LÉO RAMOSO físico José Goldemberg, de 87 anos, divide a sua trajetória científica em duas fases. A primeira começou em 1948 quando, ainda estudante de graduação na Universidade de São Paulo (USP), se tornou bolsista do professor Marcello Damy de Souza Santos, a quem ajudou na instalação do Betatron, primeiro acelerador de partículas do Brasil. Essa etapa durou até o fim dos anos 1970, época em que Goldemberg presidiu a Sociedade Brasileira de Física (SBF) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Ao longo desse período, Goldemberg produziu contribuições originais em temas da física nuclear, como os efeitos do bombardeio de radiação eletromagnética sobre o núcleo atômico, e se tornou uma das vozes da sociedade civil que criticavam a política nuclear do governo militar.
Um ponto de inflexão na carreira foi um artigo publicado na revista Science que quantificou as vantagens ambientais do etanol de cana brasileiro. Nesse trabalho, de 1978, Goldemberg descreveu cálculos mostrando que, para cada litro de etanol produzido, gastava-se apenas um décimo de litro de combustível fóssil. O desempenho era superior ao do etanol norte-americano, obtido a partir do milho, não tão eficiente quanto a cana. “Veja só que ironia: o artigo da Science me dá reconhecimento até hoje. Mas o que fiz ali foi uma conta de aritmética, algo muito mais simples do que as equações de mecânica quântica com que trabalhava na minha vida de físico nuclear”, afirma. Depois do artigo da Science, sua produção científica foi tomando um novo rumo e Goldemberg tornou-se uma referência internacional em energias renováveis.
O reconhecimento se acentuou nos últimos anos. Em dezembro de 2007, a revista Time incluiu seu nome numa lista de 13 “heróis mundiais do meio ambiente”, classificando de profético o artigo da Science. No ano seguinte, a Asahi Glass Foundation, do Japão, concedeu ao professor o Prêmio Planeta Azul, com direito a 50 milhões de ienes (o equivalente a R$ 800 mil), por “ter dado grandes contribuições na formulação e implementação de diversas políticas associadas a melhoras no uso e na conservação de energia”, com destaque para o conceito proposto por ele segundo o qual, para se desenvolver, os países pobres não precisam repetir paradigmas tecnológicos trilhados no passado pelos ricos, mas podem pular etapas. Em janeiro de 2013, o pesquisador estava nos Emirados Árabes recebendo o Prêmio Zayed de Energia do Futuro na categoria Life Achievement, concedido a personalidades que se destacam no campo de energia renovável. “Foi curioso receber um prêmio num país cuja riqueza se baseia no petróleo. No meu discurso, eu disse que o sheik Zayed, que instituiu o prêmio, era um homem sábio e estava mesmo olhando para o futuro”, diz Goldemberg, que desde 2006 é copresidente do Global Energy Assessment, projeto sediado em Viena que envolve cerca de uma centena de pesquisadores de vários países, analisa a situação da produção e uso da energia e faz projeções para o futuro.
Seu trabalho pioneiro sobre a sustentabilidade do etanol teve impacto também no Brasil porque deu credibilidade científica ao Programa Nacional do Álcool, criado pelo governo militar nos anos 1970. A inspiração do Proálcool não era ambiental. O objetivo era diminuir o impacto na balança de pagamentos das importações de petróleo e dar uma opção para as usinas de açúcar, commodity obtida da cana cujos preços estavam em queda. “O etanol é energia solar liquefeita. O sol bate, a cana cresce e do seu caldo se produz etanol, combustível que é renovável e pouco contribui para o efeito estufa”, explica. As opiniões de Goldemberg reverberavam naquela época. No início dos anos 1970, opôs-se abertamente à estratégia do governo militar de importar tecnologia nuclear sem transferência de conhecimento. Defendia que os físicos brasileiros tinham um papel a desempenhar na política nuclear do país. Em 1972, escreveu artigos na imprensa bastante críticos à compra de reatores nucleares dos Estados Unidos. Apesar da censura na época, nunca teve problema em publicá-los. “Minha militância não era política, mas em defesa dos cientistas”, diz. “Também considerava que havia um grande potencial hidrelétrico a ser desenvolvido e que o investimento em usinas nucleares podia comprometer essa estratégia”, diz.
