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Biocombustíveis

Entre açúcares e genes

Aplicação do conhecimento científico da cana deverá servir ao desenvolvimento de novas ferramentas para a produção de etanol

LÉO RAMOSNo Instituto de Química da USP, mudas de cana-de-açúcar transgênicaLÉO RAMOS

Os mais velhos diriam que a cana-de-açúcar está sendo virada do avesso tal é o volume de estudos genéticos, fisiológicos e agronômicos a que está sendo submetida nos últimos anos. O que se quer é conhecer mais profundamente a planta e suas peculiaridades com o intuito de aumentar a produtividade dessa gramínea trazida pelos portugueses ao Brasil ainda no século XVI. A meta final é produzir mais etanol em um mesmo hectare de terra. Para isso contam também as pesquisas para tornar a cana mais adaptada à chamada segunda geração de produção de álcool, quando enzimas vão aproveitar os açúcares que são recuperados do bagaço de cana para a formação de uma espécie de sopa e então produzir mais biocombustível. Assim, pesquisadores de várias instituições brasileiras estão com um olho na pesquisa básica e outro lá na frente, no futuro do processo industrial de produção de etanol. O avanço no conhecimento científico começou em 1999 com o lançamento do Genoma Cana, financiado pela FAPESP, e o último resultado das pesquisas confirma que o colmo e as folhas da cana possuem mais açúcares, substâncias primordiais na elaboração do etanol, na porção hemicelulose do que na celulose, um conhecimento que pode mudar os rumos da produção de etanol de segunda geração no futuro.

“Fizemos estudos na parede celular tanto do colmo quanto das folhas da cana que mostraram a presença de cerca de 30% de açúcares na celulose, 50% na hemicelulose, além de 10% de pectinas. A tecnologia que se está desenhando hoje para a futura segunda geração de etanol se baseia apenas na celulose, enquanto os polímeros de açúcares das hemiceluloses, que contêm açúcares complexos como os arabinoxilanos, betaglucanos e xiloglucanos, são deixados de lado, além das pectinas, que juntos representam 70% dos açúcares na parede celular da cana”, diz Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do Bioetanol, que reúne 31 laboratórios em cinco estados brasileiros. Nas paredes celulares da cana, as hemiceluloses e pectinas, localizadas entre as microfibrilas que são aglomerados de moléculas de celulose, possuem muitos açúcares compostos por cinco carbonos e por isso não são palatáveis para as leveduras (Saccharomyces cerevisiae) usadas na fermentação do caldo de cana. Elas estão acostumadas com a sacarose, formada por glicose e frutose, encontrada no suco de cana, ou ainda na glicose da celulose e de algumas das hemiceluloses, que têm seis carbonos.

O aproveitamento futuro por meio da hidrólise das pentoses do bagaço, que são os açúcares de cinco carbonos, pode levar a um aumento de etanol estimado em, pelo menos, mais 5 bilhões de litros na produção brasileira (ver Pesquisa FAPESP nº 192), hoje com cerca de 25 bilhões de litros. A utilização das pentoses também poderá se dar no uso em aplicações biotecnológicas, em alimentos e medicamentos, agregando valor comercial ao bagaço. Nos processos de segunda geração, as enzimas formam um líquido que também serve de alimento para as mesmas leveduras. “Existem tentativas para produzir linhagens de Saccharomyces, inclusive no Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Biotenol (CTBE), e em outras instituições e empresas no Brasil e no exterior, que sejam capazes de utilizar os açúcares de cinco carbonos. Na Inglaterra e na Suécia já conseguiram demonstrar que isso é possível, mas é tudo feito em laboratório com esterilização. Porém, para as usinas brasileiras, isso ainda não é suficiente. É preciso que as leveduras sejam robustas para sobreviver na presença de outros microrganismos, como bactérias, existentes num ambiente sem esterilização”, diz Buckeridge, que é também diretor científico do CTBE, localizado em Campinas, São Paulo.

086-091_Etanol_200-4Mesmo nos experimentos em relação à etapa mais avançada que é a hidrólise da celulose ainda pairam muitas dúvidas. “Já existe um bom conhecimento do processo do pré-tratamento, mas ainda precisamos investigar as várias opções para fazer a hidrólise na forma que a indústria possa absorver rapidamente e de modo econômico e sustentável”, diz o professor Rubens Maciel Filho, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos coordenadores do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) do qual o INCT Bioetanol também participa. “São necessárias avaliações tecnoeconômicas e de sustentabilidade, nesse caso, em análises sobre o consumo de água e no uso de produtos químicos no processo de hidrólise”, diz Maciel Filho.

