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Resenha

Entre os salões e o laboratório

Estudo revela dívida da medicina brasileira com o mecenato de industriais

Em 1905, a Companhia Docas de Santos construía uma usina hidre­létrica na serra de Santos, para fornecer energia elétrica para o porto, quando um surto de malária paralisou as obras. Os dois sócios, Cândido Gaf­frée e Eduardo Guinle, ambos a fina flor da sociedade da capital, apelaram ao amigo Oswaldo Cruz, então diretor do Instituto Manguinhos, para ajudá-los. O cientista indicou Carlos Chagas, que conseguiu resolver o problema. A capacidade da ciência em retirar obstáculos ao progresso encantou a dupla de industriais, que resolveu, em gratidão, apoiar a medicina e a ciência. Eram os tempos do “nacionalismo sanitário” da belle époque carioca em que combater doenças era símbolo da modernidade, do esforço tropical de erradicar o que havia de atraso no país e permitir que o Brasil construísse a sua nacionalidade em igualdade com os países do Primeiro Mundo, espelho onde a burguesia da época se via refletida. Fora para isso que o prefeito Pereira Passos “botara abaixo” os velhos casarios do centro, erguendo uma nova cidade nos moldes de Paris.

O livro da historiadora Gisele Sanglard, fruto de sua tese de doutorado de 2005 pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, reconstitui esse processo de patrocínio privado à ciência na primeira metade do século XX, em especial na relação entre Carlos Chagas e Guilherme Guinle, sobrinho de Gaffrée e que o substituiu à frente dos negócios após a morte do industrial. Dessa parceria resultou a construção de hospitais para sifilíticos e cancerosos, na década de 1920, entre outras conquistas. No novo cenário do Rio republicano as elites estavam dispostas a construir uma nova relação com a cidade, lançando mão do mecenato para acabar com a pobreza que “maculava” a capital. A prática tinha tudo a ver com a formação católica nacional e a caridade, só que, com o progresso, foi substituída pelo “mecenato científico”, nascido diretamente do entusiasmo pelas descobertas de Pasteur na França. Se antes era “apropriado” dar dinheiro para os pobres do hospital, no novo século exige-se uma nova postura e, assim, a medicina passa a combater a pobreza por meio do controle das doenças. Ciência e capital industrial se encontraram.

Com a generosidade tão característica das elites americanas (infelizmente rara em nossa história), a sociedade endinheirada passou a preencher os vazios deixados pe­lo incipiente Estado republicano, resolvendo as questões que aquele não conseguia. Como não podia deixar de ser, esse encontro entre ciência e dinheiro podia ocorrer nos salões elegantes, como os do Jockey Club carioca, onde Guilherme Guinle, que assumiu os negócios familiares com a morte de Gaffrée, e Carlos Chagas se encontravam e discutiam propostas de mecenato para a medicina, no combate seja à sífilis, à lepra, às grandes endemias ou às doenças do sangue, todos projetos caros ao novo diretor de Manguinhos após a morte de Oswaldo Cruz. O que impulsionava Guinle era seu desejo de melhorar as condições de vida da raça brasileira. Claro que havia nisso boas doses de eugenismo, a doutrina cara à época, mas quem somos nós para julgar ou atacar as conquistas que seu patrocínio legou à posteridade, como bem colocou o jornalista Chatô em O jornal na série que fez com os mecenas das ciências? Foi graças a eles que muitos pesquisadores conseguiram levar adiante seus trabalhos. O Rio reunia o ambiente, as pessoas e o desejo de construir uma nação a partir das conquistas modernas, ainda que, na raiz, o que impulsionou esse mecenato tenha sido a tradição caridosa herdada dos tempos da colônia lusitana. No encontro dos salões com o laboratório, do investimento da ciência como regeneradora da sociedade, onde amizades tiveram papel importante, nasceu a medicina brasileira. Bons tempos em que a elite pensava num projeto para o país e preferia gastar seu dinheiro em hospitais e pesquisas, no espírito de Pasteur, e não no de Louis Vuitton.

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