Chuvas e enchentes não parecem causar problemas no Pantanal, com extensas áreas alagadas repletas de plantas e animais adaptados à água, como jacarés, tuiuiús, lontras, martins-pescadores, piranhas, cambarás, aguapés, sem falar no gado e nos cavalos. Mas não é bem assim, de acordo com o biólogo Ivan Bergier, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Pantanal. “As chuvas de verão estão ficando concentradas em menos dias”, afirma. Isso pode afetar o curso dos rios da planície – que ele qualifica como rebeldes que se espalham quando os diques marginais se rompem. O efeito dessa dinâmica sobre os animais da planície pantaneira ainda está por ser estudado, mas pesquisas já apontam possíveis consequências.
Bergier fez um levantamento das chuvas registradas entre 1925 e 2016 e verificou que a quantidade não mostra uma tendência de aumento ou diminuição, conforme artigo publicado neste ano na revista Science of the Total Environment. Apesar da variação de um ano para outro e entre décadas, a média de volume de chuva no verão se mantém um pouco acima de 600 milímetros (mm) ao ano. O problema é que o número médio de dias chuvosos vem diminuindo: cerca de 43 dias, em 1925, para 32, em 2016. A taxa média de precipitação nesses dias, em consequência, passou de 14 mm por dia no início do período estudado para 19 mm por dia ao fim. Isso significa que chuvas cada vez mais torrenciais estão se tornando frequentes e podem arrastar um volume maior de sedimento do planalto (onde estão as cabeceiras dos rios) para a planície e soterrar os cursos d’água que correm em valas rasas formadas por barreiras de sedimento construídas pelos próprios rios. Esses diques marginais naturais correm maior risco de rompimento diante da combinação de sedimentos acumulados e chuvas torrenciais, alagando por longos períodos áreas antes úmidas apenas na estação de cheia. Um exemplo desse processo vem do trabalho do grupo liderado pelo geólogo Mario Assine, do campus de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista (Unesp), mostrando que o curso do rio Taquari forma leques fluviais que mudam ao longo do tempo (ver Pesquisa FAPESP nº 227).
Entre dezembro e março, quando as chuvas enchem a planície de água, o risco de maiores alagamentos pode inviabilizar a pecuária de corte na região. A quantidade de sedimento carregada pelos rios aumenta com o mau uso do solo nos planaltos, de acordo com ele. O investimento em sistemas agroflorestais, que reinserem as árvores no ambiente do gado, poderia ajudar a mitigar as consequências das grandes chuvas (ver Pesquisa FAPESP nº 192). Bergier avisa que as estiagens de inverno podem ficar mais longas, entrecortadas por pés d’água.
Água que vem de longe
No estudo publicado este ano, Bergier percebeu uma correlação forte entre os aumentos de temperatura e as maiores taxas de precipitação em dias chuvosos. E a tendência é que fique cada vez mais quente, conforme aponta estudo do grupo do climatologista José Marengo, do Centro de Estudos de Desastres Naturais, publicado em 2016 como capítulo do livro Dynamics of the Pantanal wetland in South America, editado por Bergier e Assine. A estimativa, baseada em modelos climáticos globais do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) de 2014, indica que as temperaturas médias do Pantanal podem aumentar entre 2 graus Celsius (°C) e 3 °C até 2040, e 6 °C até o fim do século.
“Em 2016 ainda não havia sido estabelecida a conexão entre as chuvas do Pantanal e a Amazônia”, alerta Bergier. Ele explica que, longe de ser um fenômeno local, o aumento das chuvas torrenciais – como foi observado nos anos 1970 e 1980 – está associado a mudanças de circulação atmosférica, em parte induzidas pelo aumento da temperatura média do planeta. Os resultados indicam que boa parte da água que cai no Pantanal vem da Amazônia e está, portanto, sujeita às mudanças que acontecem na grande floresta. “O ‘lago voador’ que decola da Amazônia cai com mais vigor no Pantanal quando os ventos são mais lentos”, explica. “Quando a velocidade de transporte de umidade pela atmosfera é maior, as chuvas tendem a acontecer mais ao sul do continente sul-americano.” As observações e estudos reforçam, assim, que o desmatamento e as secas na Amazônia diminuem o volume de água precipitável exportada para outras regiões (ver Pesquisa FAPESP nº 226).
