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Sociologia

O homem é (ainda) quem manda

Estudo mostra como o desemprego afeta a estrutura familiar

O homem vale mais que a mulher. A tese capaz de provocar a ira de qualquer feminista americana, à la Lorena Bobbit, é uma constatação do trabalho de Maria da Conceição Quinteiro, do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP. Em Família, Trabalho e Gênero: Uma Análise Comparativa Portugal-Brasil, a socióloga afirma que, apesar da surpreendente emancipação feminina neste século, a discriminação no trabalho é forte e o homem é quem manda ainda no sustento familiar. O estudo, que contou com o apoio da FAPESP, em São Paulo, e do Instituto de Cooperação Científica Internacional (ICCI), em Lisboa, investiga o impacto do desemprego na organização da família em Portugal e no Brasil.

Apoiada em depoimentos, estatísticas e vasta bibliografia, Maria da Conceição Quinteiro mostra como o desemprego masculino tende a causar efeitos mais negativos, uma vez que o trabalho assalariado feminino é visto apenas como uma ajuda complementar ao masculino na família e sociedade. “O homem desempregado vive um verdadeiro inferno do ponto de vista da auto-estima. Já as mulheres, mesmo sofrendo a queda nos padrões de vida, sabem lidar melhor com isso, ocupando esse ‘tempo livre’ em maior contato com os filhos e as tarefas domésticas”, explica.

Trabalho comparativo
Embora os encontros luso-brasileiros nas universidades brasileiras ocorram desde a década de 60, os trabalhos comparativos entre Brasil e Portugal são ainda recentes. E o da professora Conceição Quinteiro, como ela mesma ressalta, procurou “preencher essa lacuna e ampliar os horizontes”. A idéia de aproximar os dois países quanto ao impacto do trabalho na estrutura familiar surgiu em 1997 e encontrou várias motivações: o catolicismo, a visão da mulher onipresente nas fases essenciais da vida do homem, mais fortemente marcado nessas culturas, e o fato de a população economicamente ativa apresentar graus de escolaridade relativamente baixos, sérias dificuldades, portanto, para países que querem fazer parte da economia globalizada.

Para compor o trabalho, que levou três anos de dedicação, Conceição Quinteiro serviu-se das fontes oficiais (Seade e IBGE, no caso do Brasil, e INE, em Portugal) e do depoimento de pessoas, os chamados desempregados de longa duração (12 meses sem vínculo empregatício). Foram entrevistados 40 desempregados em São Paulo e Lisboa, pertencentes a dois setores da economia, modelos no atual processo de reestruturação produtiva em temposde globalização: indústria e serviços.

Fator de tensão
Os depoimentos mostraram que o fato de o homem não ser mais o provedor do sustento é fator de tensão e desorganização, mesmo em famílias nas quais a mulher continua trabalhando – e muitas vezes ganhando mais do que o homem. Mais do que os problemas de consumo, conforto e sobrevivência, isso acarreta danos profundos aos homens no âmbito emocional, já que se sentem subestimados e marginalizados.As dicotomias que remontam à pólis grega – o homem ligado ao espaço público, à racionalidade e à cultura, a mulher ao doméstico, à natureza e à passionalidade – já não seriam traços superados? Segundo a pesquisa, não. Se a entrada maciça de mulheres na vida profissional contribuiu para evitar que estivessem sempre na defensiva, por outro lado não assegurou um equilíbrio. “Os exemplos mais visíveis de que a valoração social diferenciada persiste são as posições desiguais no mercado de trabalho, na família, no casal, na política e assim por diante”, argumenta.

