Marco da redemocratização e do reconhecimento de direitos civis e sociais, a Constituição brasileira completou 30 anos de vigência em outubro em meio à intensificação do debate sobre sua capacidade de sustentar o pacto político-social que vem regendo a democracia do país e suas instituições. Para além da efeméride, a crise que o Brasil atravessa nos últimos anos tem exigido de pesquisadores do tema o aprofundamento das reflexões. Estudos sobre o processo constituinte, a constitucionalização e os efeitos das políticas sociais, a proeminência do Judiciário, além de análises sobre o futuro do texto constitucional vêm adquirindo relevância na produção científica, especialmente nas áreas do direito, da ciência política e economia.
Ao longo dessas três décadas, um dos principais desafios acadêmicos tem sido compreender como o processo constituinte, cujo embrião sugeria uma influência importante de setores conservadores, entre os quais muitos que estiveram envolvidos com a ditadura militar (1964-1985), resultou em um documento voltado aos direitos sociais. Uma chave fundamental para o entendimento dessa questão reside na análise das interações entre as forças políticas envolvidas e do conjunto de regras que norteou os debates e a elaboração da própria Constituição – o regimento interno da Assembleia Nacional Constituinte (ANC).
Em 1986, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) conquistara expressiva votação, obtendo 54% dos assentos, ou 303 das 559 vagas em disputa, nas eleições para a ANC. Com o Partido da Frente Liberal (PFL), formado por dissidentes da Aliança Renovadora Nacional (Arena), sigla de sustentação da ditadura, o PMDB integrava a Aliança Democrática, coligação bastante heterogênea, mas predominantemente conservadora. Abrigava desde políticos ligados aos militares até congressistas alinhados com uma pauta considerada mais progressista, caso de Mário Covas. Ao assumir a liderança do PMDB na Constituinte, o senador paulista levou o partido a romper com a Aliança Democrática. “A partir daí, a constituinte se polarizou, com um bloco progressista formado pelo PMDB de Mário Covas e partidos como o PT [Partido dos Trabalhadores] e o PDT [Partido Democrático Trabalhista], dependendo da pauta, e, do outro lado, as forças que apoiaram o regime, incluindo PFL e PTB [Partido Trabalhista Brasileiro]”, diz o cientista político Antônio Sérgio Rocha, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Guarulhos.
Mais organizados e coesos, os chamados progressistas conseguiram incluir no regimento regras que permitiram, por exemplo, a descentralização do processo constituinte. As comissões e subcomissões temáticas tinham o poder de iniciar e estabelecer a pauta de debates, sendo responsáveis por formatar os anteprojetos que só posteriormente seriam votados em plenário. “Com sua habilidade política, o líder do PMDB [Mário Covas] conseguiu indicar para a maioria das comissões relatores comprometidos com a agenda social. Isso assegurou vantagem aos progressistas, que eram minoria na ANC”, diz o cientista político Lucas Costa, que, no Centro de Política e Economia do Setor Público (CEPESP) da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (EAESP-FGV), pesquisa a influência da Constituição brasileira nas constituições latino-americanas, principalmente no que se refere à implementação de políticas sociais.
Democracia direta
Outra singularidade do processo constituinte foi a introdução de mecanismos de democracia direta. “Até então, era muito raro um modelo de processo constituinte que contasse com instrumentos de participação popular como ocorreu no caso brasileiro, com as emendas populares e as audiências públicas”, compara Costa. O dispositivo que regulamentava as emendas populares garantia que qualquer proposta apresentada com a assinatura de pelo menos 30 mil eleitores brasileiros e o reconhecimento de pelo menos três entidades associativas seria obrigatoriamente discutida e votada na Assembleia Constituinte.
Segundo o cientista político da FGV, o fato de a maioria das subcomissões ser liderada por relatores progressistas e de o regimento permitir ampla participação popular garantiu o avanço da agenda social nos primeiros momentos da ANC. Nessa etapa, houve participação ativa de vários grupos de interesse. “O Diap [Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar], por exemplo, conseguiu unir centrais sindicais como a CUT [Central Única dos Trabalhadores] e a CGT [Central Geral dos Trabalhadores] em defesa de sua agenda, enquanto os empresários atuavam de forma individualizada e pouco coesa”, conta. Além da mobilização trabalhista, grupos que defendiam pautas ligadas à saúde e à educação também se organizaram em torno de suas bandeiras.
Paralelamente, os movimentos sociais encontraram na ala progressista da Igreja Católica importante aliada na luta pela participação popular na Constituinte. A extensão desse protagonismo é uma das revelações do projeto A Constituinte recuperada: Vozes da transição, memória da redemocratização, 1983-1988. Foram entrevistados mais de cem atores envolvidos na transição política e nos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, em esforço coordenado por Antônio Sérgio, da Unifesp.
Ele lembra que desde o final dos anos 1970, sob a iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), um grupo de juristas percorreu diversos pontos do país, aproveitando a estrutura das comunidades eclesiais de base, ligadas à Igreja, para explicar à população a importância de uma nova Constituinte que restaurasse o estado democrático de direito. “Com essa mobilização, a Igreja foi fundamental no esforço de coleta das assinaturas para as emendas populares, nos mais diversos locais do país. Além disso, segundo o urbanista e líder católico Francisco Whitaker, a Igreja também ajudou a fretar ônibus para garantir o acesso dos movimentos sociais às audiências públicas em Brasília e hospedou as lideranças nos conventos e prédios eclesiásticos da capital”, relata Antônio Sérgio.
