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Indústria automobilística

Eficiência importada

Carros gastam menos combustível com tecnologias incentivadas pelo programa Inovar Auto, quase todas trazidas do exterior

Eduardo Cesar

Automóveis e camionetes produzidos a partir de 2017 no Brasil têm índices de consumo de combustível e de poluição menores em relação a 2012. A queda no gasto de gasolina ou álcool foi de 15,46%, uma média entre todos os modelos dos fabricantes de veículos no país. Com isso, as emissões de dióxido de carbono (CO2) resultantes da queima de combustíveis caíram 16%. Os números fazem parte do balanço final do Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar Auto), vigente entre 2013 e 2017. O objetivo do programa foi aumentar a competitividade do setor, produzindo veículos que consumissem menos combustíveis e poluíssem menos. Para tanto, esperava-se que as empresas investissem em engenharia, tecnologia industrial básica, pesquisa e desenvolvimento (P&D) e na capacitação dos fornecedores em troca de vantagens fiscais temporárias. Mas as tecnologias adotadas foram, quase na totalidade, trazidas das matrizes no exterior para adequação aos veículos fabricados no Brasil.

A principal meta fixada pelo programa foi o melhor aproveitamento do combustível pelo motor. A melhora deveria ser, em relação aos números de 2012, de no mínimo 12%; caso contrário, a empresa seria multada. O fabricante que atingisse 15% teria 1% de abatimento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e, se chegasse a 18%, receberia um desconto de 2% até 2020. Para atingir essas metas, cumprindo o acordo firmado entre o governo federal, fabricantes de veículos e autopeças, a indústria incorporou novas tecnologias aos veículos: novos motores, materiais mais leves, eletrônica embarcada e pneus com menos resistência ao rolamento.

As estratégias tecnológicas envolveram principalmente o desenvolvimento de soluções para os motores flex, únicos que funcionam com gasolina e etanol em qualquer proporção. A adaptação das inovações ao sistema flex foi a área que mais exigiu da engenharia brasileira. Um exemplo foi a disseminação do uso de motores de três cilindros no lugar dos de quatro convencionais. Eles têm menos peças e são mais leves do que os de quatro cilindros, apresentando menor atrito e geração de calor, o que resulta na diminuição do consumo de combustível. Esses motores começaram a ser trazidos do exterior em 2011, principalmente para carros 1.0, mas também são produzidos localmente.

Muitas das tecnologias utilizadas para atingir as metas do Inovar Auto foram importadas ou estavam presentes apenas em veículos de luxo ou esportivos, como o comando de válvulas com temporização variável, que evita queimas de combustível desnecessárias. Os engenheiros locais adaptaram esse tipo de tecnologia, existente desde os anos 1990, aos motores 1.0 de 3 cilindros e ao sistema flex. Já estão em uso nos modelos Up (Volks), Ka (Ford), HB 20 (Hyundai) e Mobi (Fiat).

Outra estratégia é o uso dos chamados pneus verdes, que têm menor resistência ao rolamento e exigem menos força do motor. Custam 7% a mais que os comuns, mas podem ajudar a economizar até 10% de combustível. Desenvolvidos por vários fabricantes de pneus, empregam novos materiais e trazem modificações na estrutura interna e no desenho da banda de rodagem. As montadoras utilizaram ainda linhas aerodinâmicas no design dos veículos que diminuem a resistência ao ar e peças mais eficientes como novos alternadores que aperfeiçoam a recarga da bateria, bombas de gasolina e direção elétrica (ver quadro nas páginas 68 e 69).

Menos 32 quilos
A General Motors (GM) passou a utilizar câmbios com seis marchas tanto no manual como no automático. A marcha extra contribui para diminuir o consumo e reduzir o ruído em alta velocidade. A empresa tem o veículo mais vendido no Brasil, o Onix, e seus engenheiros conseguiram reduzir o peso do carro em 32 quilos ao retrabalhar mais de 100 componentes, além de aumentar o uso de aço mais leve. Adicionando os pneus verdes, eles alcançaram o índice de 18% no geral em economia de combustível, de 2012 a 2017. Como comparação, a empresa divulga que o carro antecessor, o Corsa, ganhou eficiência energética de 10% durante o seu ciclo de vida, entre 1994 e 2016, uma evolução menor em um intervalo de tempo quatro vezes maior em relação ao Onix. “Os incentivos destinados à pesquisa e ao desenvolvimento promovidos pelo Inovar Auto proporcionaram o mais relevante salto em eficiência energética da indústria automobilística. Nesse quesito, o carro no Brasil evoluiu nos últimos cinco anos mais do que nos últimos 20 anos”, compara Marcos Munhoz, vice-presidente da GM Mercosul.

Apenas duas empresas, a GM e a Ford, atingiram a meta de 18% prevista no Inovar Auto. As que chegaram a 15% são Audi, Honda, Mercedes-Benz, Nissan, Renault, Toyota, Volkswagen e Grupo PSA (Peugeot e Citroën). As demais que têm fábrica no Brasil alcançaram o patamar de 12%.

