A busca pela natureza da matéria escura, misterioso componente do Universo, cujo efeito gravitacional seria responsável por manter a configuração das galáxias e dos aglomerados de galáxias, tem produzido resultados inconclusivos nas últimas três décadas. Vários tipos de estruturas ou partículas, algumas conhecidas, como buracos negros primordiais ou neutrinos, e outras de caráter teórico já foram apontadas como candidatas a serem o bloco constituinte da matéria escura, que representa cerca de um quarto da composição de todo o Cosmo. Nenhuma delas, no entanto, passou até agora da condição de postulante. Atualmente a proposta com mais defensores e a mais testada em uma dezena de experimentos internacionais é das Wimps. Essa sigla, em inglês, é usada para designar hipotéticas partículas de massa elevada, entre uma e milhares de vezes maior do que a do próton, que teriam sido criadas nos primórdios do Universo e interagiriam fracamente entre si e com a matéria normal. Como ninguém sabe exatamente quão pesadas seriam as Wimps, os experimentos procuram novas partículas em diferentes faixas de massa. Cada vez que a existência de Wimps com determinadas características é descartada, a margem de procura por esse tipo de partícula se torna mais estreita.
Um estudo concebido pela equipe da física Ivone Albuquerque, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), acaba de restringir um pouco mais o intervalo de massa possível das Wimps. Realizado com dados referentes a 530 dias de observação efetuados pela colaboração internacional DarkSide-50, que opera um detector subterrâneo no Laboratório Nacional Gran Sasso, no centro da Itália, o trabalho não registrou evidências da existência de partículas com massas entre 1,8 e 6 gigaelétrons-volt (GeV), cuja frequência de interação com o equipamento é bem definida. A título de comparação, a massa de um próton é, grosso modo, de quase 1 GeV. Entre os experimentos que buscam por Wimps, como o Large Underground Xenon (Lux) e o Cryogenic Dark Matter Search (CDMS), ambos nos Estados Unidos, apenas o Xenon100 também procurou partículas com as mesmas características das buscadas pelo DarkSide-50. Ainda assim, os dados desse experimento são bem mais abrangentes que os do Xenon100, segundo Ivone. “Foi um resultado surpreendente”, comenta a física, que coordena a participação brasileira na colaboração internacional, que reúne cerca de 150 pesquisadores de oito países. “Nosso detector do DarkSide-50, que fica na Itália, ainda é pequeno e não foi pensado para registrar partículas tão leves. Normalmente estamos procurando por Wimps com massas entre 10 e 100 GeV.” Os resultados foram detalhados em um trabalho publicado pela colaboração internacional em 20 de fevereiro no arXiv, repositório de artigos científicos, e apresentados em um encontro internacional sobre matéria escura realizado na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla).
A matéria escura responderia por cerca de 25% da composição do Universo – 5% seriam formados pela matéria normal visível, também denominada bariônica, e aproximadamente 70% pela energia escura. A maioria dos físicos atribui à sua existência o papel de manter a coesão das galáxias. Essas estruturas do Universo giram a uma velocidade tão elevada que, se fossem compostas apenas pela matéria normal, teriam se despedaçado muito tempo atrás. Somente a gravidade gerada pela parte visível do Cosmo não é suficiente para manter unidas as galáxias. Logo, é necessário que exista alguma forma de matéria que não interaja com a luz e que tenha um efeito gravitacional muito maior que o da parte visível dos conjuntos de galáxias. Essa forma ganhou o nome genérico de matéria escura. “As partículas de matéria escura passam por nós”, supõe a física argentina Graciela Gelmini, da Ucla, que estuda candidatos à matéria escura. “Elas se moveriam por todos lados da galáxia a velocidades de 300 quilômetros por segundo (km/s).”
A velocidade com que a matéria escura estaria se movendo elimina algumas possibilidades e restringe os tipos de partículas que poderiam constituí-la. A maioria dos modelos cosmológicos prevê que a matéria escura deve ser fria, talvez morna. “A existência de matéria escura quente foi descartada por observações cosmológicas”, explica o físico Rogério Rosenfeld, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp). O conceito de matéria escura fria ou quente está associado à velocidade dessas misteriosas partículas. A matéria escura quente se movimentaria a velocidades relativísticas, próximas à da luz, de cerca de 300 mil k/s, enquanto a fria se deslocaria a uma velocidade muito menor. “Mas, se a matéria escura se deslocasse a velocidades relativísticas, a matéria bariônica não teria se unido e originado a distribuição de galáxias e de aglomerados de galáxias que conhecemos”, comenta Rosenfeld, que participa do Dark Energy Survey (DES), levantamento internacional que mapeia as estruturas visíveis do Universo, como galáxias e estrelas.
