No Pantanal, uma das maiores planícies alagáveis do planeta, os rios parecem ter vontade própria. Nascem nos planaltos e descem confinados em leitos bem definidos e quase sempre serpenteantes para as terras planas. Mas logo se insurgem. À medida que avançam na planície, deixam de fluir pelo canal encravado na rocha e traçam outros caminhos, erguendo novas margens com os sedimentos do planalto. Esse redesenhar é contínuo e deixa impressos na paisagem canais, que, hoje abandonados, delineiam figuras em forma de leques gigantescos.
O geólogo Mario Luis Assine estuda os rios do Pantanal desde os anos 1990 e sabe agora que essa remodelagem é um fenômeno característico dali. “Datações feitas em alguns dos canais abandonados, os paleocanais, revelaram idades variadas, de dezenas de anos a dezenas de milhares de anos”, afirma Assine, que, com sua equipe na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, tenta reconstruir as transformações nessa paisagem nos últimos 100 mil anos.
Apesar de natural em toda a região, o nomadismo dos rios pantaneiros vem se acelerando. Segundo Assine, é uma consequência da alteração no uso do solo no planalto. “A ocupação humana e a agropecuária não são a causa da alteração no trajeto dos rios”, conta. “Mas elas a aceleram por aumentar o transporte de sedimentos do planalto para a planície.”
O nomadismo dos rios pantaneiros vem se acelerando em consequência da alteração no uso do solo no planalto
Cobertos em parte por cerrado e em parte por floresta amazônica, os planaltos que moldam essa bacia sedimentar estão distantes de 200 a 300 quilômetros do coração do Pantanal, onde ficam as terras que passam até quatro meses por ano submersas. Ao recolher as águas das chuvas no planalto, os rios carregam os sedimentos e os nutrientes que alimentam essa área de quase 150 mil quilômetros quadrados. E as transformações por que a Amazônia e o cerrado passaram nas últimas cinco décadas – perderam, respectivamente, 13% e 40% de sua vegetação para a agricultura e a pecuária – aumentaram o volume de sedimentos que chega ao Pantanal.
Na travessia da planície os sedimentos mais grossos e pesados se acumulam e bloqueiam o leito dos rios. As águas, então, rompem as barrancas e se espalham. Conhecida pelo nome de avulsão fluvial, essa mudança brusca de curso pelo rompimento da margem é comum no trecho final dos rios pantaneiros, onde as terras podem estar de 2 a 4 metros abaixo da calha fluvial.
As avulsões são frequentes e causam grandes mudanças de trajeto em poucas décadas. O primeiro rio pantaneiro em que Assine e seus colegas documentaram esse fenômeno foi o Taquari, que nasce na serra de Caiapó perto da cidade de Coxim, no Mato Grosso do Sul. Suas águas correm no sentido oeste até chegar ao rio Paraguai, próximo à fronteira com a Bolívia. Com quase 800 quilômetros de extensão, o Taquari forma a segunda maior bacia hidrográfica do Pantanal. O constante abandono de canais deixou impresso no terço final do rio um megaleque fluvial que se espalha por quase 50 mil quilômetros quadrados (37% das terras do Pantanal no Brasil).
Esse e outros megaleques da região são o registro de algo que aconteceu no passado e continua a ocorrer. Imagens de satélite analisadas por Assine mostraram que em 1990 ocorreu uma importante avulsão no Taquari, próximo ao sítio Zé da Costa. Naquele ponto, o rio rompeu uma de suas margens – formou um arrombado, como se diz por lá – e se bifurcou. Seis anos mais tarde metade das águas já corria pelo novo canal e em 2001 o curso anterior havia sido abandonado. Em uma década a foz migrou quase 30 quilômetros na direção de Corumbá, abandonando o trecho que desaguava próximo à localidade de Porto da Manga. Hoje o antigo canal está coberto por vegetação e só recebe água no período de cheias, que no sul do Pantanal tem picos em junho e julho.
