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Antropologia

Entre o cru e o cozido

Biografia intelectual de Lévi-Strauss revela vida de dilemas

REPRODUÇÃO DO LIVRO LÉVI-STRAUSS, ANTROPOLOGIA E ARTE, MINÚSCULO – INCOMENSURÁVEL Claude Lévi-Strauss à beira do rio Machado, 1938REPRODUÇÃO DO LIVRO LÉVI-STRAUSS, ANTROPOLOGIA E ARTE, MINÚSCULO – INCOMENSURÁVEL

Num mundo em que o ideal é estar sempre certo sobre tudo, ele optou pelo mote de que a dúvida é o princípio da sabedoria. Talvez, esta saudável escolha seja a fonte da sua longevidade, pois Claude Lévi-Strauss (torçamos) vai completar 100 anos em novembro. “A cronologia de sua vida revela um autor movimentando-se em meio a questionamentos, dúvidas, recuos e re­tiradas, num percurso avesso à linearidade que vive o conflito da criação. Isso o orientou a colocar-se a distância dos seus objetos e aprender a lidar com a temporalidade e aliar o sensível e o inteligível para construir um saber multifacetado e complexo”, explica a antropóloga Dorothea Voegeli Passetti, autora do recém-lançado Lévi-Strauss, antropologia e arte: minúsculo, incomensurável, da Edusp/Educ, fruto de sua tese de doutoramento em ciências sociais, defendida na PUC-SP. No que foi bem-sucedido. “Ele não só propôs uma nova antropologia como indicou uma nova maneira de ser antropólogo. Quer uma antropologia útil às nossas sociedades, tornando os homens mais humildes, descentrando-os em função do conhecimento que o ‘outro’ lhes oferece”, afirma.

No seu percurso, mudou sempre. Foi etnógrafo crítico, ex-filósofo que questiona a metafísica, antropólogo que quer criar uma ciência nova, ex-militante socialista que encontrou o budismo. Incorporou diversos saberes: lingüística, ma­temática, biologia, psicanálise, filosofia. “É o definitivo pensador de nosso tempo, um dos seus críticos mais intoleráveis, buscando o passado por trás do pre­sente: pesquisa e defende as sociedades indígenas contemporâneas, sem deixar de se debruçar sobre o modo como pensaram e como viveram tradicionalmente; admira certos artistas modernos, pois recriam relações com um tempo imemorial; não se refugia no passado contra o atual, mas o busca como um instrumento para ultrapassar os tempos, chegando às profundezas mais distantes, onde só há vida e os objetos de arte são os únicos capazes de concentrá-la, perpetuando-a”, observa Dorothea. Filho de artista (daí, a sua nacionalidade belga: o pai, pintor, estava trabalhando na Bélgica), admirador do cubismo e amigo dos surrealistas, em especial de André Breton, fez a ciência dialogar com a arte, base fundamental de seu pensamento. “A ciência, com ele, deixará de se opor à arte, ao mito e à filosofia. Cultivando seus próprios métiers, esses domínios dialogarão entre si na construção de saberes atingindo níveis mais profundos”, avalia a pesquisadora.

PASCAL PAVANI/AFP Lévi-Strauss: 100 anos de sabedoriaPASCAL PAVANI/AFP

O especialista, com Lévi-Strauss, se verá obrigado a deixar de ser burocrata. “O novo produtor de conhecimentos escolhe um território de pesquisa cujas fronteiras são maleáveis e penetráveis, ultrapassando-as por meio de uma reflexão profunda e extensa.” Para tanto, contribuíram três viagens fundamentais à sua formação: ao Brasil (entre 1935 e 1939), vindo com a “missão francesa” na USP, quando realizou suas pesquisas etnográficas (permeadas de dúvidas sobre a importância dos objetos de arte e indígenas) e definiu sua condição de etnólogo em detrimento da de filósofo; aos Estados Unidos, durante os anos 1940, em que, nota a autora, o indeciso professor de sociologia que deseja conhecer os índios se transforma em americanista, “vestindo um escafandro e mergulhando na etnologia indígena e na lingüística”; à Índia, em 1950, em que tomou contato com o budismo, que se aproximará, nota Dorothea, com adequação, ao já criado estruturalismo. Inquietude curiosa para quem inicia seu livro Tristes trópicos (1955) com a frase: “Odeio as viagens e os exploradores”. Em 1935, porém, quando faz seu primeiro contato com os índios brasileiros, é levado, nota a pesquisadora, “pelo desejo de compreender a América, operando uma espécie de corte na etnografia e na geografia brasileiras”.

