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Cinema

Entre deus e o diabo na terra do sol

Nova edição de Brasil em tempo de cinema, de Jean-Claude Bernardet, confirma título como clássico e preserva importância da crítica no Cinema Novo

MIGUEL BOYAYAN

Glauber Rocha (1939-1981) jamais perdoou o crítico belga-brasileiro Jean-Claude Bernardet pelo modo como tratou o que pode ser considerado um aspecto fundamental do movimento do Cinema Novo em seu livro de estréia Brasil em tempo de cinema, de 1967, do qual o cineasta baiano era expoente e teorizador. Ao contrário do que se dizia, escreveu Bernardet, embora fosse esse o propósito, os diretores não conseguiam estabelecer com seus filmes um diálogo com as camadas populares. Limitavam-se à classe média.

Até o final da década de 1970, Glauber não perderia as chances de disparar farpas pela imprensa contra seu suposto desafeto. Principalmente nos tempos em que Bernardet escrevia nos semanários Opinião e Movimento. Certo dia, um amigo em comum, Maurício Gomes Leite, perguntou-lhe o porquê de tanta implicância. A resposta veio à queima-roupa e com certa naturalidade: “Ora, se não for nele, vou bater em quem?”. Esse talvez fosse o máximo de elogio que o maior diretor do cinema nacional poderia fazer a alguém do seu meio.

Para o crítico  que é também documentarista, ator, romancista e professor universitário -, nada poderia ser mais lisonjeiro. Escreveu-lhe então uma carta na qual definia ambos como “irmãos inimigos”. E reforçou: “Somos muito mais próximos do que essas picuinhas da imprensa podem dar a impressão”. A afirmação tinha a ver com certa concessão do cineasta ao que fora tratado pelo crítico, quando apontou, de própria voz no filme Câncer, que havia no país uma pequena burguesia radical. “É muito curioso, brigamos bastante, mas, no fundo, éramos mais próximos do que parecia”, observa Bernardet.

Responsável por alguns dos mais importantes livros sobre a cinematografia nacional, à qual dedicou a maior parte de sua vida, Jean-Claude Bernardet acaba de ser homenageado pela Cinemateca Brasileira e Imprensa Oficial com um belo catálogo sobre sua vida e obra para comemorar seus 70 anos de nascimento. O volume Jean-Claude Bernardet – Uma homenagem, organizado por Laura Bacqué, Maria Dora Mourão e Maria do Rosário Caetano, reproduz páginas de jornais e revistas com as críticas mais representativas do autor. Traz ainda entrevista, filmografia e bibliografia.

Ao mesmo tempo, a Companhia das Letras publica nova edição de Brasil em tempo de cinema, lançado há exatos 40 anos e considerado um clássico do gênero. Não só isso. Foi escrito no calor da hora, em 1965, no momento em que apareciam os primeiros longas-metragens do que ficaria conhecido como Cinema Novo. Ele analisa trabalhos dos diretores Nelson Pereira dos Santos (Vidas secas e os precursores Rio 40 graus e Rio Zona Norte), Glauber Rocha (Deus e o diabo na terra do sol), Luiz Sergio Person (São Paulo S.A.) e Paulo César Sarraceni (O desafio).

Polêmica
Apesar da polêmica que causou, a edição volta sem nenhuma mudança ou revisão de conteúdo. “Acho-o inalterável e eu mais ou menos o considero um documento de época”. Será? O que se percebe é que o texto não perdeu a atualidade no sentido de uma crítica combativa, presente e militante. Como escreveu na apresentação Paulo Emilio Sales Gomes, expoente da crítica paulistana das décadas de 1960 e 1970 e mentor de Bernardet, trata-se de uma obra que “nasceu clássica”, escrita quando críticos e cineastas ainda tentavam entender o que estava acontecendo e se realmente existia um movimento cinematográfico nacional.

Do ponto de vista pessoal, tornou-se um trabalho fundamental para Bernardet porque foi durante sua elaboração que ele se deu conta de que estava desenvolvendo uma metodologia de análise que o acompanharia em toda a sua vida de crítico. Ou seja, a gênese de um estilo investigativo intuitivo, sem nenhum formalismo acadêmico. Por esses e outros motivos, é o mais querido e o mais importante para ele. Se tivesse de mexer, teria de reescrevê-lo por inteiro, o que não quis fazer.

A única fragilidade que admite é a teorização que deu à classe média. Ressalta, porém, que praticamente não havia obras que trouxessem uma definição. “Foi um ponto chocante para muita gente. Eu poderia ter tido um conceito mais elaborado de classe média, de intelectualidade, de meio artístico e de produção artística. Só que, naquele momento, que eu saiba, não existia bibliografia a esse respeito. Portanto, eu não sou o único a não ter feito algo mais completo”.

A gênese de Brasil em tempo de cinema desvenda a própria história do autor, do nascimento da crítica cinematográfica, e destaca um aspecto pouco estudado: o papel que esses analistas tiveram direta ou indiretamente na concepção do movimento cinema-novista, estabelecido a unha por uma nova e talentosa geração de cineastas. Uma história que remonta à chegada do pré-adolescente ao Brasil, em 1949, quando seu pai veio com a família em busca de oportunidades.

Como tinha de 12 para 13 anos, explica ele, se teve alguma contemplação estética não teria sido na França, onde passou a infância durante a guerra e o início da adolescência no pós-guerra. Assim, desdiz com bom humor a afirmação de Paulo Emilio na apresentação do livro de que “até pouco tempo ele era um jovem esteta europeu bastante contemplativo e melancólico, cuja metamorfose fora provocada pelo Brasil e pelo cinema”. E acrescenta: “Aquilo foi ficção dele, eu não era assim”.