A pesquisa aponta também como o padrão de consumo e de expectativa social dos desempregados da área de indústria é menor em relação aos do setor de serviços. “Um empregado da indústria não se envergonha em dizer que está desempregado. Ele, inclusive, recorre aos amigos e aos sindicatos, faz bicos, vende coxinha. Se é metalúrgico, mas entende de encanamento, vai fazer isso para sobreviver”, ressalta. Essa flexibilidade de saber fazer parece ser muito mais freqüente no pessoal da indústria do que no de serviços. O desempregado nessa área não é capaz de inventar e de criar experiências para sobreviver a não ser dentro do ramo em que foi criado. E mais do que isso, freqüentemente, não diz que está desempregado com medo da repressão social.

Lendo nos entre números
Embora Maria da Conceição Quinteiro tenha se servido de números oficiais para traçar um quadro comparativo da ocupação feminina e masculina nas áreas metropolitanas de Lisboa e São Paulo, ela insiste em dizer que o trabalho é mais qualitativo do que quantitativo. “Os números não dizem muita coisa, não pegam as nuances do processo. Eles precisam ser capturados pela fala das pessoas.”

O ato de ler nos “entrenúmeros” se aplicaria ao relativo êxito feminino no mercado de trabalho hoje no Brasil. As feministas nacionais argumentariam que há um boom de ofertas de emprego para as mulheres. Segundo informam dados do IBGE, entre 1989 e 1999, foram abertos 10,1 milhões de postos de trabalho no Brasil. Quase 7 milhões de vagas foram ocupadas exclusivamente pela mulher, enquanto somente 3,1 milhões de postos de trabalho foram preenchidos pelos homens.

A entrada da mulher no mercado de trabalho depende muitas vezes não da capacitação profissional e da oferta de empregos, mas da conciliação possível entre suas responsabilidades familiares e profissionais. Nesse sentido, a aprovação da licença-maternidade, na Constituição de 1988 no Brasil, teria sido dado positivo. Mesmo assim, a professora alerta que é preciso relativizar esses números: “Quanto mais alto o cargo, mais será preenchido por homens. Isso não significa que elas sejam incapazes ou menos instruídas – a participação crescente das mulheres nos bancos escolares é maior que a dos homens -, mas o salário é inferior, um dado concreto da discriminação salarial.”

A pesquisa também constata que Portugal está mais preparado que o Brasil para reintroduzir os profissionais no mercado. Lá há inúmeros centros de formação e capacitação e a legislação trabalhista está muito mais flexível – embora ainda não seja completamente para a mulher. Para a suposta corrosão do caráter e perda de valores trazida pela flexibilização e instabilidade do trabalho hoje, a família aparece como único porto seguro. Apesar do rótulo de repressora para as gerações dos anos 60 e 70, a família continua a ser o lócus de segurança emocional. “Na medida em que a solidariedade, sobretudo nas grandes cidades vai se desfazendo com o narcisimo, só resta a família. Ela é vital para a sobrevivência material e emocional.”

O ônus da liberdade
Quanto ao quadro nada róseo para as mulheres, a romancista Louise de Vilmorin, colecionadora de amantes célebres (Malraux e Orson Welles), teria razão ao afirmar que “para uma mulher não há nada pior do que ser livre”? “A liberdade para as mulheres é recente e relativa, significa ir à luta, trabalhar mais de oito horas por dia, ir para casa trabalhar outras tantas horas, cuidar da família, dos filhos, das tarefas domésticas que continuam à espera. É um ônus muito grande, uma jornada tripla. A liberdade plena só existirá quando houver eqüidade entre direitos e deveres de homens e mulheres”, argumenta.

Por enquanto, o mundo do trabalho remunerado ainda faz parte da identidade masculina, e sobre essas injustiças a professora Maria da Conceição Quinteiro espera desenvolver outros projetos – sempre no eixo Brasil-Portugal.

PERFIL:
Maria da Conceição Quinteiro
é graduada em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde fez o mestrado e o doutorado em Sociologia e pós-doutorado pela Universidade de Oxford. É pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP.
ProjetoFamília, Trabalho e Gênero: Uma Análise Comparativa Portugal-Brasil
Investimento : R$ 12.550,00

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