UTI aqui no Instituto Central. Ao mesmo tempo, tinha de pensar em muitas outras coisas. Se ia faltar uma medicação, já substituíamos por outra e pedíamos para os médicos e enfermeiros usarem o mínimo possível. O abastecimento ficou por conta da superintendência, que teve ainda o desafio de ampliar rapidamente a capacidade de energia e de oxigênio.
Como resolveram?
Tivemos que fazer uma estação para aumentar a oferta de oxigênio. Não tínhamos capacidade instalada para tantos leitos. O Hospital das Clínicas tem 70 anos e nunca viu 300 leitos de UTI com tanta necessidade de oxigênio. Fizemos também uma estação de energia, porque o Instituto Central não tinha a capacidade de energia que era necessária. A superintendência trabalhou para não faltar também EPI [equipamentos de proteção individual]. Em um dia passamos de 4 mil para 40 mil máscaras. Tivemos de organizar. Fomos educando sobre qual máscara usar em um lugar ou outro do hospital. Foi uma verdadeira operação de guerra. Mais do que de guerra, foi uma operação pela vida. Os moradores e empresas da região nos mandavam roupas, pizza, sorvete e flores. Agora, como é que se distribuem essas coisas sem aglomerar? A superintendência pulou miudinho, porque os presentes tinham de chegar às equipes que trabalhavam com Covid-19 no hospital e estavam precisando de reconhecimento.
Como vocês definiram os tratamentos para a Covid-19?
Logo no começo a doença mostrou que atingia outros órgãos além dos pulmões, como o coração. Tínhamos intensivistas muito experientes e comitês de UTI. Os comitês faziam o protocolo e as pessoas eram orientadas a seguir. Todo dia, às 7h, fazíamos uma reunião ao ar livre com os líderes de área, manutenção [dos pacientes], fisioterapia e outras. Em uma roda em frente ao hospital para não ficarmos próximos, discutíamos ajustes nos procedimentos ou algum trabalho novo recém-publicado. No início da noite, um comitê menor se reunia para definir as medidas do dia seguinte. Nosso protocolo inicial aceitou o do Ministério da Saúde de que a cloroquina poderia ser indicada, porque inicialmente não havia nada contra. Mas paramos de usar logo que saíram as primeiras evidências de que não ajudava no tratamento. E comunicamos a todos que ela não fazia mais parte de nosso protocolo. Lógico, os médicos têm liberdade para testar novos tratamentos, mas o trabalho tem de ser feito no contexto de uma pesquisa. Assim, com base em estudos feitos em outros lugares e aqui no HC, aprendemos o melhor momento de dar corticoides e outros medicamentos para os pacientes com Covid-19. Fazíamos uma comunicação e todos deveriam seguir. Não foi fácil, as pessoas ficaram desiludidas e cansadas. Houve até ameaça de greve de residentes, que foram fundamentais na linha de frente, mas também prejudicados na sua formação.
Como organizavam as pesquisas?
Criamos um comitê para aprovação rápida das propostas de ensaios clínicos e de pesquisas, mas a grande dificuldade foi a competição por pacientes. Eu recebia queixas: “Fulano está roubando todos os pacientes, você tem que fazer uma regra”. Aí estabelecemos que o recrutamento de pacientes seria por revezamento. Primeiro um médico convida um paciente, depois outro convida outro. Pusemos os dados dos pacientes de UTI em um sistema informatizado. Até agora atendemos mais de 10 mil pacientes com suspeita ou confirmação de Covid-19.
Liguei para os hospitais com que tínhamos mais afinidade e pedi equipamentos e equipes. Deu certo
Como foi trabalhar no hospital durante a pandemia?
Vi coisas inimagináveis. Um dia, encontrei uma médica chorando. Ela disse: “Acabei de cantar uma música para um paciente”. Eu respondi: “Nossa, que coisa bonita”. Ela contou: “Ele chegou muito mal e pedia ‘não me deixe morrer’. Eu disse: ‘Você não vai morrer e vou cantar para você no dia da sua alta’. Estou voltando da enfermaria, porque ele teve alta”. Um professor que trabalha no pronto-socorro e deve ter uns 85 anos, Almir Ferreira de Andrade, queria ajudar no pronto-socorro Covid. Não deixei. E o que ele fez? Um dia o peguei entrando escondido. Avisei: “Professor Almir, o senhor não pode entrar aqui”. Ele respondeu: “Mas professora, se eu morrer trabalhando, é o que eu gosto de fazer, não me importo”. No outro dia o encontro de novo e ele reclama: “A senhora está me vigiando, não é possível!”. Ameacei, dizendo que poria um segurança de guarda, mas ele parou de vir e ficou só no pronto-socorro não Covid. Nosso superintendente, Antônio José Rodrigues, o Tom Zé, foi fantástico. Nem sei como ele deu conta para não faltar medicamentos. A equipe dele se desdobrou e fez todo o necessário. Ele participava das reuniões e sabia o que estava acontecendo. Mas tivemos muitos processos, de pessoas que não queriam trabalhar, por medo de se infectar. Tínhamos de confrontar porque, se deixássemos alguém ficar em casa, outras também iriam querer.
