Antes de a epidemia estourar na China, fiz uma viagem de 11 dias pela província de Yunnan, região que é a versão tropical do país, com uma fusão de etnias e muita música. É um lugar maravilhoso. Fui até lá de trem de alta velocidade, uma viagem de 11 horas com diversas paradas rápidas pelo caminho, entre elas Wuhan. Entre ida e volta, percorri mais de 5 mil quilômetros (km). Na China, em qualquer parada rápida, uma multidão entra e sai dos vagões. Os trens são admiravelmente pontuais. Eu voltei dessa viagem para Beijing no dia 21 de janeiro. Dois dias depois, o governo federal soltou o alarme da epidemia. A normalidade foi interrompida um dia antes do ano-novo lunar, que se iniciou em 25 de janeiro. Essa é a festa mais importante do país. As pessoas compram presentes para toda a família e viajam. Há uma grande movimentação. Eu tinha uma viagem programada para passar a data na casa de uma colega, que foi minha aluna na Unicamp. Convite que é máxima honra. Cancelamos na última hora. Todas as celebrações foram suspensas por causa da epidemia. Imagine se tivessem acontecido, quais teriam sido as consequências?
Quando a situação saiu do controle em Wuhan, o governo central chamou o problema para si e passou a centralizar as decisões. Beijing, onde moro, é a capital nacional e me sinto muito seguro aqui. No começo, houve uma especulação com os preços de máscaras, mas o governo chinês tomou medidas para garantir o abastecimento e evitar a subida de valores. Determinou a produção emergencial desse produto. Eu nunca tive problemas em consegui-las. A própria universidade me entregou dois lotes com várias máscaras, logo nos primeiros dias. E também tenho colegas solidários. Penso que ocorreu um problema de informação em Wuhan, pois, como os sintomas da doença são parecidos com os de uma gripe, demoraram para perceber que era uma enfermidade nova e grave. Houve perplexidade diante de algo terrível.
Eu tinha um congresso internacional de lusitanistas programado para acontecer em Roma em julho próximo. Foi adiado para julho de 2021. Também estava tendo aulas particulares de mandarim, que ainda não pude retomar. Na Universidade de Pequim dou aulas em português para uma turma pequena, de 14 alunos, que está no quarto ano, último da graduação em língua e literatura lusófonas. Eu já conhecia metade dos estudantes. Eles passaram um semestre na Unicamp, em 2018, dentro do acordo de cooperação bilateral que temos. Muitos deles estão decidindo onde farão a pós-graduação. Alguns devem ir para Inglaterra, Estados Unidos, Portugal ou Campinas. Na China, há diversas possibilidades profissionais para graduados em português, na área de relações internacionais, no Ministério de Relações Exteriores ou no sistema financeiro. Muitas empresas brasileiras operam no país. A China também tem investimentos na África, em países de língua portuguesa como Angola, Moçambique e Cabo Verde. Enquanto o interesse pela língua portuguesa decresce na Europa e nos Estados Unidos, na China tem ocorrido um aumento no número de cursos e vagas para docentes. Alunos formados em língua portuguesa têm emprego garantido. E as traduções de autores lusófonos também crescem muito.
Estamos há 70 dias confinados e perdi um pouco a noção do tempo. Desde o começo do ano letivo, estou dando um curso de história da literatura brasileira e outro de leituras de pensadores de países lusófonos. Após a interrupção das aulas presenciais, no final de janeiro, passei a gravá-las em áudio e os arquivos são enviados aos alunos, que já dispunham de todos os textos para discussão. Sigo dando o programa que tinha organizado no começo do ano letivo, em setembro de 2019, e que deve terminar no final de maio. Hoje, estou trabalhando, por exemplo, com o livro O quinze, de Rachel de Queiroz [1910-2003], romance publicado em 1930 que trata da seca que ela viveu quando era menina no Ceará, em 1915. O livro descreve a tragédia de retirantes, que se deslocam atrás de comida e água para evitar a morte. Também discuto questões do Brasil contemporâneo por meio de obras como A elite do atraso, do sociólogo Jessé de Souza. Além disso, estou orientando três monografias de graduação, escritas em português. Esses estudantes têm o mesmo nível de aprendizagem que alguns dos meus melhores alunos no Brasil, algo que considero notável, já que a diferença estrutural entre as línguas é enorme. Mando o áudio das aulas e fico disponível para tirar dúvidas, que podem ser enviadas por meio do aplicativo WeChat, serviço multiplataforma de mensagens instantâneas, ou por e-mail. Na China, não há acesso ao WhatsApp, o que para mim é um alívio.