Os rios não estão para peixe
As consequências dessa mudança sobre a vida no Pantanal, o bioma brasileiro considerado mais preservado, com cerca de 80% da vegetação original na planície, ainda não estão medidas. O biólogo José Sabino, da Universidade Uniderp, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, tem observado os peixes. “No ano passado presenciei duas vezes, no rio Miranda, manchas ao longo de 1 quilômetro [km] em que o rio parecia ferver”, conta. “Eram milhares de peixes parados, sem conseguir avançar, como em um grande congestionamento.”
Um temporal fora de hora tinha dado o sinal equivocado para a piracema, como são chamadas as migrações reprodutivas nas quais os peixes podem percorrer 300 km até as cabeceiras dos rios, onde desovam. Estimulados pelas chuvas fortes, todos os anos dourados, piraputangas, curimbatás, piaus e outros peixes migradores iniciam essa viagem. Com chuvas regulares, encontram rios cheios que permitem o trajeto. Uma vez no planalto acontece a reprodução, em seguida os peixes voltam a descer os rios. “A planície e a cabeceira têm que estar conectadas”, conclui.
Acontece que, com o assoreamento dos rios causado pelo transporte excessivo de sedimento nas chuvas torrenciais, isso não é garantido. E os problemas não acabam aí. “O sedimento fino é devastador, permeia rios e ocupa espaços onde pequenos invertebrados, larvas de insetos e camarõezinhos estão”, explica Sabino. Sem esses invertebrados, muitos peixes ficam sem o seu cardápio habitual. “É como cimentar o quintal: gera um ambiente adverso para a biota.” De acordo com o pesquisador, não existem registros de eventos climáticos extremos do passado associados às migrações nem dados sistemáticos que mostrem como isso pode influenciar a periodicidade da piracema.
Na região, flutuações naturais se somam a fenômenos acelerados por modificações humanas e pelas mudanças climáticas. Nos últimos 30 anos, o biólogo Guilherme Mourão, da Embrapa Pantanal, tem monitorado a fauna pantaneira, principalmente na região repleta de lagoas conhecida como Nhecolândia, próximo ao município de Corumbá (ver Pesquisa FAPESP nº 261). Ele começou com peixes, mas verificou que alterações nas áreas inundadas afetam um leque amplo de espécies.
Uma delas é das mais emblemáticas, o tuiuiú (Jabiru mycteria). Mourão e colaboradores usaram contagens de seus ninhos, feitas durante levantamentos aéreos entre 1991 e 2004, para desenvolver um modelo matemático relacionando o número de ninhos e a extensão das inundações. Os resultados, publicados em 2010 na revista Zoologia, indicaram que em períodos secos, como a estiagem entre 1960 e 1974 no Pantanal, a população dessas aves sofreu uma queda dramática, com cerca de 220 ninhos por ano estimados para a região, comparado aos 12.400, em média, dos períodos de enchentes medianas. Ele também relata o quase sumiço dos jacarés e capivaras das lagoas da fazenda Nhumirim, na Nhecolândia, durante esta última década, mais seca. Ao mesmo tempo, surgiram animais terrestres que não eram comuns ali, como o veado-campeiro. De dois anos para cá os rios temporários – ou corixos – tornaram a receber água e as lagoas a encher. “Vamos ver se os animais mais ligados às áreas alagadas vão voltar”, diz Mourão. Este ano tem se mostrado especialmente chuvoso.
Vida em terra
Na interface entre ambiente aquático e terrestre é grande a importância das matas ciliares, ao longo dos rios, que ajudam a fixar o sedimento e fornecem parte do alimento consumido por peixes, como frutos derrubados por macacos. Em uma área em que turismo ligado à natureza e agropecuária estão lado a lado na atividade econômica, não se deve descuidar de boas práticas de uso do solo.
