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Circuitos do medo

Projeto temático revela funções de estruturas arcaicas do cérebro, acionadas ante um sinal de perigo real ou imaginário

LUCIEN FREUDO estudo do percurso neuroquímico das emoções no cérebro de mamíferos superiores – e do próprio ser humano – colhe cada vez mais indícios de que o medo, em seu estado mais bruto, é um sentimento que se assenta em circuitos tão antigos quanto os dos primeiros répteis da Terra. A partir de uma série de artigos que publicaram nos últimos três anos em revistas internacionais, como Brain Research, Behavioural Brain Research, Neuroscience and Biobehavioral Reviews, entre outras, pesquisadores do Laboratório de Psicobiologia da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto levantaram evidências de que três estruturas extremamente primitivas na escala evolutiva do cérebro, presentes em espécies animais desde a época dos dinossauros, desempenham tarefas fundamentais em situações de risco, potencial ou real, antes mesmo de ser acionada a amígdala cerebral – estrutura surgida posteriormente, com os primeiros mamíferos, e diretamente implicada nas respostas de defesa do organismo diante de um estímulo aversivo, algo como um ambiente, um som, uma imagem ou uma luz que provoque medo.

Com o auxílio de experimentos que provocam vários tipos de estresse e pavor em ratos – cujo cérebro, embora menos complexo, assemelha-se ao do homem -, os cientistas acreditam ter encontrado novas funções para o núcleo mediano da rafe, os colículos inferiores e a parte dorsal da matéria cinzenta periaquedutal. São as três peças primitivas do intrincado quebra-cabeça neuronal envolvido nos caminhos do medo. “Cada uma dessas estruturas cerebrais participa de forma distinta na geração e elaboração de tipos diferentes de medo”, diz o médico Marcus Lira Brandão, coordenador dos estudos, conduzidos no âmbito de um projeto temático da FAPESP. “Como o medo e a ansiedade são importantes componentes das doenças psiquiátricas, conhecer os circuitos envolvidos em sua elaboração é fundamental para encontrarmos novos tratamentos para esses distúrbios.”

Ambiente traumático
De acordo com esses trabalhos, o núcleo mediano da rafe reconhece temporal e espacialmente um ambiente associado a um trauma – o local de um assalto, por exemplo – e o decodifica como um estímulo aversivo capaz de provocar o medo contextual condicionado, espécie de temor associado a um ambiente traumático. Já os colículos inferiores – são dois, um em cada lado do cérebro – entram em ação num tipo mais particular de medo. Como um filtro, uma região dessas estruturas auditivas, denominada núcleo central, distingue especificamente um som normal de outro considerado ameaçador. Feita a filtragem, o estímulo auditivo considerado normal vai para o lobo temporal, região do neocórtex, a parte mais racional – e nova, do ponto de vista evolutivo – do cérebro.

O som tido como perigoso vai, com escala no tálamo auditivo, para a amígdala cerebral, que desencadeia as típicas reações de medo: paralisia de movimentos, dilatação das pupilas, aumento do batimento cardíaco, arrepio, entre outras. Até então, todas as evidências mostravam que a amígdala recebia sempre um sinal sonoro bruto, sem filtragem, e ela mesma tinha de realizar todo o processo de separação do que pode ser ameaçador ou não ao organismo.

Por fim, os pesquisadores da USP produziram indícios de que a porção dorsal da matéria cinzenta periaquedutal parece estar ligada a uma das respostas mais primárias de defesa do organismo diante de estímulos aversivos: a reação de congelamento (imobilidade tensa). “Vimos que a estimulação elétrica dessa parte da matéria cinzenta provoca uma paralisia semelhante à que ocorre nos pacientes com distúrbios de pânico”, comenta Lira Brandão. O pânico se caracteriza por episódios recorrentes de ansiedade exacerbada, que podem durar horas ou até dias. Durante essas crises, os pacientes sentem que estão a ponto de morrer, têm medo de enlouquecer e freqüentemente se recusam a andar.

Apesar de envolvidas em tipos distintos de medo, as três estruturas sobre as quais os estudos da USP jogam luz têm algo em comum: estão situadas numa estrutura maior, o mesencéfalo, que faz parte do tronco encefálico, ligação entre a medula espinhal e uma região denominada diencéfalo. E daí? Perguntaria alguém não familiarizado com a arquitetura cerebral. Daí que, na clássica divisão evolutiva do cérebro humano e de mamíferos superiores em três grandes unidades, o tronco encefálico é uma das áreas da parte mais primitiva desse órgão, o chamado cérebro dos répteis. Presente desde o aparecimento dos dinossauros, há dezenas, talvez centenas, de milhões de anos, essa porção primordial do cérebro não é, teoricamente, o território das emoções, mas apenas de instintos de auto-preservação e agressão.