“A partir de então, pergunta-se se vale a pena abrir mão de uma carreira universitária e uma possível vida política para se tornar um burocrata de evasão, que passa seu tempo aplicando instruções, anotando em fichas as particularidades físicas dos índios encontrados.” Chega mesmo, continua a autora, a se desesperar por saber que nunca conseguirá desvendar a cultura da sociedade que teve a sorte de encontrar. “Mas foi no Brasil que Lévi-Strauss começou a entender que deveria ver a sua sociedade como um ator nô. Esse distanciamento implicou também abrir mão da política, pois cabia ao etnólogo pensar todas as sociedades de longe, não se envolvendo em acontecimentos históricos.” Para não deixar de ser objetivo, o etnólogo, segundo Lévi-Strauss, deve evitar julgar, seja a sua sociedade, seja as outras. A opção é por uma moderação de julgamento. “Essa reflexão, na qual ele parece carregar todo o remorso ocidental pela destruição dos povos, resulta num distanciamento. Ele passa a ver as sociedades, inclusive a sua, através de um filtro.” Inicia, então, uma paixão duradoura com a natureza e, observa a pesquisadora, se coloca em posição de crítico da sociedade que procura os selvagens numa atitude de evasão para o exótico. “Seu tormento girava em torno da busca de uma fórmula de retorno à sua própria sociedade. Não é o bom selvagem que procura, mas o estado mínimo de sociedade.” O exótico, avalia Dorothea, atrai Lévi-Strauss pelo seu caráter intacto e virgem, referente à natureza, e por sua afinidade com os começos. O mundo estava ficando pequeno para suas viagens. “Ao contrário do colecionismo dos museus, o que importava era poder escolher, pinçar algum objeto entre tantos outros e não reproduzir a postura que tanto o atordoou em suas pesquisas etnográficas no Brasil, nas quais se viu obrigado a recolher todos os objetos possíveis de uma cultura”, nota a autora.

MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, MAE-USP/ WAGNER SOUZA E SILVA Pendente cerimonial de unha de tatu, coletado por Claude e Dina Lévi-Strauss, em 1936MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, MAE-USP/ WAGNER SOUZA E SILVA

Nexo
Os objetos que procurava investigar e entender não eram apenas os materiais, e o nexo que os unia deveria ser encontrado em outra dimensão. “Esses objetos relatam mais do que a materialidade passada ou presente das culturas: são mais propriamente formas de pensar o mundo que, embelezando ou dissimulando, incorporam em sua concretude a sociedade, a natureza, o sobrenatural. Conectam e atravessam culturas, expõem a natureza como parte intrínseca da vida ou como designação criada para dignificar superioridades culturais muitas vezes traumáticas.” O morticínio da Segunda Guerra Mundial marcaria muito essa visão. “Perguntar-se sobre sociedades nas quais não há injustiças e terror e refletir sobre o homem natural que representaria uma humanidade que não conhece os males da civilização significou desiludir-se e encontrar a tristeza nos trópicos, no Planalto Central brasileiro ou em Martinica, resultado dessa experiência. Se os primitivos o atraem mais é porque foi entre eles que encontrou a fraternidade”, nota Dorothea. A passagem por Nova York, o contato com a antropologia americana, bem como lembranças das leituras contínuas de Freud o levam a colocar a cultura em oposição à natureza: “O parentesco passou a ser seu tema central, unindo etnologia, lingüística e discussão psicológica sobre o inconsciente. A aliança, além da consangüinidade, garante ao parentesco um primeiro caráter artificial, que marca o distanciamento dos homens do universo natural”. As estruturas passam a marcar seu novo pensamento e, com elas, chegam as elaborações racionais, científicas, matemáticas.