A vegetação, no entanto, vem sendo perdida, segundo aponta artigo publicado este ano pela engenheira ambiental Ciomara Miranda, do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, em Aquidauana. Ela examinou imagens de satélite obtidas em 2000, 2008 e 2015, sempre em agosto, durante a estação seca, abarcando todos os quase 140 mil km2 do Pantanal brasileiro. Ao longo desses anos, a cobertura rasteira aumentou de 58% para 72% da área do Pantanal, enquanto a vegetação densa encolheu de 37% para 21%. Essa mudança reflete o desmatamento e a substituição da floresta por pastos, que ampliam a prática da pecuária já tradicional na região há três séculos. Se a tendência se mantiver, a previsão é de que em 2030 cerca de 78% do Pantanal seja coberto por plantas rasteiras e a floresta densa resista em apenas 14% da extensão.
Mudanças como essas são problemáticas para algumas espécies nativas dali, como os tatus. A bióloga Nina Attias, durante o doutorado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul em parceria com a Embrapa Pantanal, examinou o uso do espaço por duas espécies – o tatu-peba (Euphractus sexcintus) e o tatu-bola (Tolypeutes matacus) – em três áreas do Pantanal. O primeiro pesa cerca de 4 quilogramas (kg) e regula a atividade conforme a temperatura. Seja noite ou dia, ele se entoca quando a temperatura sobe e espera algum frescor para sair. O segundo, com seu singelo 1 kg protegido pelo recurso de transformar-se em uma bola como de futebol de salão, prefere a noite para se mover discretamente e se recolhe quando está muito frio, saindo da toca mais cedo quando necessário.
Nina mostrou que as duas espécies têm algo em comum: a necessidade de transitar entre vegetação aberta e fechada, já que os tatus têm uma capacidade limitada de regular a temperatura do corpo. O ambiente contribui, então, para a necessidade de se manter em temperaturas adequadas. “Se os animais não conseguem escolher o hábitat, têm que ajustar o horário de atividade”, explica. E se a extensão de tempo em que é possível permanecer ativo for muito reduzida, fica difícil conseguir alimento suficiente e até dedicar-se à reprodução. “Isso põe a população em risco”, alerta Nina, prestes a publicar esses resultados de sua tese na revista Animal Behaviour.
Além de precisar da floresta, o tatu-bola, que não sabe nadar, também é sensível a mudanças no padrão de inundação e de largura dos rios. De acordo com Nina, essa espécie pode ter desaparecido da Nhecolândia durante as grandes cheias depois de 1974 e na década seguinte. “O que estamos vendo para os tatus deverá ser verdade para outros mamíferos quando houver eventos mais extremos do clima”, prevê. “Os animais precisam de todos os microclimas para garantir a mobilidade e a atividade.”
Projeto
Mudanças paleo-hidrológicas, cronologia de eventos e dinâmica sedimentar no quaternário da bacia do Pantanal (nº 14/06889-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Mario Luis Assine (Unesp); Investimento R$ 253.715,39.
Artigos científicos
ALHO, C. J. R. e SABINO, J. Seasonal pantanal flood pulse: implications for biodiversity conservation – a review. Oecologia Australis. v. 16, n. 4, p. 958-78. 2012.
ATTIAS, N. et al. Effects of air temperature on habitat selection and activity patterns of two tropical imperfect homeotherms. Animal Behaviour. No prelo.
BERGIER, I. et al. Amazon rainforest modulation of water security in the Pantanal wetland. Science of the Total Environment. v. 619-620, p. 1116-25. 1 abr. 2018.
MARENGO, J. A. et al. Climate Change Scenarios in the Pantanal. Dynamics of the Pantanal Wetland in South America (Bergier, I. e Assine, M. L., eds.). Springer. p. 227-38. 2016.
MIRANDA, C. de S. et al. Changes in vegetation cover of the Pantanal wetland detected by Vegetation Index: a strategy for conservation. Biota Neotropica. v. 18, n. 1, e20160297. 8 jan. 2018.
MOURÃO, G. et al. How much can the number of jabiru stork (Ciconiidae) nests vary due to change of flood extension in a large Neotropical floodplain? Zoologia. v. 27, n. 5, p. 751-6. out. 2010.