José Goldemberg nasceu na cidade gaúcha de Santo Ângelo em 1928. Era o caçula de quatro filhos de um casal de judeus russos que migrou para o Brasil no início do século passado para trabalhar na agricultura. Perdeu a mãe aos 5 anos e foi criado pelo pai e as três irmãs mais velhas. Em 1935, a família transferiu-se para Porto Alegre, onde Goldemberg fez sua formação no ensino fundamental e médio no Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Ali, a vocação para as ciências exatas ficou clara. Com o insucesso do pai como comerciante e as dificuldades que a família enfrentava, o jovem estudante era pressionado a canalizar seus talentos para a engenharia, profissão associada à prosperidade. Mas ele trilhou outro caminho. Em 1946, foi para São Paulo fazer vestibular para o curso de química da USP, depois de ouvir que lá havia professores muito bons e por acreditar que na química poderia estudar o assunto que mais lhe interessava, a estrutura da matéria. Entrou na USP, mas não gostou do curso, pois os professores de origem alemã adotavam uma abordagem defasada. Prestou novo vestibular no ano seguinte. No curso de física, teve aulas, em 1947, com o ítalo-ucraniano Gleb Wataghin, formador de uma geração de físicos brasileiros.
Para se sustentar, foi procurar emprego. Primeiro, trabalhou como datilógrafo de um cartório. “Foi uma das experiências interessantes que tive na vida, porque me tornei um excelente datilógrafo”, contou Goldemberg em depoimento concedido em 1976 ao sociólogo Simon Schwartzman. Em 1950, foi contratado pela USP para trabalhar com o Betatron e casou-se. Dois anos depois, aceitou um convite para passar uma temporada na Universidade de Saskatchewan, no Canadá, que tinha um acelerador idêntico ao Betatron. Lá, realizou experiências que permitiram uma análise sistemática de reações fotonucleares. “Constatamos que ocorre uma ressonância gigante quando a radiação eletromagnética bate no núcleo atômico e faz oscilar os prótons contra os nêutrons”, lembra. Foi então para a Universidade de Illinois, onde trabalhou com Donald Kerst, inventor do Betatron. Voltou ao Brasil, em 1954, e obteve o grau de doutor pela USP e, em seguida, a livre-docência. Em 1962, regressou aos Estados Unidos para trabalhar na Universidade Stanford com um acelerador linear, desenvolvendo uma técnica pioneira de medir momentos magnéticos dos núcleos.
Em 1964, tornou-se professor visitante da Universidade de Paris, mas um drama pessoal abreviou a temporada. Ele perdeu a mulher, vítima de câncer, e decidiu retornar ao Brasil com os três filhos. Na época, ganhou de presente da Universidade Stanford, como doação, o acelerador com o qual havia trabalhado nos Estados Unidos. O instrumento, no valor de cerca de US$ 1 milhão na época, ajudou a modernizar as instalações de física nuclear da USP. Em 1968, fez concurso na Escola Politécnica, da qual se tornou catedrático de Física Experimental. Com a reforma universitária, em 1970, foi para o Instituto de Física, que reuniu todos os docentes da área antes espalhados pela universidade. Logo se tornaria diretor do instituto, cargo no qual permaneceu até 1978. “O professor Goldemberg teve um papel importante para o crescimento do Instituto de Física”, diz o físico e professor da USP Ernst Hamburger, que também destaca o trabalho de Goldemberg na criação da Sociedade Brasileira de Física, cuja presidência assumiu em 1975. “Em 1969, houve as cassações, que atingiram entre outros o físico José Leite Lopes, então presidente da SBF.” Goldemberg respondeu pelo cargo interinamente e organizou novas eleições, mas, naquele momento, não quis se candidatar. “Ele se retraiu um pouco. Não sabíamos onde as cassações iam parar”, lembra Hamburger.