As emoções são o domínio preferencial da segunda parte do cérebro, que se formou nos primeiros mamíferos e abriga o sistema límbico, composto por uma série de estruturas responsáveis pelo substrato neuronal dos sentimentos. A terceira parte do cérebro, presente apenas em animais superiores, como os primatas e o homem, é o neocórtex, responsável pelo raciocínio. No sistema emotivo, a amígdala cerebral tem sido considerada uma peça-chave, a estrutura que tem recebido as maiores atenções dos pesquisadores dos circuitos do medo. Mas, de acordo com os dados da equipe de Lira Brandão, o sistema límbico se expandiu – e, em alguns tipos de medo, seus circuitos primários apresentam raízes na região do mesencéfalo.

Neurotransmissores
No caso do núcleo mediano da rafe, os cientistas também conseguiram precisar qual neurotransmissor – substância liberada por um neurônio excitado com o intuito de passar adiante o estímulo recebido para outro neurônio – encarrega-se de levar os sinais do medo dessa estrutura para as demais áreas do cérebro. Trata-se da serotonina, um dos mais importantes neurotransmissores, cuja ação tem sabidamente efeitos no padrão de sono, humor, comportamento sexual e constrição de vasos, para citar apenas alguns exemplos. A simples inibição das vias de transmissão da serotonina em ratos, experiência feita nos laboratórios da USP, impediu que a mensagem do medo contextual fosse adiante e atingisse outras estruturas responsáveis pela elaboração dessas respostas defensivas, incluindo o hipocampo e a amígdala.

O neurotransmissor responsável por conduzir os estímulos auditivos dos colículos inferiores para outras estruturas ainda não foi determinado. Mas há uma boa pista. Esse circuito parece ser modulado pela dopamina, neurotransmissor comumente associado à esquizofrenia – grave problema mental que atrapalha o raciocínio, leva ao embaralhamento das emoções e provoca a perda de contato com a realidade, causando delírios, sobretudo sonoros. Ou seja, a elevação nos níveis de dopamina aumenta a eficiência da transmissão de estímulos aversivos auditivos.

No entanto, não foi ainda possível determinar se o bloqueio dos canais de transmissão de dopamina interrompe o fluxo dessa informação no cérebro. “Precisamos de mais estudos para ver se não há outros neurotransmissores envolvidos no processo”, afirma Lira Brandão. No que diz respeito à ação da matéria cinzenta periaquedutal na resposta de congelamento, os experimentos com neurotransmissores ainda estão em fase inicial e não permitem maiores comentários.

Pela sobrevivência
É preciso deixar claro de que tipos de medo as pesquisas da USP se ocupam. De forma geral, o objeto de estudo é o medo em suas manifestações mais primitivas. É o temor instantâneo que sentimos, nós e os animais, diante de qualquer situação interpretada pelo nosso cérebro como sendo de vida ou morte. Como uma espécie de reflexo condicionado, não racionalizado, esse pavor inconsciente e ancestral trabalha a favor de nosso instinto de sobrevivência. É o medo que nos faz (re)agir, sem pensar, diante de algo percebido como uma ameaça, real ou imaginária. Sem ele, por exemplo, os animais não conseguiriam fugir de seus predadores.

Para ser eficiente na tarefa de garantir a perpetuação das espécies, esse medo se apresenta, muitas vezes, exacerbado e infundado. Evolutivamente, a estratégia de errar para mais do que para menos parece ser mais eficiente. Ou, como diz o neurologista norte-americano Joseph LeDoux, da Universidade de Nova York, autor de um livro capital sobre as emoções e o cérebro (The Emotional Brain), “é melhor confundir um pedaço de pau com uma cobra do que uma cobra com um pedaço de pau”. Esse medo primitivo é, portanto, uma forma de temor muito diferente do receio (racional) que um aluno sente ao fazer uma prova para a qual não estudou. O estudante se inquieta perante o teste porque sabe, conscientemente, que não se preparou para o exame.