“Hoje, nos experimentos para a segunda geração, o bagaço, depois que é descartado após a primeira geração quando se extrai o caldo da cana para fazer etanol, passa por um processo de ruptura das paredes celulares para a obtenção da celulose que está envolvida por hemicelulose e lignina, um polímero que não possui açúcar”, diz Buckeridge. A ruptura acontece atualmente por meio de vapor em alta pressão em que a parede celular do bagaço é afrouxada e a separação dos componentes feita por meio de solventes, ácidos e enzimas. “É o uso da força. É feito um esforço para jogar fora tudo o que você tem em volta da celulose”, diz o professor da USP. “A nossa ideia é começar o processo de hidrólise no campo. Produzir cana mais preparada para a segunda geração, que torne mais fácil a hidrólise e não seja mais necessário lavar o bagaço, o que retira muitos açúcares do material.”

Em artigo que será publicado na revista BioEnergy Research, ele e mais dois pesquisadores de seu grupo na USP, e outros dois pesquisadores do Centro de Carboidratos Complexos da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, além de mostrarem a pesquisa que identifica as frações de cada polímero de açúcar na cana, fazem observações sobre a complexidade da parede celular e a dificuldade de encontrar as chaves químicas ou um código que pudesse aproveitar melhor a rede de polissacarídeos. Eles acreditam também que o resultado da composição de açúcares na cana pode levar a uma modificação no processo de segunda geração. Como solução possível no futuro, Buckeridge, com base nos dados atuais, imagina que a melhor solução seria a cana ser levada inteira para o processo de hidrólise depois que se extraísse o caldo para a primeira geração.

INCT-BIOETANOLImagens microscópicas para análises das folhas de cana (coluna à esquerda) e do colmo (à direita). Fluorescência aplicada nas células (faixa do meio) e a presença de lignina (em vermelho na faixa de baixo), onde também é possível identificar várias células intactas com formato circular e cheias de sucoINCT-BIOETANOL

“A biologia das paredes celulares é o cerne desses avanços e é essencial para fazer progressos tecnológicos na área de biocombustíveis sustentáveis e biomateriais”, diz o professor Leonardo Gomez, do Departamento de Biologia da Universidade de York, na Inglaterra. Gomez, que é argentino, esteve em 2010 no Brasil conhecendo o CTBE. “Na opinião de muitos especialistas, o desenvolvimento de biocombustíveis de segunda geração é favorecido pela presença de uma indústria bem estabelecida de primeira geração. Dessa forma, o Brasil apresenta o melhor ambiente para que isso possa acontecer. Mas isso é apenas potencial. Alguém tem que assumir o risco e investir na área no aspecto industrial”, diz Gomez.

Na prática, para o avanço no processo de obtenção de etanol por meio da segunda geração, Buckeridge destaca um pré-tratamento fisiológico que deixa a planta mais maleável e com mais potencial para ser processada na hidrólise. “É uma substância que, aplicada nas plantações ainda quando a planta está pequena, inibe uma enzima na cana que vai fazer fenilpropanoides, que são os precursores da lignina, a substância que amarra os açúcares na parede celular e dá resistência mecânica à planta. Ainda não sabemos ao certo o que acontece, mas foi possível com esse composto aumentar em 30% o processamento dos xilanos, que compreendem 50% das hemiceluloses”, diz Buckeridge. O uso dessa substância, composta por ácido piperolínico na cana, tem uma patente depositada por Buckeridge no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e pelo seu ex-pós-doutorando Wanderley dos Santos, que agora, como professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), testa em campo o produto. “Ainda temos que melhorar e tentar diminuir o custo”, diz Buckeridge.