As forças conservadoras
Na fase seguinte dos trabalhos, cada comissão temática apresentou seu anteprojeto à comissão de sistematização, que ficou responsável por consolidar as demandas. Desse processo resultou o primeiro projeto de Constituição que, conforme observado nos estudos de Antônio Sérgio e também de Costa, refletiu a sobrerrepresentação da ala progressista nas comissões temáticas. A etapa posterior seria a votação em plenário, mas as regras do regimento interno impunham limitações para a alteração do texto. Insatisfeitos com os rumos do processo, os setores mais conservadores da ANC tentaram retomar seu controle. Sob o comando do então presidente da República José Sarney (1985-1990), foi articulada uma coalizão suprapartidária que se tornaria conhecida como Centrão. O objetivo principal era alterar o regimento para permitir a apresentação de emendas e substitutivos em plenário e modificar o projeto aprovado pela comissão de sistematização. O bloco agiu também para derrubar duas medidas específicas: o sistema parlamentarista de governo e o mandato de quatro anos para Sarney – a coalizão defendia o presidencialismo e cinco anos de mandato. A articulação foi bem-sucedida, e um novo regimento interno, mais propício a modificações em plenário, aprovado.
Além de manter os poderes do Executivo, esse bloco defendeu medidas propostas pela cúpula militar. Segundo Antônio Sérgio, o ministro do Exército à época, o general Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015), redigiu um documento com 26 reivindicações dos militares. Uma dessas reivindicações previa que as Forças Armadas seriam responsáveis pela garantia da lei e da ordem em território nacional. Atenuada em sua formulação final, a reivindicação foi contemplada no artigo 142 da Constituição, que dispõe que as Forças Armadas são subordinadas à Presidência da República, destinando-se “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, apenas quando convocadas por um deles, pela garantia da lei e da ordem”.
As alterações no regimento interno e essa interação entre as forças políticas atrasaram o processo. Instalada em 1º de fevereiro de 1987, e com previsão para encerrar suas atividades em 15 de novembro daquele ano, a Constituinte brasileira durou 20 meses, período bastante extenso se comparado, por exemplo, a processos latino-americanos recentes – o caso da Bolívia, que em duração mais se aproxima do brasileiro, levou 16 meses; o venezuelano e o colombiano, quatro meses. O texto final da Constituição foi aprovado em plenário no dia 22 de setembro de 1988, com 474 votos a favor, 15 contra e seis abstenções. Apesar de 15 dos 16 constituintes do PT terem votado contra a redação final, por considerarem que, mesmo havendo avanços, as estruturas de poder permaneceriam intactas, o partido assinou o documento final.
Mesmo com as alterações no regimento interno e o atendimento de várias das demandas dos conservadores, o texto final não perdeu sua característica primordialmente progressista. Isso porque, de acordo com Costa, era elevado o custo político para retirar grande parte dos direitos incluídos nas etapas iniciais do processo constituinte. Dessa forma, mesmo fazendo concessões, os progressistas conseguiram levar à sanção um documento que contemplou muitas de suas propostas.
As políticas sociais
Entre suas principais disposições, a Constituição de 88 coloca o Estado como garantidor de políticas voltadas à universalização da educação e saúde, restabelece liberdades individuais e de expressão, inova no capítulo ambiental, consolida direitos trabalhistas e promove direitos de populações minoritárias, como quilombolas e indígenas. Fruto de articulação entre antropólogos, juristas e lideranças indígenas, a Constituição é a primeira do país a dedicar um capítulo inteiro aos povos indígenas. O documento confere ao Estado o dever de manter relações protetoras com as comunidades tradicionais e de promover seus direitos. “Trata-se de um marco porque introduz a ideia de que esses povos têm direito a um futuro e a continuar a existir”, sintetiza Samuel Barbosa, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e organizador, com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, do recém-lançado Direitos dos povos indígenas em disputa (editora Unesp). “Até então, a visão que se tinha do índio era a de um resquício do passado, que desapareceria à medida que fosse assimilado à cultura nacional.”
Outra importante mudança de paradigma foi o estabelecimento do “direito originário” – a garantia de que índios têm direito à terra tradicionalmente ocupada. “Isso é diferente de deslocar os povos para uma reserva indígena, que é uma criação artificial do Estado”, explica Barbosa. Pela Constituição, as terras originárias são de propriedade da União, cuja responsabilidade é demarcá-las e garantir aos índios sua posse. “A demarcação é condição necessária para a reprodução física e cultural dos índios porque, para eles, a terra tem dimensões não apenas econômicas, mas culturais e religiosas. Sem o vínculo com a terra, suas tradições desaparecem, e os índios são assimilados”, diz.
“A Constituição estabelece mudança de paradigma para as políticas sociais, ao garantir a todos, por exemplo, direito à aposentadoria e à saúde, benefícios antes restritos a quem tinha carteira assinada”, analisa a cientista política Marta Arretche, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e coordenadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um do Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) apoiados pela FAPESP. “Cerca de 60% da população, que até então estava excluída, passou a usufruir dessas políticas sociais, o que não é pouca coisa”, afirma (ver reportagem).