Na avaliação do MDIC, de maneira geral, os resultados foram muito bons, levando-se em consideração o acordo e o investimento previsto pela indústria automobilística instalada no Brasil, de R$ 5 bilhões por ano de vigência do programa. Os veículos produzidos dentro dos parâmetros do Inovar Auto entre outubro de 2016 e durante todo o ano de 2017 somaram 1,754 milhão de unidades. A renúncia fiscal realizada pela lei que estabeleceu o programa foi de R$ 6,5 bilhões ao longo de cinco anos, equivalente a 1,5% da receita bruta das empresas sobre o IPI com a compra de matéria-prima nacional e importada, ferramentaria, investimento em P&D e capacitação de fornecedores, incluindo os percentuais das montadoras que tiveram redução de preço nos carros novos. A indústria automobilística é responsável por 22% do Produto Interno Bruto (PIB) industrial de 4% do PIB total, empregando 1,6 milhão de trabalhadores.

“Foram metas ambiciosas, tivemos uma melhora na eficiência energética entre 12% e 18% e provavelmente isso não aconteceria sem o Inovar Auto”, opina o engenheiro Gábor Deák, conselheiro da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil) e do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores. O Inovar Auto deu prazo de quatro anos para a indústria local se ajustar, dificultou a importação com o acréscimo de 30% de IPI no preço de carros importados de empresas que não fabricassem veículos aqui. Isso encorajou montadoras como Audi, BMW, Land Rover e Mercedes a montar fábricas no Brasil para produzir no mínimo 35 mil unidades ao ano, além de motivar as já instaladas no país a investir em novos produtos, tecnologias e instalações. “Isso gerou empregos, embora tenha faltado incentivos de P&D para a indústria de autopeças”, diz Gábor.

Sem inovação radical
A maior parte das vendas no Brasil é de carros de menor valor. “A competição é feroz, com juros zero, pagamento de IPVA [Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores] etc. Qualquer tecnologia a mais significa aumento de custo. Com incentivos, todas as montadoras correm atrás porque podem ter preços maiores e ganham descontos no preço final”, comenta o físico Waldyr Gallo, da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Gallo coordena o Centro de Pesquisa em Engenharia Professor Urbano Ernesto Stumpf, única unidade de pesquisa ligada às montadoras por meio de parceria entre um fabricante de carros, a PSA, e uma agência de fomento à pesquisa, a FAPESP, que envolve pesquisadores de várias instituições para estudos do motor a etanol. “Esse centro não teve inspiração do Inovar Auto. Pesquisamos novas configurações de motores, redução de consumo, de emissão de gases e seus impactos e a viabilidade econômica e ambiental”, diz Gallo.

O estudo “O sistema de inovação do setor automotivo brasileiro: Lições aprendidas com o Inovar Auto” feito por Paulo Kaminski, coordenador do Centro de Engenharia Automotiva da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, e pelos engenheiros mecânicos e professores Ugo Ibusuki, da Universidade Federal do ABC, e Erik Telles Pascoal, da Faculdade de Engenharia de Resende (RJ), questiona a competitividade do setor na área de P&D. “Percebemos que do ponto de vista da inovação radical na indústria automobilística instalada no Brasil ainda falta muito para sermos competitivos”, conta Kaminski. “Grande parte do desenvolvimento da inovação na indústria continua vindo das matrizes e o Inovar Auto não mudou muito a situação nas montadoras do país. O programa foi formado em meio à crise industrial brasileira, quando as empresas perderam mercado e empregos”, observa. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) não tem dados de indicadores relativos a P&D no setor automobilístico.

A falta de acompanhamento rigoroso do Inovar Auto, mostrando os resultados ao longo do desenvolvimento do programa, é uma falha apontada pelo engenheiro de produção Roberto Marx, professor da Escola Politécnica (Poli) da USP. “Para uma política industrial dessa relevância, é preciso contemplar desde o início uma avaliação sistemática dos resultados, sem entrar em dados sigilosos e individuais de cada empresa. O governo deveria mostrar à sociedade quais foram as metas superadas e o que está sendo realizado, inclusive em P&D”, afirma Marx. “Na área de P&D, outra questão fundamental é saber se as empresas tomam decisões de melhorar os veículos por conta dos incentivos dados pelo governo federal ou se o fariam mesmo sem eles. Fica a dúvida: sem incentivos, as montadoras não fariam P&D, deixando os carros desatualizados? Isso é um dilema de décadas da política industrial no Brasil.” Segundo o pesquisador, o Inovar Auto só avançou em relação as inciativas anteriores porque exigiu contrapartidas mais precisas das empresas.

Adriana Marotti, professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, que estuda o tema, também avalia que o maior benefício do Inovar Auto foi exigir das montadoras contrapartidas em resultados, no caso a eficiência energética. Já em relação a P&D, não há o que comemorar. “Não há inovação radical local na indústria automobilística brasileira, tirando os motores a etanol. O número de patentes é sempre perto de zero”, diz. “As montadoras consideram P&D as pequenas modificações nas carrocerias, que fazem de tempos em tempos em um modelo. O mesmo ocorre com a tropicalização de veículos importados.” Para Adriana, parte também da definição do que é P&D no Inovar Auto não ficou clara.

O programa terminou em 2017, como previsto, mas recebeu um ano antes a condenação da Organização Mundial do Comércio (OMC), que considera ilegais programas que concedam incentivos fiscais a fabricantes locais e imponham tributação extra para bens importados (ver Pesquisa FAPESP nº 251). Essa situação precisará ser evitada no Rota 2030, novo programa federal para o setor automotivo previsto para ser anunciado neste ano.

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