A bactéria Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico, doença que voltou a se alastrar pelas plantações paulistas, passa apenas parte de sua vida no interior das folhas e dos frutos de laranjeiras e limoeiros. Ali, protegida e com fartura de alimento, ela se multiplica e estimula a proliferação das células vegetais, gerando lesões salientes e escurecidas que, ao se romperem, a devolvem ao ambiente. Em boa parte do tempo, porém, enfrenta condições bem menos amigáveis. No solo ou na superfície externa das folhas, onde em geral é encontrada, a competição com outros microrganismos por espaço e nutrientes é acirrada. Mesmo assim, a Xanthomonas citri costuma se sair bem, como comprovam os laranjais da Flórida, nos Estados Unidos, onde a produção caiu à metade nos últimos anos com a disseminação do cancro cítrico e de outra doença, o greening.
Milhares de anos de evolução prepararam a bactéria para lidar com os potenciais concorrentes. Sua célula em forma de bastão é recoberta de filamentos ultrafinos que lembram pelos delgados. Essas estruturas são parte de um mecanismo de defesa que destrói outras bactérias. O bioquímico Shaker Chuck Farah e sua equipe no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) demonstraram que, por meio de um tipo específico desses filamentos, a X. citri lança um coquetel de compostos tóxicos sobre seus potenciais concorrentes.
Os filamentos que lembram pelos na realidade são canais – há ao menos seis tipos conhecidos – que conectam o meio interno da bactéria com o exterior. Uma variedade específica desses canais, o chamado sistema de secreção do tipo IV (T4SS, na sigla inglês), é composta por mais de uma centena de proteínas e tem a forma de uma agulha. Já se sabia que, por meio dela, muitas espécies de bactérias trocam material genético com outras bactérias da mesma ou de outras espécies – fenômeno conhecido como conjugação, que permite a transferência horizontal de genes, associado ao desenvolvimento de resistência a antibióticos. Pelo menos uma bactéria, Agrobacterium tumefaciens, transfere DNA por meio do T4SS para o seu hospedeiro, uma planta, na qual causa tumores conhecidos como galhas. É também por meio desse sistema de secreção que algumas espécies associadas a doenças em animais e seres humanos injetam proteínas que as ajudam a colonizar o hospedeiro. Mas não se conhecia a função do T4SS na Xanthomonas citri e nas dezenas de espécies que integram a família Xanthomonadaceae, da qual fazem parte as bactérias do gênero Stenotrophomonas – entre elas, a espécie S. maltophilia, um patógeno oportunista em seres humanos.
Estudos anteriores indicavam que na família Xanthomonadaceae os canais T4SS eram diferentes dos encontrados em outros grupos de bactérias. Farah e sua equipe também já haviam constatado que, no caso da Xanthomonas citri, essa estrutura não desempenhava um papel essencial na infecção da planta. Agora os pesquisadores da USP verificaram que nessa bactéria o sistema de secreção IV serve para injetar cerca de uma dezena de proteínas tóxicas (toxinas) distintas em outras bactérias.
Essas toxinas digerem açúcares, proteínas e lipídios da parede de bactérias competidoras, fazendo-as expulsar seus conteúdos de uma maneira que, ao microscópio, às vezes parece explosiva. No laboratório de Farah, os biólogos Diorge Souza e Gabriel Oka colocaram milhões de células de X. citri para conviver com uma quantidade semelhante de Escherichia coli, bactéria normalmente encontrada nos intestinos dos mamíferos, e filmaram o que aconteceu. Muitas das vezes em que a X. citri tocou a superfície de uma E. coli a parede desta se rompeu e seu conteúdo extravasou, como pode se ver em um registro disponível na internet. “A bactéria fica deformada quando a integridade da sua parede é comprometida”, explica Farah. “É como um balão de festa cheio de água que estoura”, compara.
A secreção de toxinas é ativada pelo contato, embora ainda não se saiba ao certo como a Xanthomonas reconhece as bactérias de outras espécies. Ela própria, porém, está protegida dos compostos que produz. Souza e Oka verificaram que a Xanthomonas sintetiza antídotos contra suas toxinas. “As antitoxinas estão distribuídas pela parede da Xanthomonas”, explica Souza. “Isso provavelmente impede que ela sofra os danos.”
Atração entre proteínas
A propósito, foi uma dessas antitoxinas que anos atrás deu a Souza uma primeira pista sobre o papel do sistema de secreção do tipo IV na Xanthomonas. Em 2005, o químico Marcos Alegria, à época aluno de doutorado de Farah, havia publicado um trabalho mostrando que em X. citri uma proteína específica – a VirD4 – desse sistema de secreção atraía outras proteínas, todas com função desconhecida na época, para o canal. Uma dessas proteínas, que recebeu a sigla Xac2609, interagiu com a proteína Xac2610, também com função desconhecida. Tempos depois, após determinar a estrutura tridimensional da Xac2610, Souza foi buscar nos bancos de dados públicos outras proteínas com estruturas similares, o que poderia indicar sua função.