Outra solução para a segunda geração está sendo elaborada no âmbito do Bioen, em que 13 grupos de pesquisadores contribuem para a formação da supercana, uma ou mais variedades agronômicas e genéticas com características de alta qualidade para a primeira e a segunda geração. Uma delas é ter maior capacidade de fazer fotossíntese. Os pesquisadores já identificaram, pelo menos, quatro genes responsáveis por capturar a luz do sol. Esses genes poderão ser relacionados ao aumento da taxa de crescimento do número de células e o consequente aumento da produção de sacarose. A formação de plantas transgênicas está entre as ferramentas biotecnológicas na produção dessa supercana. A transgenia no caso não seria apenas na inserção de genes externos à planta, mas sim na ativação ou no silenciar de genes da própria cana. “Poderíamos também elaborar plantas com paredes celulares mais adequadas para a segunda geração”, diz Buckeridge. “Pode parecer futurista pensar assim, mas o Bioen tem genes relativos à parede celular transformada, em que pensamos em fazer a ‘cana-papaia’, por exemplo.” Essa cana do futuro teria algumas características semelhantes ao mamão-papaia, que é mais doce e macio depois de amadurecido e colhido.

“Já temos 380 genes ligados à sacarose e mais de mil relativos à resistência à seca”, diz a professora Glaucia Mendes Souza, do Instituto de Química (IQ) da USP, que junto com a professora Marie Anne van Sluys, do Instituto de Biociências da USP, lidera a pesquisa genômica da cana no âmbito do Bioen e conta com a participação do professor Marcelo Menossi, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desses, 250 genes já estão sendo testados em mudas de cana dispostas em tubos de ensaio, cubas e vasos no IQ da USP ou em estufas na Escola de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, em Piracicaba, em experimentos sob a coordenação da professora Helaine Carrer, que analisa a expressão dos genes. Também é testada a expressão de genes de cana em tabaco, uma planta mais fácil de manipular em laboratório e que serve de modelo para esse tipo de experimento. Dois genes de cana ligados à resistência à seca já foram expressos no tabaco e tiveram o uso transformado em patente depositada no INPI.

LÉO RAMOSMudas transgênicas: ferramentas biotecnológicas em que são usadas estratégias de silenciar ou ativar genes da própria canaLÉO RAMOS

Para transformar a planta com genes de interesse são necessários promotores, ferramentas biotecnológicas na forma de sequências de DNA em que o gene vai se expressar. São nessas moléculas que os pesquisadores vão modular a superexpressão ou o silenciar de genes. 
“Depositamos uma patente neste ano de 10 promotores de cana que vão permitir a expressão dos genes de forma diferente”, diz Glaucia. Em relação às paredes celulares da cana, Glaucia diz que já desenvolveu plantas com genes silenciados ligados à produção da lignina. “Ela atrapalha a execução da segunda geração porque dificulta a extração dos polissacarídeos, mas quando desligamos a sua produção aconteceu, em alguns experimentos, o acamamento em que a planta cai para os lados. Precisamos encontrar variedades em que possamos experimentar um caminho do meio, diminuindo a presença de lignina, mas mantendo a planta em pé”, explica Glaucia.

Na outra ponta da pesquisa acadêmica relativa à hidrólise estão os estudos para se chegar a enzimas cada vez mais eficientes para quebrar as paredes celulares da cana, extrair os açúcares e preparar o material para a produção de etanol. Mas quais enzimas usar para processar os diferentes polissacarídeos presentes na parede celular da planta? Algumas enzimas usadas pela indústria de alimentos, por exemplo, estão sendo testadas com cana, mas elas não resolvem tudo. “Essas enzimas industriais são produzidas principalmente por fungos”, diz o professor Richard Ward, do Departamento de Química, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da USP, e do CTBE, que já conseguiu desenhar duas enzimas multifuncionais com ação sobre as hemiceluloses. Chamadas de enzimas quiméricas, elas são produzidas por bactérias.

“Sabemos que a celulose é o componente mais escondido que os outros polissacarídeos presentes na parede celular da cana e nosso desafio é criar enzimas que destruam e degradem, de forma programada, os outros componentes, que também são fontes importantes de açúcar, até chegar à celulose”, explica Ward. “É importante desenvolver as enzimas mais adequadas para cada polissacarídeo. Mas ainda é difícil encontrar enzimas boas e que possam ter baixo custo. Hoje elas estão sendo comercializadas por dezenas de dólares o quilo. Pode parecer barato, mas precisamos pensar no processamento na usina de centenas ou até milhares de toneladas de material lignocelulósico por dia.” Ward diz que o objetivo é construir enzimas quiméricas, em que cada uma ataque mais de um polímero do bagaço da cana. “Isso é importante principalmente para as hemiceluloses, que têm um conjunto heterogêneo de polissacarídeos.”

