Imprimir PDF Republicar

Genética humana

O centro das distrofias

Grupo paulista identifica novos genes e formas de doenças neuromusculares no Brasil

Microscopia de fluorescência de células-tronco embrionárias neuronais formando redes neurais. Em vermelho a proteína tubulina e em azul o núcleo celular

riccardo cassiani-ingoni/science photo library Microscopia de fluorescência de células-tronco embrionárias neuronais formando redes neurais. Em vermelho a proteína tubulina e em azul o núcleo celularriccardo cassiani-ingoni/science photo library

Em 1978, a geneticista Mayana Zatz voltou ao Brasil depois de ter feito um pós-doutorado de dois anos na Universidade de Califórnia em Los Angeles (Ucla). Quatro anos mais tarde, foi contratada como professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), endereço profissional que nunca trocou. Mais de três décadas de pesquisas bem-sucedidas nas áreas de genética e mais recentemente no campo das células-tronco transformaram Mayana numa das cientistas brasileiras de maior visibilidade no país e também no exterior. Desde o ano 2000, a pesquisadora comanda o Centro de Estudos do Genoma Humano (CEGH) da USP, um dos Cepids criados com financiamento da FAPESP. Em média, cem pesquisadores e técnicos estão ligados ao centro, cujo serviço de aconselhamento genético atende anualmente de 2 mil pessoas. A produção científica da equipe de Mayana é grande. “Às vezes, publicamos até 50 papers (artigos científicos) num ano”, afirma a geneticista, que também comanda o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Células-Tronco em Doenças Genéticas Humanas, associado ao CEGH.

As distrofias musculares eram (e ainda são) uma das doenças mais estudadas por Mayana e seus colaboradores. Quando iniciou suas pesquisas, eram conhecidas apenas sete formas de distrofias. Hoje sabe -se que há mais de 30. Até os anos de 1980, seu laboratório trabalhava apenas com enzimas, embora a biologia molecular já tivesse despontado no exterior. Mas, no final daquela década, com o retorno de duas alunas que tinham ido ao exterior aprender novas técnicas, Maria Rita Passos-Bueno e Mariz Vainzof, que se tornariam professoras e pesquisadoras do IB, Mayana estruturou um setor de biologia molecular para investigar as doenças neuromusculares. Maria Rita montou toda a parte de estudo de genes e Mariz, a de pesquisa das proteínas de músculo. Desde então, o grupo identificou 15 genes novos, boa parte deles ligada às distrofias.

Os primeiros achados mais expressivos começaram a surgir em meados da década seguinte. Em 1995, a equipe identificou um gene ligado a uma forma grave de distrofia de cintura, que costuma levar uma criança com 10 anos de idade para a cadeira de rodas, e outro que, quando alvo de mutações, causa a síndrome de Knobloch, um tipo raro de cegueira progressiva. Até hoje, todas as mutações que provocam a síndrome ocorrem nas duas cópias do gene COL18A1, que foi identificado pela equipe do IB sob coordenação de Maria Rita. A história da descoberta da associação da doença ao COL18A1, gene localizado no cromossomo 21 que codifica uma proteína chamada colágeno XVIII, incluiu trabalho, paciência e uma dose de sorte, ingredientes essencias para o avanço da ciência.

Cachorros Ringo e Suflair: cães têm mutação que causa distrofia muscular, mas surpreendentemente não manifestam a doença

Eduardo Cesar Cachorros Ringo e Suflair: cães têm mutação que causa distrofia muscular, mas surpreendentemente não manifestam a doençaEduardo Cesar

Ao se detectar uma família com distrofia de cintura no município de Euclides da Cunha, na Bahia, as pesquisadoras perceberam que havia também muitos casos de cegueira nesse grupo de pessoas, formado por casais consanguíneos. Para saber o que se passava com aqueles indivíduos, Maria Rita foi à cidade baiana, conversou com os familiares e coletou material para pesquisa. “Uma parte da família tem distrofia e a outra cegueira”, recordou Maria Rita em 1997 em reportagem do boletim Notícias FAPESP, embrião desta revista. Como é praxe nesses casos, todas as famílias envolvidas nas pesquisas da equipe de Mayana recebem aconselhamento genético para saber como lidar com a doença e serem informadas sobre o risco de transmissão de mutações para eventuais novos filhos.

