Imprimir PDF Republicar

Bioenergia

O impulso que vem do canavial

Geração de eletricidade e de biometano com o aproveitamento dos resíduos da indústria sucroalcooleira pode dobrar nos próximos anos

Palha da cana-de-açúcar: importante biomassa para produção de energia

Léo Ramos Chaves

A energia obtida no país a partir do processamento dos resíduos da indústria do açúcar e do álcool poderá praticamente dobrar até 2030. Dados da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) apontam que a bioeletricidade gerada em 2018 com o aproveitamento do bagaço e da palha de cana foi capaz de suprir a demanda energética de 369 usinas sucroalcooleiras e ainda destinar 21,5 mil gigawatts-hora (GWh) ao Sistema Interligado Nacional (SIN), atendendo 4% do consumo brasileiro, o que equivale a abastecer 11,4 milhões de residências ao longo do ano.

Dois fatores devem contribuir para essa expansão energética nos próximos anos. Um deles provem da nova Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), que estimula o investimento na expansão de combustíveis de fontes renováveis e entrará em vigor em janeiro de 2020. Zilmar José de Souza, gerente de Bioeletricidade da Unica, estima, com base em dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério das Minas e Energia, que o programa tem potencial para elevar a oferta de etanol dos atuais 31 bilhões de litros anuais para 49 bilhões de litros e, com isso, oferecer mais biomassa para a geração elétrica, que poderá alcançar 34 mil GWh em 2030, dirigido ao SIN.

Outro impulso deve vir de novas oportunidades de aproveitamento energético de dois resíduos da cana ainda pouco explorados: a vinhaça, líquido resultante do processo de destilação do etanol, e a torta de filtro, um material sólido com elevado nível de umidade, fruto da purificação do caldo da cana. São duas substâncias ricas em carga orgânica que, por meio de biodigestão anaeróbica, processo fermentativo que ocorre sem a presença de oxigênio, podem ser transformadas em biogás e em um líquido com potencial para ser usado como biofertilizante.

 
00:00 / 12:50

O biogás que resulta da biodigestão é composto por aproximadamente 62% de metano (CH4), 37% de dióxido de carbono (CO2) e 1% de outros gases, explica Julio Romano Meneghini, diretor científico do Centro de Pesquisa para Inovação em Gás (RCGI) da Universidade de São Paulo (USP). A combustão desse biogás pode alimentar geradores de energia elétrica.

A eliminação do CO2 em um processo complementar de purificação gera biometano, que atende aos padrões determinados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e pode ser inserido na rede de gasodutos que abastece o mercado de gás natural. Nesse caso, ele pode ser utilizado como insumo em algumas indústrias, em substituição ao gás natural veicular (GNV), ou, se adquirido por uma termelétrica, transformado em energia elétrica. Outro uso para o biometano é o aproveitamento nas próprias usinas para abastecer a frota de caminhões e tratores, substituindo o diesel. Algumas das principais montadoras e fabricantes de equipamentos agrícolas do país programam o lançamento de veículos pesados movidos a gás natural.

Em agosto, o RCGI, um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) constituído pela FAPESP em parceria com a empresa Shell, publicou um estudo (ver box ao lado), indicando que o aproveitamento da vinhaça, da palha e da torta de filtro disponível hoje nos 10 principais municípios sucroalcooleiros paulistas seria capaz de gerar por safra 3 bilhões de normal metro cúbico (Nm3) de biogás – essa medida expressa a vazão do gás.

Segundo a coordenadora do trabalho, Suani Teixeira Coelho, pesquisadora do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, o biogás teria potencial de gerar quase 32 mil GWh, o que significa por volta de 80% do consumo de energia residencial do estado de São Paulo, conforme dados do Balanço Energético do Estado de São Paulo. Ou, se transformado em biometano, poderia substituir 30% do consumo de gás natural.

Biodigestão da vinhaça
Cada litro de etanol produzido gera 12 litros de vinhaça. Na safra 2018/2019 foram mais de 390 bilhões de litros de um efluente – resíduo de processo industrial – com alto potencial de contaminação do lençol freático com potássio e emissão de gases de efeito estufa, como CO2, CH4 e óxido nitroso (N2O). Hoje, o resíduo é tratado e reaproveitado como biofertilizante no plantio da cana.