Bernardet revela que buscou no cinema, no primeiro momento, uma forma de se integrar ao país que adotara para viver. “Eu me sentia muito preso à colônia francesa e comecei a me esforçar a sair disso”. Em especial, aprender o português, pois passara quase uma década entre ambientes em que quase só se falava francês – a família, a escola e o trabalho, na Livraria Francesa.

Concluiu que um caminho seria se aproximar da turma do Cineclube Dom Vital, que ficava na rua Barão de Itapetininga, vizinho à livraria, do qual participavam jovens que se revelariam talentosos como Gustavo Dahl, Daú de Andrade e Maurício Capovila, entre outros – todos muito próximos de Paulo Emílio, colunista do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo e uma autoridade em cinema para a garotada.

O ponto de encontro deles era o Turist Bar, na praça Dom José Gaspar, não muito longe da Filmoteca do MAM, na rua 7 de Abril. Toda semana um dos membros do cineclube era escolhido para ver um filme em cartaz e fazer considerações antes de um debate. Bernardet foi designado para falar sobre uma produção francesa adaptada de um romance de Émile Zola. Os novos amigos gostaram, apesar do português sofrível, e ele se incorporou em definitivo ao grupo. “Isso me permitiu resolver um problema: a questão da integração do imigrante, que me fez sair do meio quase francês. As pessoas se interessavam pelo que eu dizia”.

O convívio o levou a se matricular no curso na Cinemateca para formação (organização e administração) de dirigentes de cineclube, num momento importante do cineclubismo brasileiro. “Muita gente se formou assim porque não havia escola de cinema. O que nos preparava era ver e discutir filmes e esses cursos, que pingavam de vez em quando e tinham muita história do cinema e de análise”.

Com 21 para 22 anos, Bernardet publicou seu primeiro texto no Jornal do Brasil. Comentou Os amantes (1958), de Louis Malle. Como não sabia direito o português, o amigo Nelson Nicolai, que também trabalhava na Livraria Francesa, traduzia com ele na hora do almoço ou depois do expediente. “Ele perguntava se eu preferia essa ou aquela palavra. Foi assim que aprendi a escrever em português”.

Uma oportunidade profissional que se revelaria importante aconteceu quando Paulo Emilio resolveu fazer uma longa viagem à Europa e formou no Bom Vital uma pequena equipe para substituí-lo no Suplemento Literário, formada por Gustavo Dahl, Maurício Capovila e Bernardet, que deveriam se revezar na coluna. Quando voltou, o aprendiz continuou a escrever de vez em quando. Até que apareceu o convite para ter um espaço diário no jornal Última Hora.

Antes, ao perceber a inesperada repercussão de uma crítica sua publicada no Suplemento Literário sobre A doce vida, de Federico Fellini, deu-se conta de que uma pessoa não leria seu texto, que era o próprio diretor, por falta de acesso. “Notei que fazia parte do crítico o diálogo com a produção, com a equipe de realização. Para estabelecer esse contato, era preciso que se detivesse sobre os filmes brasileiros”.

Ao mesmo tempo, Paulo Emilio insistia para que todos vissem filmes brasileiros. Por outro lado, Bernardet achava que tinha um elemento diferenciador dos outros: para ele, havia apenas o bom ou o mau filme, independentemente de ser francês, italiano ou brasileiro. “Creio que nunca tive essa atitude da elite brasileira, meio preconceituosa e muito desfavorável à sua produção, que duvidava de tudo e era uma das interlocutoras de Paulo Emilio, que tentava convencê-la do contrário”.

Na época, somente se o filme fosse para a Europa e recebesse prêmios conseguia despertar algum interesse. “Estávamos nos formando como críticos no momento de transformação da produção”. Nesse contexto, concorda ele, a crítica foi importante não pelas análises dos filmes, mas pelo papel de uma arena de debates, inclusive de combate do cinema americano, dentro de um espírito nacionalista que hoje pode parecer bastante dogmático. “Creio que tivemos esse papel de criar uma área de discussão em torno de política e de estética referentes ao cinema”.

Brasília
Com o golpe militar, Jean-Claude Bernardet ficou impedido de escrever e de freqüentar a Cinemateca, acusado de ser uma “articulação” entre o Partido Comunista francês e o brasileiro. “A polícia, muito desinformada, formou uma ficção em torno de mim”. Ele conta que tinha proximidade com comunistas brasileiros, pois conhecia muita gente do Teatro de Arena, como Gianfrancesco Guarnieri. “Minha militância, no entanto, era cultural”. Para sobreviver, foi trabalhar numa editora. No ano seguinte, a convite de Paulo Emilio e Nelson Pereira dos Santos, ele e a mulher Lucila se juntaram ao grupo coordenado por Pompeu de Souza que pretendia criar o primeiro curso de graduação em cinema, na Universidade de Brasília.

O curso, no entanto, durou apenas oito meses e acabou dissolvido em novembro de 1965, depois da crise que levou 219 professores a se demitirem por causa da interferência do governo militar na universidade. Bernardet havia concluído a tese Brasil em tempo de cinema, mas não pôde apresentá-la. Só o fez no ano seguinte, de forma simulada, durante a Semana do Cinema Brasileiro, o embrião do Festival de Cinema Brasileiro. Por fim, sairia em livro em 1967.

A pesquisa partiu de três aspectos previamente estabelecidos: escrever sobre o cinema brasileiro; falar da atualidade, do que acontecia na área; e adequar a proposta à idéia de que estavam construindo ainda uma nova universidade, apesar do golpe militar. Somente quando foi fazer a dedicatória que o autor se deu conta de que ao tratar de personagens desgarrados ele se projetava no próprio texto. “Percebi que, ao fazer isso, eu entendia melhor eles, os filmes e a mim mesmo.”

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