Um grupo de pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp) e da Califórnia em San Diego (UCSD), nos Estados Unidos, desenvolveu uma técnica nova de cultivo em laboratório de organoides que mimetizam o córtex cerebral. Chamados de minicérebros, eles permitem simular e observar o surgimento de epilepsias de difícil tratamento comumente causadas por um tipo específico de lesão, a displasia cortical focal. Essa alteração tem como um de seus efeitos a geração de neurônios dismórficos, maiores e com mais conexões do que o normal, que disparam sinais elétricos de forma desordenada e levam a crises convulsivas frequentes. Cerca de 30% das pessoas com epilepsia apresentam diferentes formas da doença que não respondem a tratamentos medicamentosos ou cirúrgicos.
Para estudar a epilepsia decorrente da displasia cortical focal, a equipe de cientistas desenvolveu minicérebros maduros nos quais foi possível acompanhar o desenvolvimento do córtex cerebral e a formação de diferentes células neurais, como as da glia, que dão suporte e proteção aos neurônios, e o aparecimento dos neurônios dismórficos. Os organoides foram “envelhecidos” por um período de 90 a 150 dias antes de serem empregados nos experimentos, um dos grandes diferenciais do método. Nas simulações, os pesquisadores puderam observar a formação da atividade elétrica em um processo que emula o padrão observado no cérebro de um feto durante seu primeiro trimestre de desenvolvimento. Os resultados do estudo foram publicados em dezembro na revista científica Brain.
A displasia cortical focal é uma má-formação cerebral que ocorre durante a gestação. Cada indivíduo apresenta os sintomas de epilepsia em momentos diferentes da vida, não necessariamente na infância. Recém-nascidos ainda não têm um nível de desenvolvimento cerebral o suficiente para ter crises de epilepsia. “Mas é muito provável que essa pessoa com displasia vai manifestar a doença em algum momento da vida”, diz a médica geneticista Iscia Lopes-Cendes, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, coordenadora da equipe que produziu os minicérebros ao lado do neurocientista brasileiro Alysson Muotri, da UCSD. Os trabalhos de Lopes-Cendes fazem parte das atividades do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP.
“Uma pessoa com epilepsia grave causada por displasia cortical focal tem entre 40 e 50 crises epilépticas por dia. Isso impossibilita crianças de irem à escola e adultos de terem uma vida normal”, comenta a neurocientista Simoni Avansini, autora principal do artigo, que fez pós-doutorado na Unicamp e na UCSD sobre o cultivo de organóides cerebrais e hoje trabalha no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).
Um córtex cerebral saudável é organizado em seis camadas. As células de cada segmento trabalham de forma ordenada e conectada. No cérebro com displasia, as camadas do córtex não são bem diferenciadas. Existem algumas células anormais, neurônios dismórficos e células em formatos de balão. Os neurônios dismórficos provavelmente são os principais responsáveis por gerar crises de epilepsia, ou seja, por produzir descargas elétricas anormais que provocam as crises.
Apesar do nome, os chamados minicérebros não se parecem com pequenos encéfalos. São um conjunto de diferentes células cerebrais que formam estruturas do tamanho da cabeça de um alfinete capazes, em tese, de se “comportar” em linhas gerais como os tecidos do órgão. Várias doenças e condições clínicas, como a esquizofrenia, têm sido simuladas por meio da criação de diferentes organoides desse tipo. Minicérebros para o estudo da ação do vírus zika no sistema nervoso, por exemplo, não precisam ser tão “envelhecidos”. Após uma semana de cultivo em laboratório já podem ser utilizados.
Para criar os minicérebros, a equipe reprogramou células-tronco adultas retiradas da pele de quatro pacientes com epilepsia causada por displasia cortical focal, que foram internados para cirurgia no Hospital de Clínicas da Unicamp. Inicialmente, elas foram transformadas em células-tronco de pluripotência induzida (iPSC), que têm a capacidade de se desenvolver e se transformar em diversos tipos de células. “Em seguida, diferenciamos as iPSCs em células neurais, que foram cultivadas sob agitação para obter os minicérebros”, explica Lopes-Cendes. Para ter um grupo controle, o mesmo processo foi repetido com células de pessoas saudáveis do mesmo sexo e idade próxima dos pacientes com displasia. O objetivo final da comparação era ter um modelo humano para entender a fisiopatologia da displasia cortical focal.
Para o neurocientista José Eduardo Peixoto-Santos, da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), o trabalho é inovador e abre muitas possibilidades nas pesquisas sobre displasia cortical e epilepsia. O fato de os pesquisadores da Unicamp e da UCSD não terem utilizado microeletrodos para estimular a corrente elétrica nos minicérebros mostra o alto grau de sofisticação do estudo. “A equipe aplicou uma luz para obter os estímulos elétricos nos minicérebros. Assim, a corrente elétrica é muito mais parecida com o que realmente ocorre no cérebro humano”, comenta Peixoto-Santos, que não participou do estudo. “Pouca gente trabalha com essa técnica, que é bem difícil de ser dominada.”
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 50 milhões de pessoas no mundo sofrem hoje de epilepsia. Mais de 80% delas vive em países de renda baixa ou média, muitas sem o tratamento necessário. Entender melhor como os neurônios dismórficos se formam em um cérebro com displasia cortical focal – e o caminho que a atividade elétrica percorre em um episódio de crise epiléptica – pode fazer avançar o conhecimento das causas da doença e talvez levar a tratamentos mais específicos.
Projeto
Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia – Brainn (nº 13/07559-3); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Fernando Cendes (Unicamp); Investimento R$ 28.676.399,62
Artigo científico
AVANSINI. S. H. et al. Junctional instability in neuroepithelium and network hyperexcitability in a focal cortical dysplasia human model. Brain. 27 dez. 2021.