Na busca por genes associados a doenças neurodegenerativas, a equipe da USP obteve alguns resultados surpreendentes. Esse foi o caso dos trabalhos com um gene denominado VAP-B, presente no cromossomo 20. Num artigo publicado em novembro de 2004 na revista American Journal of Human Genetics, pesquisadores do centro paulista mostraram que uma mutação nesse gene podia causar três tipos distintos de doença degenerativa nos neurônios motores: atrofia espinhal progressiva tardia, a forma clássica de esclerose lateral amiotrófica (ELA) e uma nova variante atípica de esclerose lateral amiotrófica, que recebeu o nome de ELA8. A disfunção no gene foi encontrada em 34 indivíduos, pertencentes a sete famílias: 16 pessoas tinham atrofia espinhal, 15 apresentavam ELA8 e três manifestavam a forma clássica de ELA. Posteriormente, foram identificadas centenas de portadores dessa mutação no Brasil e também no exterior.

As três enfermidades são parecidas e, em certos aspectos, se confundem. A semelhança talvez se deva à descoberta de que a mutação no gene VAP-B pode ser a causa das anomalias. De forma genérica, são classificadas debaixo do grande guarda-chuva das chamadas doenças dos neurônios motores. São lesões que afetam as células do cérebro e/ou da medula espinhal especializadas em enviar impulsos elétricos para os músculos. Estes contraem ou relaxam a partir de comandos transmitidos pelos neurônios motores superiores (cérebro) e inferiores (medula espinhal). No caso dos doentes com a ELA8, os primeiros sintomas costumam aparecer por volta da quarta década de vida e sua sobrevida varia de cinco a 25 anos depois de feito o diagnóstico. A principal responsável pela descoberta e caracterização da nova forma de esclerose lateral amiotrófica, a pesquisadora Agnes Nishimura, que era do centro da USP e hoje é pesquisadora do King’s College em Londres, ganhou em 2007 o Prêmio Paulo Gontijo na categoria Medicina pelos trabalhos com a doença.

Pesquisadores da USP estão tentando encontrar genes que evitam o surgimento da distrofia no zebrafish

Zfin/oregon zebrafish laboratoriesPesquisadores da USP estão tentando encontrar genes que evitam o surgimento da distrofia no zebrafishZfin/oregon zebrafish laboratories

O gene VAP-B e a nova forma de esclerose lateral amiotrófica continuam sendo estudados até hoje pela equipe de Mayana – e resultados interessantes continuam surgindo. No ano passado, o mesmo grupo da USP, em colaboração com colegas brasileiros e estrangeiros de centros de estudos norte-americanos, encontrou uma pista do mecanismo que parece estar envolvido na destruição dos neurônios motores dos doentes. Os cientistas conseguiram gerar neurônios motores de pacientes com ELA8 e constataram que os níveis da proteína VAP-B se encontravam mais reduzidos nesse tipo de célula. “Foi a primeira vez que isso foi feito com essa forma hereditária de esclerose lateral amiotrófica”, diz Mayana, que publicou um artigo com os resultados do experimento em junho do ano passado na revista científica Human Molecular Genetics. Os neurônios motores foram derivados in vitro de células-tronco de pluripotência induzida (iPSC, na sigla em inglês) que, por sua vez, haviam sido geradas a partir de um tipo de célula da pele, os fibroblastos, de pacientes com a doença e comparados com seus parentes normais.

Spoan e golden retriever
Em 2005, num feito cada vez mais difícil de ser obtido na pesquisa genética, uma equipe do centro e do Hospital das Clínicas da USP descobriu uma nova doença neurodegenerativa, batizada de síndrome Spoan (em inglês, o nome significa spastic paraplegia, optic atrophy and neuropathy), numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Norte, Serrinha dos Pintos, onde há muitos casamentos entre pessoas aparentadas. Assim que tiveram certeza de que se tratava de uma condição clínica inédita na literatura científica, originada por uma mutação genética que se manifesta devido a casamentos consanguíneos entre primos, os pesquisadores da USP iniciaram um trabalho de divulgação sobre a patologia e noções de genética para os 4.300 habitantes do município potiguar. A descrição da patologia até então desconhecida saiu na revista americana Annals of Neurology. “Examinamos pacientes de várias idades com a síndrome, dos 10 aos 63 anos”, afirmou, na ocasião, a bióloga Silvana Santos, principal responsável pela descoberta da inédita patologia, à revista Pesquisa FAPESP. “Pudemos ver a evolução da doença. Com o tempo, as pessoas se fecham como uma flor.”

Sem cura, a doença em si não é fatal e mantém intacta a capacidade cognitiva dos doentes. Não provoca retardo mental, dor ou surdez. Mas seus efeitos sobre a qualidade de vida dos afetados, que se tornam deficientes físicos, são devastadores – sobretudo em populações rurais e carentes de serviços de saúde como a de Serrinha dos Pintos. Antes do trabalho dos pesquisadores, os moradores locais creditavam a origem da doença a uma sífilis hereditária que teria se espalhado pelo sangue da família por meio de um ancestral mulherengo. Os pés entortam para fora e a cabeça cai e os doentes acabam em cadeiras de rodas.