Algumas formas de medo primitivo habitam a mente humana e a dos animais desde o seu nascimento. São receios inatos, herdados geneticamente dos antepassados – e não decorrentes de experiências traumáticas vivenciadas pelos seres que, agora, manifestam esses temores. Nos ratos, a aversão a lugares abertos se encaixa nessa definição. No homem, o medo de grandes altitudes é um desses casos. Ninguém precisa cair de um muro de 10 metros de altura para recear a queda. Já viemos ao mundo “programados” com esse medo. A esse tipo de temor, os estudiosos dão o nome de medo incondicionado. Essa forma de medo é estudada pelos pesquisadores da USP, mas não é seu principal foco de interesse. A atenção deles está mais voltada ao entendimento dos circuitos neuronais usados na elaboração de alguns tipos de medo condicionado, surgidos em função de uma experiência traumática, chamada tecnicamente de estímulo aversivo.

Nessa linha de trabalho, o estudo do medo contextual condicionado em ratos produziu resultados interessantes. Como esse tipo de emoção é criada nos animais? Vale a pena descrever um experimento clássico para entender o processo de indução do medo associado a um ambiente. Ratos são colocados num local diferente do biotério em que vivem: um compartimento fechado, iluminado por uma luz vermelha (neutra para os roedores, serve apenas para os animais visualizarem as características discriminativas do ambiente-contexto), onde suas reações podem ser filmadas por uma pequena câmera de vídeo. Dentro desse lugar estranho, as patas dos ratos recebem sistematicamente choques de intensidade moderada para o animal (0,6 miliampère). A cada 20 segundos, os bichos recebem um estímulo elétrico que dura um segundo. Numa mesma sessão, o procedimento é repetido dez vezes, o que faz os animais associarem o compartimento – o ambiente estranho, o contexto – ao choque elétrico.

As conseqüências do trauma são visíveis no dia seguinte: basta colocar os ratos no mesmo compartimento, ou num ambiente semelhante para que o medo, instantaneamente, tome conta dos animais. Os bichos congelam seus movimentos, eriçam os pêlos, dilatam as pupilas, urinam e soltam fezes de forma descontrolada e seu coração dispara. Ou seja, exibem todas as respostas típicas de quem se encontra diante de uma situação codificada pelo cérebro como de perigo. O medo contextual exibido pelos ratos é análogo ao experimentado por uma pessoa que tem pavor de andar por ruas estreitas e escuras em razão de ter sido assaltada numa viela mal iluminada tarde da noite. Com algumas variações de procedimentos, os pesquisadores podem fazer com que ratos de laboratório sejam induzidos a desenvolver, além do medo contextual, o medo a estímulos sonoros e luminosos.

Novas funções
Foi desencadeando essa gama de temores em roedores que a equipe de Lira Brandão chegou aos resultados de suas pesquisas, que apontam novas funções para três estruturas cerebrais. No caso dos ratos com medo contextual condicionado, os cientistas constataram que roedores com o núcleo mediano da rafe inativado, química ou cirurgicamente, não apresentavam as respostas típicas de quem estava diante de uma situação de perigo. “Já os que tinham o núcleo preservado exibiam as respostas esperadas”, diz a bióloga Viviane Avanzi, que participa dos trabalhos conduzidos pelo Laboratório de Psicobiologia. Em 1978, pesquisadores da própria USP de Ribeirão Preto, liderados por Frederico Graeff (hoje aposentado), já tinham levantado evidências de que a estrutura poderia desempenhar essa função, mas acabaram não prosseguindo com os estudos, que só foram retomados recentemente.

A hipótese de que os colículos inferiores, estruturas sabidamente envolvidas na captação de sons, funcionam como filtros dos estímulos auditivos, separando os sinais perigosos dos inofensivos, ganhou corpo depois que Lira Brandão e seus colegas de laboratório, um time de 15 jovens pesquisadores, fizeram algumas surpreendentes constatações. Primeiro, verificaram que estímulos elétricos produzidos nos colículos, cujo impacto é similar ao de sons sabidamente aversivos aos animais, causavam respostas de medo. Depois, o mais importante de tudo, perceberam que essas reações podiam ser neutralizadas pela administração de ansiolíticos diretamente nos colículos. “Concluímos então que o medo de estímulos sonoros é mediado pelos colículos”, diz outro pesquisador do grupo, o psicólogo Jorge Manuel Nobre.