Como fez para esses funcionários continuarem trabalhando?
Viramos meio advogados, com a ajuda do Núcleo Jurídico do HC. Os três professores que comandavam o comitê de crise eram Edivaldo Massazo Utiyama, vice-diretor clínico do HC; Aluísio Segurado, presidente do Conselho do Instituto Central; e eu. Nos dividíamos para ajudar a responder aos processos e explicar ao juiz por que a pessoa tinha que continuar trabalhando. Se estava com medo da Covid-19, poderia ficar em um laboratório, fazendo exames de sangue, longe dos pacientes, ou em uma área administrativa. Havia trabalho para todos. Com todos os cuidados que tomamos, o Instituto Central, entre todos os institutos do HC, teve um dos menores índices de contágio entre os colaboradores. Dos 22 mil tivemos 117 hospitalizações de profissionais do HC com Covid-19 e, infelizmente, 8 óbitos. Ninguém do comitê de crise pegou Covid. Mas a gente tinha que ser exemplo da forma de usar o EPI e de sentar à mesa. Comíamos todos juntos, mas com janela aberta e nunca um na frente do outro. Tivemos sorte, porque fizemos reuniões com pessoas que depois descobrimos que estavam com Covid-19.
Como formar um bom time para essas situações de emergência?
É um desafio. A profissão médica convive com emergências, mas as grandes lideranças, que coordenaram UTIs, brotaram sozinhas. Muitos se apresentaram: “Estou à disposição para o que vocês quiserem que eu faça”.
Quem se destacou?
Em primeiro lugar, as gestoras da diretoria clínica, Bia, Leila Suemi Harima Letaif, Anna Miethke Morais e Amanda Cardoso Montal. Elas foram as grandes orquestradoras de todo o processo. O professor Carlos Carvalho também foi brilhante. A mortalidade nas UTIs do HC estava muito abaixo da de outros hospitais da cidade de São Paulo. Ele fazia televisita nas UTIs de outros hospitais de São Paulo e de outros estados. O médico apresentava a situação e ele sugeria modificações que ajudaram a diminuir o tempo de internação e a mortalidade. Foi um trabalho fantástico, depois multiplicado para a obstetrícia, porque infelizmente o Brasil, em um momento, foi o país com maior mortalidade por Covid-19 em grávidas. A professora Rossana Maria dos Reis montou uma teleconsultoria para dar assistência aos hospitais de São Paulo e de outros estados para melhorar o atendimento das pacientes grávidas com Covid-19, cujo tratamento tem características muito próprias. O setor de humanização criou um verdadeiro exército para ajudar na comunicação com os pacientes e acolher familiares na alta e no óbito. Também tivemos ganhos, como o biorrepositório [amostras de soro sanguíneo] e a base de dados dos pacientes, que montamos durante a pandemia. Vimos a importância da equipe multidisciplinar. Em alguns momentos, como a Covid-19 é uma doença respiratória, a atuação do fisioterapeuta e do fisiatra era mais relevante do que a equipe médica.
Como é trabalhar em um espaço tão masculino?
Sou a primeira diretora clínica em mais de 70 anos do HC. A Faculdade de Medicina nunca teve uma diretora. De qualquer forma, para mim foi mais fácil chegar a diretora do que seria em outros lugares, porque temos o hábito de trabalhar por mérito. Talvez, se fosse homem, tivesse sido mais rápido. Quando a pandemia começou, eu estava na diretoria havia 10 anos, o que me dava um certo empoderamento para o que estava fazendo. A diretoria clínica é no prédio da administração, mas nos mudamos para o Instituto Central para trabalhar melhor. Transformamos uma área de anfiteatro em salas e estávamos lá das 7 da manhã às 9 da noite, todos os dias. A liderança foi conjunta com os outros dois professores titulares e as quatro médicas gestoras. Éramos uma unidade e as pessoas nos viam assim. Se chegava alguém brigando, íamos juntos resolver. Se algum funcionário era internado, entrava na pauta da nossa reunião diária e víamos o que poderíamos fazer por ele. Em uma catástrofe devemos priorizar quem pode ajudar a salvar mais vidas quando sarar.
A liderança foi conjunta com outros dois professores e as quatro médicas gestoras. Éramos uma unidade e as pessoas nos viam assim
Conseguiu fazer pesquisa durante a pandemia?
