Na Amazônia, as águas subterrâneas funcionam como um reservatório que sustenta as árvores nos períodos de seca. Quando a estiagem é prolongada, porém, o nível dos aquíferos cai, agravando a seca e deixando a floresta mais vulnerável a incêndios, especialmente nos anos marcados pelo fenômeno climático El Niño.
As conclusões fazem parte de um estudo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), publicado em dezembro na revista Science of the Total Environment, e lançam um alerta sobre a gestão de águas subterrâneas, acumuladas entre as rochas ou em seus poros.
“Quando a floresta não tem de onde tirar água, qualquer faísca pode começar um incêndio, que se alastra com mais facilidade”, comenta o geógrafo da USP Bruno Conicelli, um dos autores do artigo. A partir de dados de satélites de sensoriamento remoto, ele calculou o nível dos aquíferos da Amazônia de 2004 a 2016 e comparou com dados de incêndio. As queimadas mais extensas ocuparam as regiões onde os aquíferos estavam mais secos.
“Como os aquíferos guardam quantidades gigantescas de água, cerca de 97% da água doce líquida do planeta, seu nível demora mais a se recompor, enquanto os rios, com 1% das reservas de água doce, enchem quase instantaneamente com a chuva intensa”, esclarece o geólogo da USP Ricardo Hirata, coautor do trabalho.
Esse fenômeno é mais visível nos rios temporários das regiões áridas e semiáridas, que secam durante a estiagem e voltam a correr logo que a chuva recomeça. Nesses locais, os aquíferos geralmente são mais profundos que a superfície e mesmo que os leitos dos rios.
“Na Amazônia, os aquíferos levam meses para se recompor após a volta das chuvas”, observa Conicelli. Segundo ele, uma sequência de secas, como a dos últimos anos, não permite que os aquíferos se recuperem. As plantas com raízes menos profundas são as primeiras a sofrer com a falta de água.
As variações das áreas tomadas pelos incêndios podem ser explicadas tanto pela seca nos aquíferos quanto pela exploração da floresta. A fronteira agrícola de Mato Grosso, por exemplo, sofreu muitos incêndios, embora a seca nos aquíferos não tenha sido tão severa. Por outro lado, o fogo foi intenso em regiões da Amazônia que secaram mais, como o norte, perto da fronteira com a Venezuela, a região central e a foz do rio Amazonas. Perto dos Andes, onde chove mais, houve menos fogo.
“O nível dos aquíferos, junto com dados climáticos, poderia ser usado para avaliar o risco de fogo em diferentes locais da Amazônia”, sugere Conicelli. Mas para isso seria necessário construir uma rede de monitoramento, uma vez que os poços perfurados para fornecimento de água não são adequados para fazer essa medida. “Sabendo o nível do aquífero e conhecendo a profundidade da raiz das diversas espécies, seria possível determinar o momento em que as plantas não conseguem mais absorver água em uma dada região.”
Rios que perdem ou ganham água
A água subterrânea que aflora nas nascentes mantém os chamados rios perenes ‒ que correm o ano todo ‒ em períodos de seca. Por outro lado, alguns rios podem perder água, que infiltra no leito e volta para os aquíferos.
A maioria (55%) dos rios brasileiros perde água, correndo o risco de sofrer uma redução da vazão caso as mudanças climáticas ou a extração de água subterrânea se intensifique, de acordo com um estudo de novembro publicado na revista Nature Communications. Os rios que perdem água para os aquíferos são mais comuns em regiões áridas e semiáridas e áreas de extensa agricultura irrigada, como na bacia do rio São Francisco, onde a proporção de rios que cedem água para os aquíferos supera os 61%.
“Essa perda não significa que a maioria dos rios esteja secando, mas pode se tornar significativa em termos de vazão se o nível do aquífero diminuir”, esclarece o engenheiro civil Edson Wendland, da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP, supervisor do trabalho.
O engenheiro civil da EESC José Gescilam Uchôa, principal autor do estudo, comparou o nível dos rios, medido a partir de imagens de satélite, com o nível de poços cadastrados pelo Serviço Geológico Brasileiro (SGB). Os poços selecionados tinham uma profundidade de até 100 metros e distância de até 1 quilômetro dos rios, o suficiente para permitir a passagem de água para os aquíferos. Se o nível nos poços era maior do que o dos rios, a tendência era de os rios ganharem água. Na situação oposta, perderiam.
Um trabalho desse tipo, publicado em 2020 na revista Water e assinado por pesquisadores brasileiros e americanos, indicou que a maior responsável pela redução da vazão dos rios na bacia do rio São Francisco foi a queda no nível d’água dos aquíferos que abasteciam os rios. A extração de água para a irrigação foi apontada como a provável principal causa do problema.
“A gestão de rios e aquíferos deve ser feita de forma integrada”, defende Uchôa. “Hoje, gestores dessas duas áreas trabalham de forma praticamente isolada.” Segundo ele, o monitoramento dos recursos hídricos seria importante principalmente nas áreas de agricultura irrigada.
“O Brasil está em nono lugar na lista dos maiores exploradores de águas subterrâneas e tem quase 3 milhões de poços, que abastecem total ou parcialmente 52% dos municípios do país e representam um valor de quase R$ 100 bilhões para a economia”, observa Hirata. Segundo ele, 90% dos poços são privados e 80% irregulares.
Projetos
1. Sacre: Soluções integradas para cidades resilientes (n° 20/15434-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Ricardo César Aoki Hirata (USP); Investimento R$ 6.494.953,26.
2. Impacto do uso e ocupação do solo e das mudanças climáticas nos fluxos hidrológicos entre as águas subterrâneas e as águas superficiais em área de afloramento do sistema Aquífero Guarani (n° 23/13160-8); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Edson Cezar Wendland (USP); Bolsista José Gescilam Sousa Mota Uchôa; Investimento R$ 365.185,44.
3. Eventos extremos de precipitação e temperatura no Brasil em um contexto de mudanças climáticas: Propriedades estatísticas e mudanças futuras (n° 22/06017-1); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Edson Cezar Wendland (USP); Bolsista André Simões Ballarin; Investimento R$ 158.795,17.
Artigos científicos
LUCAS, M. C. et al. Significant baseflow reduction in the Sao Francisco river basin. Water. v. 13, n. 2. 22 dez. 2020.
TOLEDO, N. et al. Dynamics of meteorological and hydrological drought: The impact of groundwater and El Niño events on forest fires in the Amazon. Science of the Total Environment. v. 954, n. 176612. dez. 2024.
UCHÔA, J. G. S. M. et al. Widespread potential for streamflow leakage across Brazil. Nature Communications. v. 15, n.10211. 25 nov. 2024.