Considerado um dos fundadores da ciência política no Brasil, Wanderley Guilherme dos Santos morreu no dia 26 de outubro, aos 84 anos. Professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), era pesquisador associado do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), onde seguia lecionando.
A trajetória acadêmica de Wanderley, como era conhecido, foi marcada pela exploração de vários campos de investigação no âmbito da ciência política, dos estudos eleitorais à filosofia, como observa o cientista político João Feres Júnior, diretor do Iesp-Uerj. O tema da democracia funcionou como “fio condutor”, destaca. “Uma de suas preocupações foi entender como é possível desenvolver uma democracia estável e inclusiva, em particular no Brasil, país no qual fatores antidemocráticos são abundantes”, observa Feres Júnior.
Seu colega no Iesp, o sociólogo Adalberto Moreira Cardoso também lembra do empenho de Wanderley em compreender e explicar o sistema democrático brasileiro. “Ele afirmava que a democracia é uma construção ininterrupta, uma luta constante contra o autoritarismo e a barbárie”, diz. “Apesar do pessimismo dos últimos tempos, propunha estudos que permitissem solucionar problemas do país, em especial as múltiplas desigualdades, em meio a contradições e dificuldades.”
Exemplo desse esforço pode ser observado em suas pesquisas da década de 1970 e início dos anos 1980 sobre as possibilidades de reconstrução da democracia depois do fim da ditadura militar (1964-1985). “Ele foi um dos pioneiros a chamar a atenção para o fato de a ditadura ter transformado a base social do país, promovendo a ampliação da classe operária e o deslocamento em massa da população do campo para as cidades, liberando forças que a própria ditadura, como demonstrou a história, não seria capaz de conter. Wanderley antecipou que a abertura política viria de um jeito ou de outro”, sintetiza Cardoso.
Nascido no Rio de Janeiro, Wanderley tornou-se nacionalmente conhecido em 1962, aos 27 anos, ao publicar Quem dará o golpe no Brasil?, livro da coleção Cadernos do Povo Brasileiro, da Editora Civilização Brasileira. “Nesse trabalho, antecipou o golpe de 1964, ao mostrar que o sistema democrático brasileiro vivia um impasse que levaria a uma ruptura”, observa Cardoso. “Ele mapeou as forças que compunham o instável equilíbrio de poder naquele momento, entre elas os partidos políticos, a classe média, o operariado e particularmente os militares, e mostrou que o sistema político não estava conseguindo processar e dar rumo a esses conflitos.” Entre os mais de 30 livros que escreveu, Cardoso destaca Crise e castigo: Partidos e generais na política brasileira (Vértice/Iuperj, 1987) e Horizonte do desejo: Instabilidade, fracasso coletivo e inércia social (FGV Editora, 2006) como referências. “Wanderley desenvolvia uma ciência política múltipla, conectado com tendências do pensamento mundial”, diz Cardoso. Graduado em filosofia em 1958 pela UFRJ, Wanderley defendeu o doutorado na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, em 1979, com a tese “Impasse e crise na política brasileira”.
Intelectual público
Com o sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier e o jurista César Augusto Coelho Guimarães, Wanderley criou, em 1969, o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), uma das primeiras instituições a oferecer um programa de pós-graduação em ciência política no Brasil. “Diferindo da tradição ensaística que imperava nas ciências sociais brasileiras, os pesquisadores do Iuperj davam valor à investigação lastreada em dados empíricos, sem descuidar da fundamentação teórica”, conta Feres Júnior, afirmando que Wanderley foi a síntese dessa nova atitude intelectual. Em 2010, o instituto foi transferido para a Uerj, passando a se chamar Iesp.
Uma das primeiras orientandas de doutorado de Wanderley, a historiadora Angela de Castro Gomes, professora visitante da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), destaca o empenho do cientista político em oferecer a seus alunos ampla bibliografia, ao mesmo tempo que incentivava a autonomia intelectual. De acordo com Gomes, sua tese beneficiou-se do interesse de ambos em trabalhar com um conceito de cidadania vinculado a direitos sociais, mais do que a direitos políticos. “Ele dizia que não gostava de orientando que ficava na barra da saia do orientador e nos motivava a defender nossas próprias ideias”, recorda. Gomes conta que a atuação de Wanderley como orientador serve hoje como modelo para seu próprio trabalho de orientação de teses e dissertações. “Para além do percurso exemplar, destaco o aspecto humano de nossa parceria. Eu tive minhas duas filhas durante o doutorado e Wanderley foi muito generoso nas duas situações”, relata.
Afora o doutorado de Gomes (1987), ele também orientou a tese do antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares (1991), dos sociólogos Renato Lessa (1992) e Luis Carlos Fridman (1997), entre outras. “Ninguém orientado por ele passou incólume ao seu rigor intelectual”, analisa Cardoso, do Iesp.
O sociólogo Luiz Augusto Campos, também do Iesp, conta que no seminário de comemoração dos 50 anos da instituição, realizado no final de setembro, Wanderley não tratou do passado da instituição. Optou por abordar o futuro da pós-graduação. Ele lembra que o cientista político ministrou aulas do curso “Introdução ao século XXI” até poucos dias antes de morrer, em decorrência de uma pneumonia. “No curso, utilizou bibliografia atual, privilegiando temas contemporâneos como a relação entre os algoritmos e as crises democráticas. O texto mais antigo era de 2007.”
De acordo com Feres Júnior, diretor do Iesp, Wanderley deixou dois livros inéditos. Um deles, previsto para ser publicado em breve, analisa o resultado das eleições de 2018 à Presidência da República. O outro, inacabado, trata do sistema eleitoral brasileiro. “A democracia não foi apenas seu objeto de estudo, mas estava entranhada na sua maneira de se relacionar com os outros. Alunos e colegas docentes não eram poupados de sua constante inquietação intelectual, no melhor estilo socrático”, finaliza Feres Júnior.
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