Nossa equipe da reumatologia fez um trabalho com imunossuprimidos [pessoas com baixa defesa natural contra patógenos], que foi usado como referência para a priorização de vacinas para esse grupo de pacientes. Esse trabalho teve apoio da FAPESP e da iniciativa privada, por meio da bolsa de valores, a B3. O primeiro trabalho, com 910 pacientes, foi publicado na revista Nature Medicine e nos permitiu conhecer melhor os efeitos dos medicamentos na vacinação contra a Covid-19. Os pacientes tinham uma resposta moderada, de 70%, na produção de anticorpos depois da imunização com a vacina CoronaVac. Só que 30% não respondiam e tínhamos de entender por quê. Vimos que era por causa do uso de determinadas drogas. Estudamos 10 diferentes medicações reumatológicas. Seguindo uma recomendação do Colégio Americano de Reumatologia, suspendemos por um tempo a medicação imunossupressora dos pacientes com artrite reumatoide e a resposta imune aumentou. O número de casos de Covid-19 caiu 81% após a vacinação, quando na cidade de São Paulo ocorria o inverso, um aumento de 45%.
Um dos medicamentos avaliados nessa pesquisa era a cloroquina. O que viram?
A cloroquina é uma droga imunomoduladora muito usada em lúpus, mas requer vários passos de entrada no organismo. Ela entra, cai na corrente sanguínea e vai para o tecido, para a célula e para o lisossomo [compartimento celular]. Esse trajeto demora em torno de três meses, antes de começar a fazer efeito. Concluímos que não havia lógica em pensar que uma doença aguda como a Covid-19 pudesse se beneficiar de uma droga que precisa de um tempo tão longo para agir.
Quais suas preocupações agora?
Uma delas é o pós-Covid. Uma pesquisa liderada pelo professor Geraldo Busatto acompanha cerca de 800 pacientes que tiveram Covid grave e agora apresentam sequelas mentais e físicas que duram muitos meses, mais do que a própria doença. Outra preocupação é como retomar a vida de antes da pandemia. Achamos que no máximo em três meses nossa vida voltaria ao normal e até hoje não voltou. Estamos com uma fila enorme de pessoas que não procuraram o hospital durante a pandemia, até por orientação nossa, e precisam ser atendidas. Cada médico diz que o paciente dele é o mais importante: “Se não atender já, ele vai morrer”. Mas temos de escalonar e reorganizar o sistema para voltar ao normal assim que possível.
Que estratégias a senhora recomendaria para quem estiver em seu lugar em alguns anos e tiver de enfrentar outra pandemia?
A primeira coisa a fazer é se preparar antes. É melhor ter os recursos à mão e não precisar usar do que não ter. Todos têm de ter um comitê de crise e mudar as estratégias conforme a crise avança. Outra coisa importante é cuidar da comunicação. Nossa comunicação externa é muito ruim, porque as fake news ganham fácil de nós. Muitas pessoas põem um avental e falam como se conhecessem vacina, mas nem da área da saúde são. Ocupam um espaço que deixamos aberto porque estamos focados em nosso trabalho. Ganharíamos muito com um canal de comunicação com a população, que foi feito aos poucos pela imprensa, escolhendo melhor as pessoas para falar. Mas demorou muito. A comunicação interna também não é fácil, especialmente em um hospital com 22 mil colaboradores e em torno de 3 mil terceirizados. Ficavam bravos porque tínhamos que abrir mais uma UTI. Se tivéssemos explicado o que estava acontecendo, talvez não ficassem. Até parece que a ideia de abrir uma UTI era apenas por capricho. Os residentes faziam assembleia e tínhamos de explicar que não era bem assim. Era uma crise atrás da outra. Todo o tempo apagando incêndio. A comunicação interna não foi tão boa para chegar na ponta, acolher mais e justificar as ações. Fazíamos festa e agradecíamos às equipes a cada mil pacientes que tinham alta, mas o pessoal que estava na linha de frente talvez precisasse e merecesse mais. Começamos a fazer uma ação preventiva, uma psiquiatra fazia uma reunião semanal com as lideranças da UTI, para que pudessem falar e reclamar. Só ouvir, mesmo que não consiga resolver o problema, já ajuda a pessoa a se sentir acolhida. O Instituto de Psiquiatria, particularmente o professor Euripídes Constantino Miguel Filho, fez várias ações de acolhimento psiquiátrico para os colaboradores e designou uma terapeuta para cada um de nós do comitê de crise. Ajudou muito. Durante a primeira onda, meu marido vinha me trazer e me buscar. Era ótimo, porque eu saía explodindo. Quando chegava em casa, já estava mais relaxada. O hospital nunca tinha sido desafiado a esse ponto, mas tem raízes profundas, e aguentamos.