Ao comparar gráficos da produção de filmes no Brasil, México e Argentina – as três principais cinematografias da América Latina –, a socióloga Anita Simis constatou que as linhas caíam vertiginosamente no mesmo período, no início dos anos 1990. Viu que a maioria dos estudos sobre o fenômeno tratava da produção de cada país, sua crise e sua retomada, e decidiu adotar uma linha de pesquisa em uma trilha ainda não percorrida: comparar o cinema desses três países pelo viés da exibição, analisando o período anterior à crise (primeira metade dos anos 1980) até sua superação (meados dos anos 1990). A principal conclusão é que houve uma mudança de modelo de salas de cinema, que hoje fazem parte de uma cadeia de produtos consumida por um número restrito de espectadores.
Apesar das particularidades históricas das cinematografias do Brasil, México e Argentina, diz Anita, elas sempre tiveram um mesmo concorrente: o cinema norte-americano – o que resultou em dificuldades semelhantes para o desenvolvimento do mercado de cada um dos países. No entanto, se os três apresentaram crises anteriores em momentos distintos, é apenas nos anos 1990 que a decadência da paralisação da produção convergiu quase simultaneamente.
Em aspectos como a distribuição, os filmes sempre foram um produto globalizado, criado em Hollywood e disseminado pelo mundo pelas chamadas majors, as grandes companhias cinematográficas norte-americanas. Mas, historicamente, no Brasil, México e Argentina a exibição era dominada por empresas locais. Nos anos 1990, porém, a globalização começou a chegar à exibição, concomitantemente com a falência de diversos grupos nacionais e a progressiva concentração do mercado em um reduzido número de redes de capital internacional. Segundo Anita, três grupos exibidores controlam atualmente 35,9% dos cinemas do país: em 2014, possuíam 1.017 das 2.833 salas brasileiras, atraindo 45,9% do total de público. São eles o norte-americano Cinemark, o mexicano Cinépolis e o Kinoplex, rede brasileira do Grupo Severiano Ribeiro que, em parte de suas salas, atua em joint venture com o grupo norte-americano UCI.
Mudança política
Anita indica que esse momento tem pano de fundo comum nos três países. Em relação à política local, foi o tempo da chegada ao poder de projetos neoliberais, que defendiam a diminuição do papel do Estado na economia como um todo e, em especial, no fomento à cultura. No Brasil, a extinção da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) em 1990, determinada pelo então presidente Fernando Collor, foi uma pá de cal na produção de filmes – dois anos depois, seria lançada apenas uma produção nacional, A grande arte, falada em inglês. No México, a entrada no Nafta, o tratado norte-americano de livre comércio com Estados Unidos e Canadá, celebrado no governo de Carlos Salinas, atenuou barreiras comerciais que dificultavam a expansão da presença norte-americana no mercado exibidor do país. Na Argentina, o Instituto Nacional de Cinema sobreviveu às privatizações de Carlos Menem, mas sua dotação orçamentária diminuiu.Ao mesmo tempo, na virada dos anos 1980 para os 1990 o cinema norte-americano começou a passar por uma progressiva dependência do mercado externo. Em 1986 os filmes de Hollywood dependiam de 75% de receita doméstica e 25% de receita estrangeira para se pagarem. Em 1998, os números passaram a 45% e 55%.
O avanço das redes exibidoras transnacionais foi a peça-chave para garantir o escoamento da produção hollywoodiana no mercado externo – e, com ele, vieram enormes mudanças na forma como se consome cinema. Em primeiro lugar, explica Anita, firmou-se o conceito de multiplex, conjunto de salas, geralmente instaladas dentro de shopping centers, em que a exibição do filme se torna um elo de uma cadeia de consumo, que inclui estacionamento, alimentação (elemento que cresce dentro do empreendimento), que é somado à sensação de segurança e ao percurso por um circuito de lojas. Ao mesmo tempo, os cinemas de rua – enfrentando problemas como a falta de investimentos, a desatualização tecnológica e a decadência dos centros urbanos – perdem espaço de forma progressiva e inexorável. Há também um aumento no preço dos ingressos que equipara valores em mercados periféricos como Brasil, México e Argentina, desconsiderando especificidades do poder aquisitivo local. Em terceiro lugar, os avanços da exibição digital permitem que um mesmo filme estreie mundialmente ocupando, por vezes, centenas de salas em um mesmo país.
A pesquisadora relata algumas consequências dessas mudanças: o número de salas e de espectadores volta a crescer, depois da queda dos anos 1990, mas o cinema deixa de ser um entretenimento popular para se tornar um produto para uma faixa economicamente mais restrita. “Agora só um tipo de espectador, aquele com maior poder aquisitivo, pode alimentar toda a cadeia do consumo do shopping”, afirma. “A ideia de ir ao cinema apenas para seguir a obra de um diretor ou de um ator praticamente desapareceu para a maioria das pessoas que saem de casa para assistir a filmes.”
Blockbusters
André Gatti, professor de cinema da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e autor da tese “Distribuição e exibição na indústria cinematográfica brasileira (1993-2003)”, endossa a análise de Anita. “Na época de seu lançamento, em 1964, o filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, teve 300 mil espectadores”, diz. “O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, chegou a mais de 3 milhões em 1968. São números absolutamente impensáveis para filmes de formatos ousados como esses no cinema brasileiro de hoje.”
Para Marcelo Ikeda, professor da Universidade Federal do Ceará (UFCE) e autor do livro Cinema brasileiro a partir da retomada – Aspectos econômicos e políticos (Summus, 2015), o conceito de multiplex com dezenas de salas poderia abrir a possibilidade de uma oferta de filmes mais pluralista. Mas o que se viu foi o contrário. “Os grandes lançamentos mundiais, que podem chegar aqui com mais de mil cópias, esmagaram o filme médio”, constata Ikeda. “Hoje, ou temos blockbusters, estrangeiros e nacionais, ou filmes de arte para público reduzido. Cerca de dois terços dos filmes lançados no Brasil têm menos de mil espectadores.”
As principais conclusões do estudo de Anita foram registradas no artigo Economia política do cinema: Argentina, Brasil e México, publicado em maio de 2015 na revista Versión – Estudios de Comunicación y Política, da Universidad Autónoma Metropolitana, do México. Anita atua na área de sociologia da comunicação e é professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara. A pesquisadora é autora do livro Estado e cinema no Brasil (Unesp, 1996), resultado de sua tese de doutorado, no qual analisa as razões que impediram o florescimento de uma produção nacional estável e permanente, investigando a legislação promulgada entre 1932 e 1966. A pesquisa “Políticas para o audiovisual: Argentina, Brasil e México” durou dois anos e foi feita em arquivos, bibliotecas e sites da internet dos três países. “Ao contrário do que eu esperava, houve grande dificuldade em obter os dados em fontes primárias”, conta. “Tive de recorrer, na maior parte das vezes, a pesquisas publicadas por outros autores.” É essa a explicação para algumas interrupções nos gráficos de produção e número de salas reproduzidos nesta página. “Só recentemente surgem dados mais contínuos, possivelmente porque o cinema e as políticas culturais passaram a ser mais valorizados, e o acesso e a precisão dos dados foram facilitados pela digitalização.”
Projeto
Políticas para o audiovisual: Argentina, Brasil e México (nº 2012/50951-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Anita Simis; Investimento R$ 39.658,30.
Artigo científico
SIMIS, A. Economia política do cinema: Argentina, Brasil e México. Versión – Estudios de Comunicación y Política, v. 36, p. 54-75. 2015.