Imprimir PDF Republicar

Produção científica

Esforço coletivo na avaliação de preprints

Iniciativa mobiliza pesquisadores para revisar rapidamente versões preliminares de estudos sobre doenças infecciosas

Yagi Studio / Getty Images

A divulgação de pesquisas sobre o novo coronavírus ganhou agilidade na pandemia graças ao uso de preprints, trabalhos científicos ainda não revisados por especialistas, que são publicados em plataformas de acesso aberto assim que ficam prontos. Ao longo de 12 semanas entre junho e agosto, uma iniciativa mobilizou uma rede de pesquisadores do país para analisar 12 preprints sobre doenças infecciosas. Os estudos, todos escritos em português, foram divulgados no repositório brasileiro SciELO Preprints, plataforma criada há dois anos pela biblioteca de revistas de acesso aberto SciELO. “Houve manuscritos que cumpriram várias etapas dessa forma de comunicação científica. O objetivo foi estimular mais cientistas a participar desse tipo de avaliação, que depende de trabalho voluntário, e fornecer rapidamente a autores e leitores dos estudos um parecer sobre a qualidade dos resultados.

A seleção dos trabalhos e avaliadores foi feita pela organização norte-americana ASAPBio, criada em 2015 para promover o uso de preprints nas ciências da vida. Não foi só no Brasil que esse esforço coletivo ocorreu. Nos Estados Unidos, um time local de revisores está concluindo a análise de cerca de 30 manuscritos sobre biologia e bioquímica, escritos em inglês. “Queremos assegurar que todas as comunidades, independentemente de área do conhecimento, idioma e região, participem da comunicação científica através de preprints”, disse Iratxe Puebla, diretora associada da ASAPBio.

“A experiência foi produtiva”, diz o especialista em tecnologia e mídias digitais Alex Mendonça, coordenador do SciELO Preprints. Eles foram divulgados como preprints e avaliados rapidamente por especialistas, mas também submetidos a periódicos da coleção SciELO, que estão fazendo uma revisão detalhada. Ao mesmo tempo, seus dados de pesquisa estão armazenados no nosso repositório SciELO Data.” Dezenas de pesquisadores se candidataram a participar depois que a atividade foi divulgada pelos organizadores. “Se há um ponto que pode ser melhorado em iniciativas futuras é ampliar o número de avaliadores”, diz Mendonça. “A participação do grupo foi desigual. Alguns contribuíram com quase todos os artigos, enquanto outros estiveram menos disponíveis.”

A cada semana, um estudo era escolhido e distribuído para os revisores. Cada um escrevia suas considerações, que eram consolidadas em um texto anexado ao PDF do manuscrito. Em abril, Raphael Guimarães, da Fundação Oswaldo Cruz, publicou no SciELO Preprints e ao mesmo tempo submeteu a uma revista científica um dos trabalhos analisados pela iniciativa. Trata-se de um estudo feito em parceria com Mariana Passos e Viviane Dutra, que analisa o “excesso de mortalidade” no primeiro ano da pandemia – o número de óbitos que superou o que seria esperado com base na tendência dos cinco anos anteriores. O excedente pode ter sido causado por casos de Covid-19 e também por falhas no atendimento a outras enfermidades durante a emergência sanitária.

De acordo com o estudo, o excesso de mortalidade no país foi de 19% em 2020. Os óbitos por doenças infecciosas, em que a Covid-19 se enquadra, foram 80% maiores que o esperado, mas outras causas não relacionadas ao novo coronavírus se destacaram. Mortes relativas a transtornos mentais foram 29% maiores do que a média e óbitos de mulheres grávidas 27% superior. A taxa para doenças endocrinológicas e cardiovasculares chegou a 16%.

Apenas dois meses depois de submeter o trabalho, Guimarães recebeu um retorno dos avaliadores do preprint e dos editores do periódico – a Revista Brasileira de Epidemiologia –, que aceitaram o artigo para publicação. No caso desse artigo, as contribuições dos dois processos foram complementares. O grupo de seis revisores do preprint se ateve a aspectos formais e sugeriu a incorporação de dados e explicações. “No original não havia detalhes porque optamos por publicar uma comunicação rápida, em que resultados gerais são apresentados em textos curtos”, explica Guimarães. Já os pareceristas da revista propuseram análises mais aprofundadas – e consideraram que o manuscrito tinha estofo para ser maior. “Aproveitamos as sugestões dos dois grupos e reescrevemos o artigo. Ele cresceu de 900 palavras para mais de 3 mil”, diz Guimarães.

