“Muitos marranos perderam suas vidas, não porque secretamente continuassem em sua fé religiosa judaica, ou porque expressassem uma fé sincrética, mas porque eram judeus, exatamente como milhões de judeus perderam suas vidas no século 20, não por razões religiosas, mas, simplesmente, porque eram judeus.”
Esse pequeno trecho de um artigo recente da professora Anita Novinsky resume bem o horizonte conceitual que motivou a trajetória acadêmica e intelectual da mais importante estudiosa do judaísmo no Brasil. Em seu clássico Cristãos-Novos na Bahia, publicado em 1972, Anita Novinsky elaborou o conceito de “homem dividido” para tentar traduzir o sentimento de exclusão vivenciado por um imenso contingente de judeus portugueses que, a partir de 1497, foram obrigados a se converter ao cristianismo, passando a não ser mais nem judeus para os judeus, nem cristãos entre aqueles que passaram a ser chamados de cristãos-velhos, grupo livre da ascendência que passou a identificar o “sangue infecto” dos descendentes da lei mosaica. Quase 30 anos depois, e aprofundando a discussão sobre o conflito interior desse “homem dividido”, Novinsky tem preferido o termo marrano a cristão-novo para compreender a história sefardita no Brasil colonial, argumentando que, embora muitos recém-conversos perseguidos pela Inquisição portuguesa tenham mantido em segredo suas crenças e práticas proibidas, estruturou-se na colônia uma sociedade marrana pluralista e cuja ligação não se deu necessariamente por meio da religião. Sua tese fundamental é a de que não foi a prática religiosa que motivou a perseguição inquisitorial ou a discriminação racial, mas a “velha tradição anti-semita do mundo ocidental”, reelaborada contínua e historicamente.
Para compreender o caminho capaz de ligar as duas pontas dessa trajetória conceitual é preciso inseri-lo no campo de estudos judaicos que a historiadora e a obra de 1972 criaram, e do que dá provas inequívocas o recém-lançado Ensaios sobre a Intolerância. Inquisição, Marranismo e Anti-semitismo, organizado por Lina Gorenstein e Maria Luiza Tucci Carneiro, ambas formadas na chamada “escola Novinsky”. Livro de justíssima homenagem à pesquisadora da USP, o conjunto de ensaios ultrapassa, da melhor forma possível, a deferência dos autores com “a mestra” de todos eles, pois demonstram não só a vitalidade dos estudos judaicos no Brasil como as sendas abertas pela documentação inquisitorial inventariada e desde 1978 posta à disposição dos pesquisadores não só da questão marrana, mas também das religiosidades e da vida cultural da colônia, por meio da série Fontes para a História de Portugal e do Brasil.
O livro está dividido em cinco partes e, apesar de dedicar a maioria a alguns dos inúmeros aspectos da questão judaica do século 16 ao 20, traz também estudos que cruzam a questão judaica com outras dimensões da discriminação – a exemplo do texto de Luiz Mott sobre cristãos-novos homossexuais nos tempos da Inquisição -, ou trabalhos que tiveram início com os processos inquisitoriais indicados por Anita Novisnky e resultaram em campo novo de pesquisa, como foi o caso das religiosidades populares na colônia, aberto por Laura de Mello e Souza e presente na homenagem a Novinsky com mais um de seus inspiradores trabalhos sobre o calundu. Mas se ainda não bastasse, inclui-se entre os ensaios artigo que polemiza com a tese central da homenageada: Ronaldo Vainfas analisa um escrito da primeira metade do século 16 e levanta indícios dos aspectos essencialmente doutrinários e religiosos da cruzada antijudaica presente em Portugal no período.
Trata-se, portanto, de uma homenagem que procurou estar à altura da contribuição de Anita Novinsky à historiografia brasileira. E isso não podia ser pouco.
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