Células-tronco do cordão umbilical em azul se fundem com células de paciente com distrofia muscular cinza. A fusão é necessária para a formação de células musculares

2009 Jazedje et al; licensee BioMed Central Ltd Células-tronco do cordão umbilical (em azul) se fundem com células de paciente com distrofia muscular (em cinza). A fusão (última imagem) é necessária para a formação de células musculares2009 Jazedje et al; licensee BioMed Central Ltd

Ainda não se sabe em qual gene está a mutação que causa a doença. Mas os cientistas analisaram amostras de DNA de dezenas de familiares que moram na cidade, entre doentes e sadios, e os resultados dos estudos indicam que o gene da Spoan se encontra numa região do cromossomo 11. O problema é que, sete anos depois da descoberta da nova doença, os esforços ainda não resultaram na localização do gene responsável pela síndrome.

Notícias mais animadoras vieram de um estudo recente com uma dupla de cachorros da raça golden retriever, Ringo, de 9 anos, e seu filho Suflair, de 6 anos. Os cães parecem carregar genes ou mecanismos protetores que neutralizam total ou parcialmente os efeitos negativos da mutação causadora da distrofia muscular. A dupla de animais tem a alteração genética associada à doença, que os impede de produzir distrofina, proteína essencial para a manutenção da integridade dos músculos. No entanto, surpreendentemente nenhum deles apresenta os sinais clássicos da distrofia, como dificuldade para andar e deglutir, e hoje já deveriam estar mortos se tivessem desenvolvido a doença. Recentemente, Ringo teve um câncer de próstata, que não guarda relação com a falta de distrofina e é algo normal para um animal da sua idade. Suflair também não manifesta a distrofia. Apenas puxa um pouco as patas traseiras. Seus irmãos não tiveram a mesma sorte: morreram dias após nascer ou acabaram desenvolvendo distrofia muscular de forma severa.

Num experimento feito em colaboração com o laboratório de Sergio Verjovski-Almeida, do Instituto de Química da USP, os pesquisadores viram que alguns genes dos cães assintomáticos eram menos expressos (ativados) que os dos animais doentes.  “Nossa hipótese é de que a menor expressão desses genes pode conferir alguma forma de proteção aos cães e talvez ser importante para encontrarmos uma forma de combater a doença”, afima Mayana Zatz. “Estamos quebrando um paradigma e mostrando que nem sempre a falta da proteína leva à distrofia. A questão agora é descobrir o que os genes protetores fazem.” Nessa tarefa, o zebrafish, peixe modelo da biologia, também tem sido usado.

Na década passada, ao lado dos estudos genéticos mais tradicionais, Mayana direcionou uma parte dos esforços do CEGH para as pesquisas com células-tronco. “Por sermos um Cepid, tivemos agilidade administativa e financeira para entrar muito rapidamente nessa área”, conta a geneticista, que também participou ativamente nos últimos anos na luta pela regulamentação das pesquisas nesse setor no Brasil. Não demorou muito tempo e os primeiros resultados apareceram. Num trabalho de 2009, pesquisadores do centro e também da equipe de Sergio Verjovski-Almeida, do IQ-USP, levantaram indícios de que as células-tronco presentes no sangue do cordão umbilical e na parede do cordão, tecidos que podem ser armazenados para o caso de futuras necessidades terapêuticas, têm perfis genéticos diferentes. Em 2008, a equipe já havia demonstrado que o cordão é muito mais rico que o sangue em células-tronco mesenquimais, um tipo especial de células com potencial de formar vários tecidos. A particularidade de cada tipo pode afetar o uso médico dessas células caso fique comprovado que as diferenças genéticas representam uma redução em sua versatilidade.

Em abril do ano passado, biólogos do CEGH, num trabalho coordenado por Oswaldo Keith Okamoto, e neurocientistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) publicaram um estudo na versão da revista científica Stem Cell Reviews and Reports mostrando que, em ratos com Parkinson induzido, a presença de fibroblastos humanos anula os possíveis efeitos positivos de um implante de células-tronco mesenquimais, obtidas do tecido do cordão umbilical de recém-nascidos.