André Elia Neto, consultor ambiental e de recursos hídricos da Unica, relata que há décadas as usinas buscam uma solução para o melhor aproveitamento da vinhaça. A geração de biogás em sistemas de biodigestão anaeróbica em lagoas cobertas ou em cilindros foi testada várias vezes desde os anos 1980. “As experiências sempre mostraram bons resultados técnicos, mas eram descontinuadas por falta de viabilidade econômica”, afirma.

Geo Energética Planta industrial para produção de biogás, biometano e energia elétrica da Geo Energética em Tamboara (PR)Geo Energética

Segundo Elia Neto, hoje há mais interesse por parte das usinas na produção de bioenergia. “Existe uma maior infraestrutura de gasodutos para absorver o biometano gerado. O custo do diesel é mais alto do que em décadas anteriores, o que estimula o usineiro a investir numa frota veicular movida a gás natural. Há ainda uma maior cobrança da sociedade por práticas ambientais adequadas para o descarte de resíduos, como a vinhaça”, explica o consultor ambiental da Unica. O aproveitamento do efluente como insumo do biometano é capaz de reduzir em mais de 90% as emissões dos gases de efeito estufa liberados pela vinhaça quando o resíduo é descartado no ambiente.

Outro estímulo ao uso da bioenergia vem de um novo sistema de biodigestão, que une o aproveitamento da vinhaça ao da torta de filtro e da palha. O processo foi desenvolvido pela companhia paranaense Geo Energética e prevê o uso de dois biodigestores, um para a vinhaça, e outro para os demais resíduos. Alessandro Gardemann, sócio-diretor da Geo Energética, conta que a vinhaça apresenta uma carga orgânica irregular com grande variação de densidade energética entre uma safra e outra, o que leva a um processo de biodigestão inconstante. Além disso, é um insumo difícil de estocar, devido ao grande volume, obrigando que o encaminhamento para a biodigestão ocorra logo após a moagem da cana.

A palha e a torta de filtro, por sua vez, têm carga orgânica mais regular e são resíduos com maior teor de sólidos, o que permite a estocagem e o encaminhamento programado para o processo de biodigestão ao longo de toda a entressafra. “A combinação dos resíduos permite a geração contínua de energia o ano inteiro”, diz Gardemann. A Geo Energética estabeleceu o primeiro processo em 2012 na Cooperativa Agrícola Regional de Produtores de Cana (Coopcana), em Tamboara, no noroeste do Paraná, com capacidade para gerar 4 MW de energia elétrica. Ao fim de 2019, a planta da cooperativa será ampliada para produzir 10 MW.

Duas outras iniciativas estão programadas para entrar em operação no próximo ano. Uma na Usina Bonfim, em Guariba (SP), da empresa Raízen, com produção estimada de 138 mil MWh/ano, após investimento de R$ 153 milhões. A outra, na usina Narandiba, em Presidente Prudente (SP), do Grupo Cocal, em um investimento de R$ 160 milhões. A unidade terá capacidade de gerar 67 mil m3 de biometano por dia, que serão inseridos na rede de distribuição da GasBrasiliano, sócia no projeto. Em recente leilão de compra de energia promovido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), duas usinas térmicas movidas a biomassa conseguiram negociar a energia gerada por elas, comprovando a competitividade dessa fonte energética.

Novas tecnologias
Segundo Meneghini, o maior interesse pelo biometano estimula a pesquisa de tecnologias mais eficientes para a purificação do metano, um processo denominado de upgrade do biogás. Uma tecnologia usual é de filtragem por membranas poliméricas. Dois projetos na RCGI estudam o potencial de novos materiais, como membranas cerâmicas zeólitas – um mineral poroso que dispensa o uso de química no processo de trocas catiônicas (a neutralização de íons com carga positiva).

