A ausência de articulação entre instituições e políticas e de uma estratégia de investimentos de longo prazo é um dos principais responsáveis pelo baixo desempenho do Brasil nos rankings internacionais de inovação. Essa é a conclusão de uma auditoria, feita entre junho e dezembro de 2018 e divulgada em maio de 2019 pela Secretaria de Controle Externo do Desenvolvimento Econômico do Tribunal de Contas da União (TCU), acerca das atividades do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e de outros 10 órgãos federais responsáveis pela elaboração de políticas de fomento à inovação no país, entre eles a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O relatório, elaborado por uma equipe de sete auditores do TCU e relatado pela ministra Ana Arraes, atual vice-presidente do tribunal, mostra que, ao longo das últimas duas décadas, o governo federal tentou criar mecanismos para aproximar o setor acadêmico e o mercado e, com isso, estimular a inovação no país. Exemplo desse esforço é a Lei de Inovação, de dezembro de 2004, que se propôs a fomentar a participação de pesquisadores de instituições públicas em projetos de empresas e a criar regras para a comercialização da propriedade intelectual resultante desses empreendimentos. Em novembro de 2005, o governo também sancionou a chamada Lei do Bem na tentativa de incentivar os investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) por meio de incentivos fiscais. No entanto, apesar dessas e de outras estratégias, os resultados das políticas de fomento à inovação no Brasil foram considerados modestos pelo tribunal.
Não é a primeira vez que o TCU avalia políticas de órgãos ligados à área de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) no país. Há algum tempo o tribunal audita as atividades de instituições ligadas ao setor. Exemplo de ações de controle envolvem o processo de concessão de marcas e patentes implementado entre 2012 e 2015 pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). Em 2011, o tribunal também avaliou ações promovidas pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior — atual Secretaria Especial de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia. Já àquela época identificou alguns problemas envolvendo a atuação do governo em relação à agenda de inovação, como iniciativas pulverizadas, com lacunas e contradições que poderiam comprometer a eficiência do conjunto de estratégias.
A auditoria realizada em 2018 pelo TCU reiterou o diagnóstico anterior, ao menos no que diz respeito às atividades de inovação no Brasil. Ela chama a atenção, por exemplo, para o aumento do volume de recursos para CT&I desde o início dos anos 2000 — o relatório não contempla dados mais recentes no atual contexto de crise de financiamento para a área. Apenas em incentivos fiscais, o investimento em CT&I passou de cerca de R$ 1 bilhão por ano no início da década de 2000 para mais de R$ 7 bilhões em 2013, segundo o tribunal, baseado em dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), os investimentos em P&D também cresceram: de 1,04% para 1,24% no período abordado. O relatório destaca ainda que desde fins dos anos 1990 o país conta com 16 fundos setoriais focados no financiamento de projetos de CT&I em várias áreas.
A criação dos fundos setoriais ajudou a estabelecer um novo padrão de financiamento para o setor. “Trata-se de um mecanismo inovador de fortalecimento do sistema brasileiro de CT&I”, destaca o físico Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Esses fundos estão vinculados ao chamado Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), e, segundo ele, deveriam ajudar a garantir a estabilidade de recursos para a área e criar um modelo de gestão com a participação de vários segmentos sociais. O relatório do TCU indica que os fundos dispunham de recursos nas décadas passadas — o principal problema era a falta de uma política que orientasse sua aplicação. “Hoje”, explica Moreira, “além da falta de um plano de ação, os recursos do FNDCT estão congelados [colocados na reserva de contingência] em 90% e sendo usados para outras finalidades, como o pagamento da dívida pública, o que caracteriza desvio de finalidade e compromete qualquer estratégia de longo prazo para o setor”.Com isso, apesar dessas e de outras estratégias, os resultados das políticas de fomento à inovação não tiveram o resultado esperado no Brasil. Segundo auditores do tribunal, o país continua estagnado no cenário internacional quando se trata de inovação. Isso fica claro quando se avalia o desempenho brasileiro no Índice Global de Inovação (GII), publicado anualmente pela Universidade Cornell, nos Estados Unidos, em parceria com o Instituto Europeu de Administração de Empresas, na França, e a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, na Suíça. Em 2016 e 2017, o Brasil ocupou a 69ª posição, em uma lista de 127 países. Em 2019, estava na 66ª posição, em um rol de 126 nações.