A ligação entre a porção dorsal da matéria cinzenta periaquedutal e a reação de congelamento foi determinada por meio da estimulação elétrica dessa região da estrutura. Havia uma suspeita de que a matéria cinzenta como um todo, ou apenas sua parte ventral, estivesse envolvida com os mecanismos neurais mesencefálicos que levam à paralisia (congelamento ou imobilidade) associada ao medo. Para mostrar que a porção ventral não é determinante nessa reação, os pesquisadores a lesionaram, inutilizando-a, e deram estímulos elétricos de baixa intensidade na parte dorsal.

Foi o suficiente para provocar a típica reação de congelamento da musculatura. “Com as nossas pesquisas, não queremos minimizar a importância da amígdala no circuito do medo. O estímulo aversivo precisa chegar a ela para que seja detonado o processo de reação defensiva do organismo”, pondera Lira Brandão. “O objetivo de nossos estudos é entender melhor todo o circuito do medo, destacando a importância de várias outras estruturas, que recebem e integram essas informações mesmo antes de elas chegarem à amígdala.”

Por que é difícil controlar o medo e as emoções
Por experiência própria, todo mundo sabe que é mais difícil controlar a emoção do que a razão. Amor, ódio, alegria, tristeza, medo e empatia são sentimentos aparentemente espontâneos do homem, que tomam conta das pessoas independentemente de sua vontade. Ninguém deixa, por exemplo, de detestar seu pior inimigo simplesmente porque botou na cabeça que odiá-lo não serve para nada. Quase por definição, a razão é controlável – a emoção, não. Analisando as conexões nervosas que ligam as partes do cérebro, onde razão e emoção se originam a partir dos mais diversos tipos de estímulos, os neurologistas formularam uma teoria para explicar por que o ser humano pena para dominar suas emoções – medo, entre elas -, ao passo que parece considerar-se o senhor da razão.

De acordo com essa abordagem, que não deve ser de todo agrado dos psicólogos e psicanalistas, a chave para entender esse mistério está no fato de haver mais conexões nervosas ligando a amígdala (estrutura cerebral que é a chave na determinação de respostas físicas e comportamentais provocadas pelo medo e outras emoções) ao neocórtex (parte do cérebro responsável pelo pensar cognitivo e racional) do que conectando o neocórtex à amigdala. Em outras palavras, a extensão da malha neuronal capaz de levar informações da amígdala para o neocórtex é significativamente maior do que a quantidade de vias habilitadas a fazer o percurso contrário. “As duas estruturas se comunicam uma com a outra, mas essa comunicação é assimétrica”, diz Marcus Lira Brandão, do Laboratório de Psicobiologia da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto. “Durante os estados aversivos, as respostas emocionais predominam sobre a razão.”

O neurologista norte-americano Joseph LeDoux, da Universidade de Nova York, renomado estudioso do medo condicionado, é o maior difusor dessa visão. Para ele, essa comunicação assimétrica ajuda a explicar por que a terapia psiquiátrica nem sempre dá bons resultados com vítimas de ansiedade e outros problemas mentais. Um tratamento mais eficiente para esses distúrbios, de acordo com os adeptos dessa abordagem, poderia ser conseguido se fossem desenvolvidas drogas que facilitassem a interação do neocórtex com a amígdala.

Embora as emoções já tivessem sido alvo de trabalhos com enfoque biológico desde a época de Charles Darwin, na segunda metade do século 19, a neurologia começou a explorar mais a fundo o terreno movediço e irracionalmente desafiador dos circuitos cerebrais envolvidos com esses sentimentos (e comportamentos) há apenas duas décadas. Na chamada neurobiologia das emoções, o medo tornou-se o alvo preferencial de estudos por estar na raiz biológica de vários distúrbios mentais e por ser uma condição de fácil identificação e indução em laboratório. Em pouco tempo, essa linha de pesquisa, tocada em centros de todo o mundo, pôs em evidência várias estruturas do tronco encefálico que participam da geração e elaboração do medo e que se somam a uma pequena estrutura cinzenta, situada na parte mediana do cérebro, cujo formato lembra uma amêndoa – a amígdala, que, aliás, são duas, uma em cada hemisfério cerebral e, claro, nada têm a ver com as glândulas homônimas da garganta.

O projeto
Neurobiologia do Medo e da Ansiedade (98/11187-2); Modalidade: Projeto Temático; Coordenador: Marcus Lira Brandão – Laboratório de Psicobiologia da USP em Ribeirão Preto; Investimento: R$ 641.059,54

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