Em janeiro deste ano, um grupo de pesquisadores do DES publicou na versão on-line do periódico científico Monthly Notices of the Royal Astronomical Society o maior mapa da ocorrência da matéria com o emprego da técnica de lentes gravitacionais fracas. Esse método permite inferir a presença da matéria escura por meio de uma pequena distorção que ela causa na trajetória da luz de galáxias distantes. “Vimos a deformação causada nas imagens desses objetos”, detalha a física Flávia Sobreira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que participa do DES e é uma das autoras do trabalho. “Os dados reforçam a ideia de que a matéria escura é fria.” O levantamento mapeou imagens de 26 milhões de galáxias visíveis no hemisfério Sul, em torno das quais há halos de matéria escura. Os dados observacionais do Cosmo não visam identificar possíveis partículas que possam ser constituintes da matéria escura, mas fornecem alguns parâmetros importantes para orientar essa busca. Segundo Rosenfeld, estudos recentes sugerem que a menor massa possível da matéria escura morna compatível com a distribuição conhecida de matéria visível no Cosmo seria cerca de um milhão de vezes menor do que a do próton, da ordem de 5 mil elétrons-volt (eV). As Wimps não poderiam ser tão leves assim, mas os neutrinos estéreis, um tipo hipotético de partícula elementar, poderiam ter massas tão pequenas. O problema é que também não há indícios da existência desse tipo de neutrinos. A procura pela essência da matéria escura se concentra então praticamente na busca por Wimps.
Interação com duas forças
Os modelos cosmológicos dominantes preveem que, se as Wimps forem os constituintes da matéria escura, a massa dessas partículas seria equivalente à de pelo menos 100 prótons. O problema é que os físicos procuram há mais de 20 anos por partículas em torno dessa faixa de massa e não encontraram nada. Mais recentemente alguns modelos passaram a considerar a possibilidade de que a matéria escura poderia ser constituída de Wimps com massas mais leves, de menos de 10 GeV. Alguns experimentos, como o DarkSide-50, que foi concebido para tentar descobrir Wimps com massas acima de 10 GeV, começaram então a buscar partículas que pudessem se encaixar nessa definição. As teorias mais aceitas sobre as Wimps preveem que essas partículas devem interagir entre si e com a matéria normal por meio de apenas duas das quatro forças da física: a gravidade e a força nuclear fraca (ligada a processos de decaimento do núcleo atômico). Elas não sentiriam nenhum efeito do eletromagnetismo e da força nuclear forte.
Em operação desde 2013, o DarkSide-50 conta com um detector composto por uma câmara que abriga 50 quilos de argônio líquido. Ao lado do xenônio e, às vezes, do germânio, esse elemento é um dos mais empregados em experimentos subterrâneos na busca por Wimps. O equipamento seria capaz de detectar os flashes de luz produzidos pelos choques das partículas de matéria com o núcleo desses elementos. “O xenônio é mais usado, mas o argônio custa 400 vezes menos e possibilita construir detectores mais baratos”, comenta Ivone. Até 2021, o projeto DarkSide, que é coordenado pelo Instituto Nacional de Física Nuclear da Itália e pela Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, planeja instalar um novo detector, mais potente, contendo 20 toneladas de argônio.
A opção por instalar esses equipamentos embaixo da terra é uma forma de evitar que sinais associados à matéria escura sejam confundidos com contaminações vindas do espaço ou da atmosfera. Apenas em um lugar do mundo, cerca de 1.400 metros abaixo das montanhas do Gran Sasso, na Itália, há seis experimentos independentes de grupos diferentes que buscam partículas candidatas à matéria escura: Xenon100, Sabre, Dama, Cresst, Cosinus, além do DarkSide.
A procura por Wimps também pode ocorrer de forma indireta. Esse é o caso do projeto IceCube, coordenado pela Universidade de Winsconsin-Madison, dos Estados Unidos, e projetado para estudar neutrinos, um tipo de partícula elementar quase sem massa produzido em eventos astronômicos de alta energia. O projeto dispõe de uma rede de detectores subterrâneos espalhados pelo interior de um bloco de 1 quilômetro cúbico de gelo na Antártida, próximo ao polo Sul. O IceCube seria capaz de detectar neutrinos produzidos em possíveis interações de Wimps no Sol. Por ora, como todos os demais experimentos, nada de significativo foi encontrado.
Até hoje, o experimento Dama foi o que produziu a notícia mais espetacular sobre a matéria escura. Em 1998, físicos da Universidade de Roma Tor Vergata anunciaram que tinham descoberto uma Wimp, com massa em torno de 10 GeV, que seria a matéria escura. Os pesquisadores italianos teriam registrado um sinal sazonal, cujo pico máximo apareceria por volta do início de junho, em seu detector baseado em cristais de iodeto de sódio ativados pelo metal tálio, uma tecnologia diferente da empregada na maioria dos experimentos. O sinal oscilaria em razão das características da órbita da Terra, que atravessaria um “vento” de matéria escura, em direções opostas, dependendo da época do ano, enquanto gira em torno do Sol.
Ninguém, no entanto, jamais conseguiu reproduzir os resultados do Dama, que, com novos detectores, continua funcionando até hoje. O físico Nelson Carlin Filho, do IF-USP, participa de um experimento sul-coreano, o Cosine-100, que começou a tomar dados em setembro de 2016. A iniciativa usa a mesma tecnologia de detecção do Dama e tentará confirmar ou refutar os resultados do projeto italiano.“Teremos de esperar dois anos para começar a ter os primeiros resultados”, comenta Carlin Filho.
Projetos
1. Detecção direta de matéria escura e o experimento DarkSide (nº 16/09084-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Ivone Albuquerque (USP); Investimento R$ 102.060,36.
2. Procura da matéria escura: Wimps e fótons escuros (nº 17/02952-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Nelson Carlin Filho USP); Investimento R$ 155.820,64.
Artigo científico
AGNES, P. et al. Low-mass dark matter search with the DarkSide-50 experiment. ArXiv. On-line. 20 fev. 2018.