O principal problema apontado pelos auditores é a pulverização e a falta de orientação das iniciativas federais de incentivo à inovação adotadas nas últimas décadas no país. O TCU identificou ao todo 76 iniciativas federais de fomento à inovação promovidas nos últimos 20 anos; todas levadas a cabo sem que houvesse uma estrutura de coordenação orientada para o longo prazo. Por exemplo, durante o período analisado, o MCTIC lançou três planos de ação e estratégias nacionais diferentes voltados à consolidação de um ecossistema de inovação no Brasil. No entanto, o próprio ministério, segundo o TCU, reconhece que não conseguiu criar mecanismos de articulação capazes de alinhar tais iniciativas. Em outras palavras, o governo brasileiro deu suporte a um grande número de projetos sem conexão uns com os outros nas últimas décadas.
Procurado pela reportagem, o BNDES, citado no relatório do TCU, afirmou por meio de sua assessoria de imprensa que entende a importância da articulação entre as diversas entidades públicas e privadas que compõem o ecossistema nacional de inovação. Disse ainda que vem firmando acordos de cooperação com várias instituições de fomento à inovação. “O BNDES por vezes atuou em parceria com a Finep. Exemplo disso envolve o desenvolvimento do Plano Inova Empresa.” O órgão também alegou participar de discussões e da elaboração de políticas públicas de fomento à inovação em conjunto com ministérios e outros órgãos públicos. Já a Finep não quis comentar os resultados do documento.
Entre 2004 e 2019, o CCT promoveu 13 reuniões plenárias e 112 reuniões das comissões temáticas que integram o conselho
Segundo o TCU, uma das consequências dessa desorientação estratégica foi a aplicação fragmentada e ineficiente de recursos públicos. Esse cenário agravou-se com a ausência de mecanismos de avaliação dos resultados das iniciativas e também pela inoperância do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT). Criado em 1996, o CCT deveria atuar como um órgão de assessoramento do presidente da República para a formulação e implementação de políticas públicas nacionais de desenvolvimento científico e tecnológico. No entanto, conforme mostra o relatório do TCU, o CCT há muito sofre com a falta de estrutura e de quadros técnicos, não se reúne regularmente e tampouco é protagonista na proposição de políticas ou prioridades de inovação para o país.
Segundo Ildeu Moreira, as reuniões do CCT da Presidência da República tornaram-se esporádicas a partir de 2012 — ao todo, entre 2004 e 2019, foram promovidas 13 reuniões plenárias e 112 reuniões das comissões temáticas que integram o conselho. “Foram apenas duas durante todo o governo de Michel Temer [2016-2018]”, conta. “Havia uma reunião marcada para novembro do ano passado já no âmbito do atual governo, mas ela foi adiada para uma data ainda a ser definida. Continuamos a insistir sobre a importância dessa reunião e de um CCT atuante.” Ele relata, ainda, que os últimos encontros foram pouco produtivos. “Não havia um esforço do governo em ouvir as sugestões das entidades e setores, debater com profundidade e trabalhar em conjunto na construção de políticas de médio e longo prazo.”
Como lembra o físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), no Brasil, o conselho nasceu por demanda da comunidade científica, a exemplo de escritórios instalados em outros países do mundo. “O CCT foi criado com o propósito de auxiliar o presidente da República na criação de políticas públicas de CT&I de longo prazo e também para contribuir na articulação entre as políticas de inovação em andamento ou em desenvolvimento”, ele diz. “No entanto”, destaca, “o CCT está longe de ter o protagonismo de outros órgãos de assessoramento científico espalhados pelo mundo”.
A coordenação das políticas e programas de inovação em muitos países está ligada, em grande medida, à atuação de órgãos capazes de exercer influência sobre a agenda de CT&I, vinculados diretamente ao gabinete do presidente ou do primeiro-ministro, explica a economista Fernanda De Negri, do Ipea, estudiosa das dificuldades do Brasil em produzir inovações e se beneficiar delas. “Isso porque esses órgãos conseguem trabalhar na articulação de estratégias de CT&I com empresários, comunidade acadêmica e sociedade.” Os Estados Unidos foram um dos primeiros países a criar uma iniciativa desse tipo para assessorar a Presidência da República, além de atuar na articulação das atividades de CT&I promovidas pelas instituições públicas e coordenar a interlocução com o setor privado. O Reino Unido, que ocupou a 4ª colocação no Índice Global de Inovação de 2018, também conta, desde os anos 1960, com um cientista-chefe, conselheiro pessoal do primeiro-ministro e de seu gabinete para temas de CT&I. Assim como o Reino Unido, a Austrália dispõe de um cientista-chefe, que oferece aconselhamento especializado ao seu primeiro-ministro.