Em relação às enzimas também surgem pesquisas que poderíamos chamar de inusitadas, mas baseadas na mais pura observação da natureza. Na busca por enzimas que destroem celulose e material lignocelulósico, como é o bagaço, o professor Ednildo Machado, do Instituto de Biofísica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estuda a composição enzimática do aparelho digestivo de duas baratas, a Periplaneta americana, comum nas grandes cidades, e a Nauphoeta cinerea, criada para servir de alimento para animais em cativeiro como lagartos e outros répteis. “Em experimentos em laboratório cheguei a fornecer apenas bagaço de cana para as baratas e elas se alimentaram dele, ou seja, conseguiram digerir as paredes celulares desse material para sobreviver de forma muito positiva”, diz Machado. Com isso, ele começou a pensar nas possíveis enzimas do aparelho digestivo desses insetos que possam ser úteis na segunda geração de produção de etanol.

Machado foi apresentado a Buckeridge durante o Congresso Brasileiro de Bioquímica em 2010 e a partir daí estreitaram uma colaboração. Ele esteve no CTBE, e vários experimentos foram realizados. “Conseguimos identificar algumas enzimas que são produzidas por bactérias no interior do aparelho digestivo das baratas. Não sabemos ainda se essas bactérias já estavam lá ou se o inseto as adquiriu do material, no caso o bagaço.” A barata pode também produzir as enzimas por meio de fungos e protozoários e tem grande facilidade para se alimentar de um amplo número de resíduos, além de se adaptar facilmente a essa diversidade. “Essa característica nos permitiu identificar uma série de enzimas nos insetos, excelentes para diversos processos tecnológicos”, diz Machado. O próximo passo é identificar ao certo quais os microrganismos que produzem as enzimas. Para isso é preciso sequenciar todos os DNAs presentes no intestino da barata, num processo chamado de metagenômica, que possibilita identificar quais espécies e os genes envolvidos na produção de enzimas especializadas na quebra de celulose e hemicelulose do bagaço de cana. Com a identificação dos genes é possível cloná-los em bactérias como a Escherichia coli e assim viabilizar a produção dessas enzimas em escala industrial. O mesmo processo começa a ser usado pelo professor Ward para produzir em laboratório as enzimas para atacar a parede celular da cana.

Assim cresce o número de ferramentas que poderão ajudar, dentro de alguns anos, a cana a produzir mais etanol. “Nos últimos 10 anos, aconteceu um aumento exponencial na pesquisa e investimento tecnológico para a utilização da biomassa como um substituto renovável e sustentável do petróleo”, diz Gomez, da Universidade de York. “A pesquisa atual na área de composição de biomassa já oferece novo potencial para a energia biorrenovável.” Para ele, a produção de etanol e de produtos químicos de alto desempenho a partir da biomassa somente é possível com um conhecimento detalhado e multidisciplinar de biologia e bioquímica de biomassa.

Projetos
1. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do Bioetanol (nº 2008/57908-6); Modalidade Projeto Temático do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen); Coordenador Marcos Silveira Buckeridge – USP; Investimento R$ 2.896.588,59 e US$ 303.342,92 (FAPESP)
2. Sugarcane signaling and regulatory networks (nº 2008/52146-0); Modalidade Projeto Temático do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen); Coordenador Glaucia Mendes Souza – USP; Investimento R$ 3.390.743,73 e US$ 1.174.768,67 (FAPESP)
3. Identificação, caracterização e engenharia de enzimas que degradam a parede celular das plantas (nº 2010/18850-2); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Richard John Ward – USP; Investimento R$ 491.952,05 e US$ 313.495,03 (FAPESP)

Artigos científicos
E SOUZA, A.P. et al. Composition and structure of sugarcane cell walls: implications for cell wall hydrolysis and second generation bioethanol. BioEnergy Research. No prelo. set. 2012.
BEGCY, K. et al. A novel stress-induced sugarcane gene conferstolerance to drought, salt and oxidative stress in transgenic tobacco plants. Plos One. v. 7, n. 9, e44697. set. 2012.
FURTADO, G.P. et al. A designed bifunctional laccase/β-1,31,4 – glucanase enzyme shows synergistic sugar release from milled sugarcane bagasse. Protein Engineering, Design & Selection. No prelo. set. 2012.

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