Outro projeto é o do uso de membranas de nanoestruturas de carbono, como grafeno e nanotubos. O físico Caetano Rodrigues Miranda, do Instituto de Física da USP, explica que as pesquisas envolvendo nanomembranas de carbono têm como objetivo facilitar a separação das moléculas de metano e dióxido de carbono, que apresentam diâmetros similares. É difícil separá-las quando passam em alto fluxo pelas membranas poliméricas convencionais.

Souza, da Unica, avalia que o potencial da bioenergia gerada por resíduos da cana-de-açúcar é volumoso e significativo, mas a efetivação desse potencial depende em boa medida de políticas públicas adequadas. Uma reivindicação dos representantes da indústria sucroalcooleira é que o Ministério de Minas e Energia promova um modelo de leilão de compra de energia para o SIN que diferencie a oferta de energia proveniente da biomassa daquela oriunda de fontes fósseis, como carvão e gás natural. Esse é um pleito mundial, já que a energia gerada a partir de combustíveis fósseis normalmente tem custo inferior àquela produzida com uso de biomassa. “Não temos a mesma escala de produção e competitividade em termos de custos, mas oferecemos uma fonte renovável com impacto ambiental positivo”, destaca.


O estudo “Biogás, biometano e potência elétrica em São Paulo”, divulgado em agosto pelo Centro de Pesquisa para Inovação em Gás (RCGI) da USP e da Shell, trouxe um conjunto inédito de mapas interativos sobre o potencial de geração de biogás a partir do aproveitamento de resíduos urbanos (lixo) e agropecuários em São Paulo e as possíveis conexões com a rede de distribuição de gás natural no estado.

O trabalho constatou que o biogás obtido com a totalidade de resíduos urbanos e agropecuários seria capaz de gerar 36,2 mil gigawatts-hora (GWh) em eletricidade, equivalente a 93% do consumo residencial paulista. O biogás purificado e transformado em biometano poderia exceder em 3,87 bilhões de normal metro cúbico (Nm3 ) o volume anual de gás natural comercializado ou substituir 72% do diesel vendido em São Paulo.

Hoje, de acordo com especialistas, esse potencial é pouco aproveitado. A capacidade atual instalada de geração elétrica no país a partir do aproveitamento de resíduos é de apenas 200 megawatts (MW), segundo a Associação Brasileira de Biogás (Abiogás). Na Alemanha, país tido como referência no aproveitamento de seus resíduos, a capacidade instalada é de 5 GW e em toda Europa chega a 11 GW.

A coordenadora do estudo, Suani Coelho, avalia que o baixo aproveitamento de resíduos urbanos para geração de bioeletricidade no Brasil é consequência de deficiências na coleta seletiva de lixo e do pequeno número de aterros urbanos organizados. O baixo investimento em tratamento de esgoto também reduz a oferta de insumo adequado para o biogás. No campo, a atividade com a logística mais aprimorada para o aproveitamento de seus resíduos é a indústria sucroalcooleira, o que faz desse segmento o de maior potencial para a geração de bioenergia.

Os mapas do RCGI foram elaborados como apoio a investidores interessados em geração e distribuição de biogás e biometano e também a administradores públicos municipais e estaduais. O trabalho levou três anos para ficar pronto. Nesse período, foram levantados dados sobre geração de resíduos de diferentes criações de animais, da produção agrícola e os provenientes do lixo urbano e esgoto. As informações foram organizadas conforme a fonte e a origem geográfica dos resíduos, e complementadas com dados sobre a localização da rede de gasodutos do estado de São Paulo.

Para elaborar os mapas, foram usados dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), da Abiogás, da consultoria Datagro, do Centro Internacional de Energias Renováveis (Cibiogás), da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e da GasBrasiliano, empresa responsável pela distribuição de gás natural canalizado no noroeste paulista.

Projeto
Brasil Research Center for Gas Innovation (nº 14/50279-4); Modalidade Programa Centros de Pesquisa em Engenharia; Convênio BG E&P Brasil (Grupo Shell); Pesquisador responsável Julio Romano Meneghini; Investimento R$ 22.780.682,05.

Republicar