Seguiu-se seu engajamento como presidente da SBPC, entre 1979 e 1981, momento em que se ensaiava a transição para a democracia. Goldemberg era vice-presidente da entidade, mas foi alçado ao comando com a renúncia de José Reis. Encerrado o ciclo autoritário, Goldemberg assumiu diversos cargos públicos. Foi presidente da Companhia Energética de São Paulo (1983-1985) e reitor da Universidade de São Paulo (1986- 1990). Nessa época, acentuou seu interesse por questões ambientais, escrevendo sobre temas como as mudanças climáticas, a biodiversidade e o buraco na camada de ozônio. “Ele levou esses temas extremamente a sério. Na USP, inspirou a criação de um programa de ciência ambiental, o Procam”, observa o astrogeofísico Luiz Gylvan Meira Filho, ex-presidente da Agência Espacial Brasileira e pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP. Gylvan, que fez carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), era um interlocutor frequente de Goldemberg sobre temas ligados à energia e ao meio ambiente. “Um dia, ele apareceu lá no Inpe e disse, em tom de brincadeira: ‘Meus amigos, não sou mais o colega com quem vocês conversavam. Agora eu sou o chefe. Vocês vão ter que fazer o que eu venho dizendo’.” Goldemberg se tornara secretário de Ciência e Tecnologia, com status de ministro, no governo Collor, e fez de Gylvan seu assessor. Mais tarde, Goldemberg assumiu temporariamente a Secretaria do Meio Ambiente, também com status de ministro, na época da Conferência Rio-92, e depois se tornou ministro da Educação. “Mesmo no MEC, continuou colaborando informalmente com a Secretaria da Ciência e Tecnologia. Como o novo secretário, Hélio Jaguaribe, não tinha o mesmo interesse por temas ligados à energia, de vez em quando eu ia até o MEC consultá-lo”, lembra Gylvan.
Da experiência como homem público, costuma ser lembrado pelo protagonismo na Rio-92, o que acha um exagero. “Eu apenas era o ministro e não atrapalhei. O mérito é do canadense Maurice Strong, secretário-geral da conferência. Foi um acerto do governo Collor, que trouxe a conferência para o Rio.” De sua trajetória em cargos de governo, tem carinho especial pelo período como reitor. “A reitoria foi um período importante, porque conquistamos autonomia financeira para as universidades estaduais paulistas. Também dão mérito disso a mim, mas o Paulo Renato Souza, que era reitor da Unicamp, foi uma figura fundamental nesse processo”, diz Goldemberg. “Depois, como ministro da Educação, tentei garantir autonomia financeira às universidades federais, mas os reitores não quiseram. A autonomia implicava mais responsabilidade e eles não estavam interessados.”
Entre 2002 e 2006, assumiu a Secretaria Estadual do Meio Ambiente, escolhido pelo governador Geraldo Alckmin, quando implantou no estado a colheita mecanizada da cana, missão de que se orgulha. “Foi um tremendo avanço do ponto de vista ambiental e tecnológico. Acabou com os boias-frias. O sindicato da categoria não gostou, por medo do desemprego. Isso não aconteceu, porque o etanol se expandia e podia se trabalhar em outras atividades no setor. Hoje, 80% da colheita em São Paulo é mecanizada”, afirma.
Depois da aposentadoria como professor da USP, Goldemberg vinculou-se ao Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, onde dá expediente até hoje. “Ele segue muito ativo e suas opiniões continuam tendo peso. Tanto a pesquisa como o ensino da física aproveitaram muito da personalidade, do conhecimento e da habilidade do professor Goldemberg”, diz Ernst Hamburger. Casado pela segunda vez, teve uma filha e netos de várias idades. A neta mais nova tem 3 anos. “Tive netos dos meus filhos há 20 ou 30 anos e achei que a fase tinha passado. É uma alegria voltar a ter uma neta agora”, diz.
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