A primeira que encontrou foi uma proteína que bloqueia a ação da lisozima e funciona como antitoxina. Esse resultado sugeria que o parceiro de interação da Xac2610, a Xac2609, poderia ser uma lisozima, proteína capaz de digerir a cadeia de açúcares da parede das bactérias. Depois de confirmar a ação dessas duas proteínas, Souza identificou outras potenciais toxinas e antitoxinas – ao todo são 13 do primeiro tipo e 7 do segundo – codificadas no genoma da Xanthomonas citri, além de centenas de outras toxinas associadas ao sistema de secreção do tipo IV de outras espécies da família Xanthomonadaceae.
Testes feitos com bactérias de duas espécies diferentes, a Micrococcus luteus e a Bacillus subtilis, confirmaram que a proteína codificada pelo Xac2609 degrada a parede bacteriana. E que seu efeito é anulado pela Xac2610, segundo artigo publicado em março deste ano na Nature Communications. Mas faltava verificar se essa e outras toxinas eram mesmo exportadas pelo sistema de secreção IV. Souza e Oka, então, desenvolveram X. citri geneticamente alteradas para não produzir o T4SS e as colocaram para crescer junto com bactérias E. coli, que se multiplicam mais rapidamente – a E. coli duplica a cada 30 minutos, enquanto a Xanthomonas citri gasta até cinco vezes mais tempo.
Sem o canal secretor, a Xanthomonas ficou em desvantagem. O experimento começou com números semelhantes das duas espécies e terminou com a E. coli dominando a colônia. Mesmo se reproduzindo mais devagar, a Xanthomonas voltou a prevalecer, eliminando a concorrente, quando os pesquisadores lhe devolveram a capacidade de produzir o T4SS. “O sistema dá uma vantagem competitiva à Xanthomonas”, diz Souza.
Embora a E. coli não seja uma concorrente da Xanthomonas na natureza, os pesquisadores acreditam que o que viram em laboratório pode valer no campo. Eles repetiram o teste contra outras quatro espécies de bactérias classificadas como Gram-negativas, que, como a E. coli, têm um envelope celular composto por três camadas – duas membranas e um periplasma fortificado, composto por um polímero (peptideoglicano) misto de açúcares e aminoácidos. “Até agora a Xanthomonas matou todas”, conta Farah, que começou a estudar a bactéria há quase 15 anos, quando integrou o grupo que sequenciou o genoma da Xanthomonas.
Ambiente hostil
Farah e sua equipe têm evidências de que a X. citri se arma com seu T4SS especialmente quando se encontra na parte externa da folha, ambiente potencialmente mais hostil. “Esse mecanismo deve ajudar a bactéria a se tornar competitiva”, comenta o pesquisador Marcos Antonio Machado, do Centro de Citricultura Sylvio Moreira, em Cordeirópolis. “Em termos tecnológicos, essa constatação abre a possibilidade de que se busquem compostos capazes de inibir o funcionamento desse sistema”, diz o pesquisador, que investiga formas de aumentar a suscetibilidade da X. citri a compostos como o oxicloreto de cobre, usado contra o cancro cítrico nos laranjais paulistas.
Farah acredita que compreender melhor o funcionamento do sistema de secreção IV da Xanthomonas é importante para conhecer como bactérias de diferentes espécies competem entre si quando estão num mesmo ambiente e se utilizam dos mesmos recursos. “Essa competição pode ter implicações para a evolução de comportamentos tanto antagônicos quanto cooperativos entre espécies bacterianas”, conta. Esses estudos também podem levar à identificação de novas toxinas e alvos moleculares para drogas com ação antibacteriana. “Estamos usando a Xanthomonas”, completa Farah, “para entender funções mais universais das bactérias”. n
Projeto
Sinalização por c-di-GMP e o sistema de secreção de macromoléculas do tipo IV em Xanthomonas citri (nº 2011/07777-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Shaker Chuck Farah (IQ-USP); Investimento R$ 2.146.849,71 (FAPESP – para todo o projeto).
Artigos científicos
SOUZA, D. P. et al. Bacterial killing via a type IV secretion system. Nature Communications. 6 mar. 2015.
SOUZA, D. P. et al. A component of the Xanthomonadaceae type IV secretion system combines a VirB7 Motif with a no domain found in outer membrane transport proteins. PLoS Pathogens. 2011.
ALEGRIA, M. C. et al. Identification of new protein-protein interactions involving the products of the chromosome- and plasmid-encoded type IV secretion loci of the phytopathogen Xanthomonas axonopodis pv. citri. Journal of Bacteriology. v. 187, p. 2315-25. 2005.