“Para ele, não havia avanço em se continuar medindo ossos e crânios, levando ao seu desligamento da antropologia física. As culturas existem, afirmam-se e se mantêm pelas diferenças, uma em relação à outra, e será o jogo das diversidades que possibilitará a dinâmica cultural”, nota a autora. Chega a propor que se entenda o homem integrado à natureza e que se acabe com o antropocentrismo. “A etnologia não é nem uma ciência à parte, nem uma ciência nova: é a forma mais antiga do que chamamos de humanismo, devendo englobar a totalidade da Terra.” Nos anos após a publicação de Tristes trópicos, lembra a autora, Lévi-Strauss foi acusado de anti-humanista por reduzir o homem a estruturas e por não levar em consideração a história ou a vontade humana. Estava na hora de tomar outro caminho.

MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, MAE-USP/ WAGNER SOUZA E SILVA Bororo: diadema de plumário de penas de arara e outros materiaisMUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, MAE-USP/ WAGNER SOUZA E SILVA

Lévi-Strauss, observa a pesquisadora, cada vez mais aproxima arte e antropologia. “O motivo pelo qual a antropologia se interessa pela arte é que a arte é uma parte da cultura e é, em mais alto ponto, a tomada de posse da natureza pela cultura, que é o protótipo dos fenômenos que os etnólogos estudam.” Nada, porém, é simples e sua curiosidade intelectual o leva a novos caminhos. “Tenho uma consciência neolítica”, escreveu Lévi-Strauss. Falava de si e de seus novos interesses ao mesmo tempo. “Como a ciência do concreto, o pensamento selvagem é simul­taneamente analítico e sintético. Tem ambição sim­bólica e se volta à percepção e classificação do universo imediato e empírico. Ao contrário do pensamento domesticado, é descontínuo, pretendendo ser sincrônico e diacrônico, expressa uma compreensão atemporal do mundo”, explica a pesquisadora. Daí mais um laço entre a arte primitiva e o pensamento mítico: a significação de seres míticos na arte é atemporal, dialogando com um tempo primevo no qual sincronia e diacronia se fecham. “O pensamento selvagem identifica-se com o mito, a magia e a arte, podendo conviver com o pensamento científico moderno.” Ele chegou lá. “O pensamento das sociedades primitivas solicita novos modos de pesquisa, que devem investigar as formas pelas quais ele constitui como objeto os seres e os fenômenos da natureza.”

Como nota a autora, ser antropólogo adquire uma nova dimensão, em que o diálogo com a arte não se restringe a uma especialização. “O domínio se ampliou e os territórios se interpenetraram, tornando obsoleta a figura do antropólogo da arte, especialista que pesquisava objetos primitivos, que, por serem primitivos, eram exóticos.” Apenas com as pesquisas sobre o caráter simbólico dos objetos é que foi possível reunir natureza e cultura novamente, não mais apartando objetos culturais de naturais. “Descobrir que esse é o procedimento da arte permite, enfim, reunir os olhares e aliar antropologia (e por extensão, as outras ciências) e arte.” A arte deixa de ser apenas ilustração, mas que “é possível rearticular essas duas formas de pensamento ao se perceber que qualquer arte é produto intelectual”. É a aliança entre o sensível e o inteligível. “Assim, num nível profundo, formas de pensamento científico e artístico podem coincidir.” A emoção estética proporcionada por qualquer arte advém de sua carga reflexiva e intelectual. Chegam ao ápice as viagens e explorações do homem que odiava ambas. “A partir desse momento, não haverá mais necessidade de se questionar as fronteiras entre diversas especialidades, pois as novas modalidades de pesquisa e produção de conhecimento terão diluído as antigas demarcações entre a ciência e outras formas de pensamento”, conclui a pesquisadora.

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