Na cadeira de rodas um doente com a síndrome Spoan: nova doença neurodegenerativa foi descoberta em Serrinha dos Pintos (RN) pela equipe do CEGH da USP

eduardo cesar Na cadeira de rodas um doente com a síndrome Spoan: nova doença neurodegenerativa foi descoberta em Serrinha dos Pintos (RN) pela equipe do CEGH da USPeduardo cesar

Projeto 80+
“Quando administramos apenas as células-tronco, os ratos melhoraram dos sintomas da doença”, diz Mayana. “Mas, quando injetamos também os fibroblastos, os efeitos benéficos desapareceram e houve até uma piora. É possível que muitos resultados ruins em trabalhos científicos com terapias celulares se devam a esse tipo de contaminação.” Os fibroblastos são um tipo de célula da pele extremamente parecido com algumas células-tronco, mas que tem propriedades totalmente diferentes. Eles são frequentemente usados como fontes de células-tronco de pluripotência induzida (iPSC), que têm propriedades parecidas com as das células-tronco embrionárias.

Além de representar um avanço no conhecimento básico sobre os eventuais benefícios das terapias celulares num órgão tão complexo e delicado como o cérebro, o resultado do trabalho serviu de alerta para os familiares de pessoas com Par-kinson. Não há, em nenhum país do mundo, tratamento oficialmente aprovado à base de células-tronco para combater essa ou outras doenças neurodegenerativas. “É preciso olhar com cuidado as pesquisas com células-tronco e não fazer falsas promessas de cura”, afirmou outro autor do artigo, o neurocientista Esper Cavalheiro, da Unifesp, que encabeça os trabalhos do Instituto Nacional de Neurociência Translacional, um projeto conjunto da FAPESP e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). “Antes de propormos terapias, precisamos entender todo o mecanismo de diferenciação das células-tronco nos diversos tecidos do organismo e compreender como o cérebro faz para ‘conversar’ e direcionar a atuação dessas células.” Até hoje as únicas doenças que contam com um tratamento à base de células-tronco são as do sangue, em especial os cânceres (leucemias). Contra esse tipo de problema, os médicos lançam mão, há décadas, do transplante de medula óssea, rica em células-tronco hematopoéticas, precursoras do sangue.

Parkinson, alias, é uma das doenças que podem ser beneficiadas pelo mais recente projeto do CEGH. Trata-se da iniciativa 80+, que começou no ano passado e tem como objetivo sequenciar o genoma completo de mil pessoas com mais 80 anos que estejam bem de saúde a fim de even-tualmente descobrir genes ou outros fatores favoráveis ao processo de envelhecimento com boa qualidade de vida. Um banco de dados com o genoma dos octogenários está sendo constituído no CEGH. Amostras de DNA de 400 octogenários sadios já foram recolhidas e serão confrontadas com o material genético de outras mil pessoas saudáveis e doentes com mais de 60 anos. Com essa abordagem, Mayana espera identificar, por exemplo, mutações em genes que possam auxiliar os médicos nos prognósticos sobre o futuro de um paciente.

Se ficar, por exemplo, comprovado que todos ou boa parte dos octogenários saudáveis têm uma determinada alteração genética, que se mostrou inócua ou de efeito desprezível a longo prazo, não há por que um sexagenário ou uma pessoa mais jovem sadio ficar alarmado se essa mesma mutação for detectada nele. Provavelmente, a alteração não vai ser deletéria para esse indivíduo, assim como também não o foi para o de 80 anos. “A tecnologia de sequenciar um genoma está ficando cada vez mais barata”, comenta Mayana, que tem como parceiras na iniciativa Maria Lucia Lebrão e Yeda Duarte, da Faculdade de Saúde Pública da USP, especialistas em envelhecimento. “Esse barateamento vai permitir que analisemos um grande número de amostras.” O projeto 80+ também vai analisar a atividade cerebral de pessoas com mais de 60 anos por meio de exames de ressonância magnética numa parceria com o Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein.

O Projeto
Centro de Estudos do Genoma Humano (nº 1998/14254-2) (2000-2012); Modalidade Programa Centros de Pesquisa (Cepid); Coordenadora Mayana Zatz – IB-USP; Investimento R$ 34.412.866,53

Artigos científicos
NIGRO, V. et al. Autosomal recessive limbgirdle muscular dystrophy, LGMD2F, is caused by a mutation. Nature Genetics. v. 14, n. 2, p. 195-98, 1996.
NISHIMUARA, A.L. et al. A mutation in the vesicle-trafficking protein VAPB causes late-onset spinal muscular atrophy and amyotrophic lateral sclerosis. Am. J. Human Genet. v. 75, n. 5, p. 822-31, 2004.
SECCO, M. et al. Multipotent stem cells from umbilical cord: cord is richer than blood! Stem Cells. v. 26, n. 1, p. 146-50, 2008.

De nosso arquivo
A fraqueza das células-tronco – Edição nº 183 – maio 2011
Spoan: uma nova doença – Edição nº 113 – julho 2005

Republicar