Em alguns casos, os autores consideraram um tanto genéricas as avaliações dos preprints. Fabianne Dias de Sousa, do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Pará, apresentou com colaboradores um levantamento com 49 pacientes que tiveram Covid-19, foram internados em um hospital em Belém e, depois da alta, continuaram a receber em casa a atenção de profissionais da saúde. O estudo mostrou que os cuidados domiciliares tiveram um nível satisfatório na amostra e serviu para validar um questionário desenvolvido para medir sua eficiência. “Usamos boa parte das contribuições para fazer uma segunda versão do trabalho, que está sendo submetido a uma revista”, explica Sousa. Ela acatou sugestões formais, mas considerou que outras não faziam sentido, como a retirada do resumo do artigo de uma menção a reinternações. “Me pareceu que os revisores não tinham conhecimento aprofundado sobre os cuidados de transição, tema que o artigo aborda”, afirma.

Uma vantagem apontada pela maioria dos autores é a possibilidade de obter um retorno rápido e promover um diálogo com interlocutores qualificados sobre seus resultados. “Produzir um artigo científico pode ser um trabalho solitário. O caminho habitual é submeter o manuscrito a um periódico e esperar meses pela resposta dos revisores. A avaliação na fase de preprint ajuda a romper esse isolamento”, diz a economista Raquel Maria Soares Freitas, que faz mestrado em Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo (USP). Ela é coautora de um estudo, escrito a quatro mãos com a advogada Marta Battaglia Custódio – ambas são funcionárias do Ministério da Cidadania –, que analisou taxas de mortalidade de idosos de 65 a 85 anos que receberam o Benefício de Prestação Continuada (BPC) entre 2015 e 2021. Com valor de um salário mínimo por mês, o BPC é concedido a idosos e pessoas que não têm meios de sustento. O estudo comparou os dados dos dois primeiros anos da pandemia com os de anos anteriores. Os resultados confirmam que houve um aumento da taxa de óbitos nesse grupo da ordem de 18,76%, em 2020, e de 21,64%, em 2021, em relação ao período de 2005 a 2019.

O grupo de avaliadores recomendou que vários pontos fossem desenvolvidos. Uma sugestão levou as autoras a estabelecer não apenas as tábuas de mortalidade separadas por sexo e faixa de idade dos beneficiários, mas os números consolidados por ano. “Quando vimos esses dados, apareceram novas perguntas que tivemos de contemplar no artigo”, afirma Battaglia. Uma delas dizia respeito a um pico de mortalidade em 2016, que ficava evidente nas tábuas agregadas. “Levantamos as hipóteses de que o aumento teve relação com a epidemia da gripe H1N1 e de que uma mudança no sistema de gestão do BPC em 2016 possa ter resgatado óbitos ocorridos anteriormente”, afirma. Em agosto, as duas pesquisadoras depositaram uma nova versão do manuscrito, que contempla boa parte das sugestões, e agora vão submetê-lo a uma revista científica.

Para os avaliadores, a experiência também foi útil. A farmacêutica Mariana de Almeida Rosa Rezende foi uma das voluntárias selecionadas. Estudante de doutorado na Universidade Federal de Juiz de Fora, campus de Governador Valadares, em Minas Gerais, ela soube da iniciativa em um site da internet e enxergou uma oportunidade de tomar contato com temas emergentes. “Em trabalhos sobre assuntos que conheço em profundidade, fiz recomendações envolvendo bibliografia e descrição adequada da metodologia. Nos outros, me concentrei em problemas formais. Um ponto que me incomoda é a ausência de dados importantes no resumo.” O que mais apreciou foi o caráter coletivo da revisão. “Os avaliadores têm perfis diferentes. Uns destacam erros de ortografia e conjugação de verbos, enquanto outros apontam problemas estruturais ou sugerem bibliografia. Aprendi muito com os colegas e vou usar esse aprendizado na minha produção”, explica.

Alex Mendonça, do SciELO Preprints, diz que a experiência ajudou a inspirar mudanças no site do repositório. “Hoje, não é fácil encontrar os comentários feitos por avaliadores. É preciso entrar no PDF do manuscrito e procurar em um campo específico. Vamos dar mais visibilidade às contribuições, reunindo todos os comentários em uma página da nossa plataforma.”

Republicar