O fenômeno que Assine observou no Taquari, cujas cabeceiras estão numa região de cerrado bastante alterada pela agricultura, também foi documentado por ele e sua equipe mais ao norte, no São Lourenço, um rio que nasce no planalto dos Guimarães, em Mato Grosso, passa por Rondonópolis e deságua no rio Cuiabá. Depois de estudar imagens de satélite e realizar um sobrevoo na região, Assine, os geógrafos Fabiano Pupim e Fabrício Corradini, na época seus alunos de doutorado, e o geólogo norte-americano Michael McGlue coletaram sedimentos em diferentes pontos do rio.
A datação dos sedimentos demonstrou que as avulsões vêm modificando o curso do São Lourenço há dezenas de milhares de anos, modelando um megaleque de 16 mil quilômetros quadrados. Uma delas ocorreu no início do século passado, bem antes de o Centro-Oeste se tornar uma fronteira agrícola. Essa mudança de curso deslocou a foz algumas dezenas de quilômetros mais para oeste. Como resultado, o rio que desembocava no Piquiri passou a lançar suas águas no Cuiabá. “Essa é uma evidência de que no Pantanal os rios mudam de curso por causas naturais, independentemente da ação humana”, Assine explica.
Ele e seus colaboradores estimavam que essa mudança tivesse ocorrido há no máximo centenas de anos, mas não conseguiam definir com precisão. Só descobriram que aconteceu entre 1900 e 1910 depois de encontrar um documento histórico. Em um artigo publicado em 1942 na Revista Brasileira de Geografia, o engenheiro Virgílio Correia Filho apresenta informações sobre o traçado do São Lourenço desde o século XVIII. Apesar de importante, essa era apenas uma das transformações por que o rio passara. A reconstituição da história do São Lourenço, feita a partir da análise da paisagem e da datação dos sedimentos, revelou um passado de mudanças radicais.
Os pesquisadores associam as transformações na morfologia e na dinâmica do São Lourenço, também observadas em outros rios do Pantanal, às alterações do clima no passado. Antes de 10 mil anos atrás, o São Lourenço não serpenteava como hoje. Era formado por trechos mais retilíneos, que se bifurcavam e depois se reuniam, formando um padrão entrelaçado semelhante ao da bacia do Ganges, na Índia. Em muitos casos, os canais surgidos dessas bifurcações desapareciam na paisagem. “Eram rios que tinham alto fluxo por alguns períodos e depois se dissipavam, típicos de clima semiárido”, conta Assine.
Uma grande mudança veio no fim do último período glacial, entre 15 mil e 12 mil anos atrás, quando a temperatura subiu cerca de 7 graus onde hoje é o centro-sul do Brasil. O aumento da temperatura e da umidade tornaram o São Lourenço perene. Assine, McGlue e outros colaboradores, entre eles Sidney Kuerten, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, e Aguinaldo Silva, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus Pantanal, recuperaram sedimentos de três grandes lagoas – Mandioré, Gaíva e Baía Vermelha – que confirmam as oscilações climáticas no Pantanal nos últimos 20 mil anos, que deram aos rios de lá o perfil atual. “A paisagem dinâmica do Pantanal é reflexo de mudanças que vêm ocorrendo desde o fim do Pleistoceno”, explica Assine. “Essa percepção é fundamental para o uso, a ocupação e a conservação de uma área tão suscetível a mudanças.”
Projeto
Sistemas deposicionais do quaternário (Pleistoceno tardio/Holoceno) da bacia do Pantanal mato-grossense, Centro-Oeste do Brasil (n. 2007/55987-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Mario Luis Assine (Unesp/Rio Claro); Investimento R$ 262.065,96 (FAPESP).
Artigos científicos
ASSINE, M. L. et al. Channel arrangements and depositional styles in the São Lourenço fluvial megafan, Brazilian Pantanal wetland. Sedimentary Geology. 2014.
KUERTEN, S. et al. Sponge spicules indicate Holocene environmental changes on the Nabileque River floodplain, Southern Pantanal. Journal of Paleolimnology. 2013.
McGLUE, M. et al. Lacustrine records of Holocene flood pulse dynamics in the Upper Paraguay River watershed (Pantanal wetlands, Brazil). Quaternary Research. 2012.