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Bioenergia

Enzima de bactéria do solo pode aumentar produtividade do etanol de segunda geração

Proteína de microrganismo quebra a celulose do bagaço de cana em açúcar menor, que fermenta facilmente

LNBR/CNPEMIlustração mostra a estrutura tridimensional da enzima CelOCE, que acelera a degradação da celulose em glicoseLNBR/CNPEM

Qual seria o lugar com maior probabilidade de haver microrganismos especializados em quebrar a parede celular da cana-de-açúcar, descontruir a celulose (um carboidrato longo que dá rigidez às plantas e não fermenta), e transformá-la em moléculas menores, de glicose, esse sim um tipo de açúcar que fermenta facilmente?

Resposta: em um ponto de uma usina de açúcar e álcool em que o solo é repetidamente coberto, há anos, por pilhas e pilhas de bagaços de cana. Foi em ambientes com essas características em refinarias de cana-de-açúcar do interior paulista que um grupo de pesquisadores do Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR) descobriu uma pequena enzima que acelera a desconstrução da celulose e a reduz a moléculas de glicose. O LNBR é um dos quatro laboratórios do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas.

Batizada de CelOCE (do inglês, Cellulose Oxidative Cleaving Enzyme), a enzima é composta de 110 aminoácidos e é produzida por uma bactéria até então desconhecida, do filo não caracterizado UBP4, que vive em meio aos resíduos de biomassa da cana e em ambientes aquáticos. A partir de amostras do solo sobre o qual, há mais de duas décadas, são estocados resíduos de cana, os pesquisadores obtiveram o DNA da bactéria e descobriram a sequência genética do microrganismo que fornece as instruções para produção da enzima.

Entrevista: Mario Murakami
00:00 / 11:40

“Mostramos que existem bactérias na natureza que sabem explorar a poderosa química redox para desconstruir a celulose”, diz Mario Murakami, diretor científico do LNBR, coordenador do grupo de pesquisa que publicou em fevereiro artigo na revista Nature sobre a descoberta da CelOCE. “Essa enzima tem grande potencial para aumentar a produtividade das biorrefinarias de biomassa vegetal, como as de etanol.”

A maioria dos autores do trabalho, que contou com financiamento parcial da FAPESP, é do CNPEM. Também assinam o estudo colegas do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Aix Marseille, da França, e da Universidade Técnica da Dinamarca (DTU).

Eduardo Cesar / Revista Pesquisa FAPESPA nova enzima foi descoberta em bactérias que vivem no bagaço de cana em usinas de etanolEduardo Cesar / Revista Pesquisa FAPESP

A equipe de Murakami dominou todo o processo de produção da enzima, cujo pedido de patente já foi solicitado. Eles clonaram o gene da bactéria que produz a CelOCE e o introduziram, com a ferramenta de edição molecular Crispr-Cas9, no fungo Trichoderma reesei. Assim, o fungo é capaz de produzir a CelOCE concomitantemente com as enzimas comercialmente empregadas no coquetel para degradar a celulose.

“Um dos momentos mais interessantes da pesquisa foi quando conseguimos, usando as instalações do Sirius, resolver a estrutura cristalográfica da enzima”, comenta o biólogo molecular Clelton Aparecido dos Santos, do LNBR, primeiro autor do artigo. “Descobrimos que ela tem um arranjo incomum, com um sítio ativo compacto e um modo peculiar de interação com a celulose.” Maior equipamento científico do país, o acelerador Sirius é a fonte de luz síncroton do CNPEM.

“É um trabalho fantástico”, diz Igor Polikarpov, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, que não participou da pesquisa e estuda biologia estrutural e biofísica molecular e suas aplicações nas áreas de bioenergia e biotecnologia. “A CelOCE certamente será útil na hidrólise [quebra] enzimática de biomassa com celulose e pode vir a ser aplicada para a produção de etanol de segunda geração.”

Para o botânico Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências (IB) da USP, que pesquisa a produção de bionergia, o paper é extremamente bem-feito. “Eles usam muito bem as melhores técnicas de pesquisa disponíveis. Com isso, conseguiram fazer uma caracterização muito boa da enzima”, diz o pesquisador, que não participou do estudo com a CelOCE. O LNBR está em negociação com duas empresas para possivelmente licenciar a utilização do biocatalisador para a produção de etanol de segunda geração.

A reportagem acima foi publicada com o título “Do chão para a usina” na edição impressa nº 349 de março de 2025.

Projeto
Mecanismos enzimáticos do microbioma de herbívoros aquáticos para a despolimerização e metabolismo de carboidratos complexos (nº 21/04891-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador Responsável Mario Murakami (CNPEM); Investimento R$ 4.097.625,98.

Artigo científico
SANTOS, C. A. et al. A metagenomic “dark matter” enzyme catalyses oxidative cellulose conversion. Nature. 12 fev. 2025.

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