Apesar da existência de cursos de língua portuguesa em instituições de ensino superior, a Universidade de Pequim foi uma das primeiras a criar uma graduação em língua e literaturas lusófonas, em 2007. Eram oito cursos em todo o país, hoje são 52! A China leva a sério a parceria estratégica que tem com o Brasil. Os chineses cultivam, há milênios, a paciência e a disciplina. É muito difícil imaginar um aluno reprovado, isso é malvisto culturalmente. Cabular na escola? Nem pensar… A educação pública é universal em todas as etapas do ensino. As famílias pagam taxas anuais de matrícula, bastante módicas, conforme sua renda.
Atualmente nos perguntamos como será o retorno à normalidade. A China é um país com 9,5 milhões de quilômetros quadrados e sua população é sete vezes maior do que a brasileira. No meu primeiro dia de aula, peguei um mapa do país e pedi para os alunos assinalarem quais eram suas cidades natais. De uma turma de 14, apenas três são de Beijing. Os outros são de 11 cidades e províncias diferentes. Uma das alunas é de Wuhan, inclusive. Eles vivem nas moradias estudantis da universidade onde são obrigados a permanecer durante toda a graduação, mesmo aqueles que têm família na cidade. Essa convivência na universidade é muito importante em sua formação. Não poder retornar, ainda, é muito difícil para eles.
O campus tem uma vida maravilhosa, com cantinas, quadras de esporte, áreas de lazer, um anfiteatro com 2 mil lugares, salas para estudos com computadores individuais, bibliotecas excelentes e um belíssimo lago. Os estudantes sentem falta da vida universitária. Eu só vi infraestrutura parecida em instituições dos Estados Unidos. A educação aqui é considerada valor primordial, da pré-escola à universidade. O resultado disso o mundo pode ver.
Não sabemos como será esse retorno, pois até agora não foi feito um comunicado oficial. A China quer evitar uma segunda onda de contágio. Os dados oficiais mostram que a transmissão interna está zerada, mas que há casos de viajantes e residentes que vêm de fora e contaminam pessoas aqui. Corre um boato que, quando as aulas forem retomadas, a prioridade será dos estudantes de medicina e dos alunos que estão para concluir a graduação, como é o caso da minha turma. Hoje, 2 de abril, as pessoas estão reiniciando atividades e eu posso circular dentro de um condomínio antigo de prédios, onde residem professores e funcionários, ativos e aposentados, em sua imensa maioria chineses. Estou bem instalado em um apartamento, onde moro sozinho, e posso caminhar tranquilo por uma área de 60 mil metros quadrados. Há dois dias o barbeiro do condomínio reabriu e pude cortar meu cabelo. Em todos os lugares é preciso usar máscaras e são feitos controles de temperatura. Não podemos nos sentar com mais de uma pessoa na mesma mesa da cantina daqui e em restaurantes. A universidade e o campus seguem fechados.
Por sorte, nunca a internet funcionou tão bem como nos últimos meses, durante o período de confinamento. Hoje, eu fui dar uma volta e vi como a primavera está bela. Um sol lindo ilumina a cidade, há flores por todos os lados e algumas crianças brincam. A qualidade do ar melhorou. Beijing tem muitos problemas de poluição. Em 2013, durante minha primeira viagem para cá, recebi um kit de máscaras como deferência. As pessoas costumam usá-las por conta da poluição. Devido a problemas respiratórios, a poluição aqui já era um problema para mim. Eu posso sair do condomínio para a cidade, sempre com máscara, e nos lugares públicos fazem sempre controle de temperatura em todas as pessoas, às vezes também de identidade.
Desde o começo, a China e a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertaram o mundo ocidental a respeito da gravidade da epidemia, que podia se transformar em uma pandemia. Penso que a questão foi subestimada no Ocidente.
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