Política em consulta pública apresenta seis ações para estimular a agenda no Brasil até 2030
> Estímulo das bases de conhecimento para a inovação
> Disseminação da cultura de inovação e visão empreendedora
> Assegurar fomento à inovação
> Ampliação da base de talentos para inovação
> Estímulo do desenvolvimento de mercados para produtos e serviços inovadores
> Aprimoramento e disseminação de instrumentos jurídicos para um ambiente inovador
Em fins de 2015, o governo de São Paulo, com base em proposta elaborada pela FAPESP, anunciou a criação de um cargo de cientista-chefe em cada uma das secretarias estaduais. O objetivo era de que eles apontassem as melhores soluções baseadas no conhecimento científico para enfrentar desafios da respectiva pasta. Mais recentemente, em setembro de 2019, a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) lançou o programa Cientista-Chefe, com o objetivo de aproximar o meio acadêmico da gestão pública. A ideia é de que equipes de pesquisadores, coordenadas por um cientista, atuem nas secretarias e órgãos estratégicos do governo do estado para trazer soluções científicas e tecnológicas para o aprimoramento de serviços públicos.
No Brasil, explica Davidovich, é o presidente da República, ou um representante por ele indicado, o responsável por convocar as reuniões e formar as comissões temáticas do CCT e, a partir delas, estabelecer projetos nacionais e definir, entre outras coisas, como o orçamento será distribuído de acordo com os objetivos estabelecidos. “O sistema brasileiro é autorizativo, ou seja, o Congresso autoriza o teto do que pode ser gasto pelo governo e pode, em princípio, também remanejar recursos no orçamento enviado pelo governo, mas, na prática, altera muito pouco esse orçamento e a decisão sobre contingenciamento fica com o poder Executivo”, explica. “Desse modo, as políticas de estímulo à CT&I precisam ser muito claras para que os recursos sejam aplicados de modo eficaz. Daí a importância de um plano de CT&I bem fundamentado e articulado pelo Executivo. O CCT, se funcionasse como deveria, poderia ajudar nesse sentido.”
Essa dinâmica é diferente em países como os Estados Unidos. Por lá, os investimentos públicos em C&T são conduzidos com base em análises de cada um dos departamentos – equivalentes aos ministérios no Brasil –, como defesa, energia e saúde. Não existe um ministério de C&T norte-americano; a repartição do orçamento de CT&I naquele país é negociada em comitês setoriais no Congresso, que exerce papel fundamental na destinação dos recursos federais para as diversas áreas que compõem o setor de CT&I no país. Essas negociações permitem que representantes de diferentes agências defendam seu orçamento no Congresso.
O relatório apresentado pelo TCU aponta alguns entraves para a consolidação de um ecossistema de inovação no Brasil, mas não deve ser tomado como um diagnóstico absoluto. Para De Negri, o documento levanta pontos importantes, mas ela sustenta que o baixo nível de inovação no Brasil é resultado também de outros fatores estruturais que não foram considerados pelo órgão, envolvendo desde a baixa qualidade da educação básica até a falta de um ambiente econômico mais propício à inovação. “Dificilmente essas dificuldades serão superadas com uma política de inovação apenas”, diz. “Sem uma política ampla de CT&I, com prioridades e diretrizes de longo prazo e envolvendo vários setores, as políticas públicas de incentivo à inovação seguirão como uma colcha de retalhos de demandas particulares.”
Na sua avaliação, as estratégias para a consolidação de um ecossistema de inovação no Brasil devem abarcar, entre outros pontos, a ampliação e o aprimoramento dos investimentos federais em infraestrutura de pesquisa, a redução dos custos de capital para investimentos em inovação e uma maior integração da economia brasileira às cadeias globais de produção de bens e tecnologias. Não se trata apenas de incentivos, mas da consolidação de um ambiente robusto que estimule a competição e maior acesso a essas tecnologias. “Temos sido os grandes derrotados pelo excessivo fechamento da economia brasileira. Nossa indústria não tem acesso aos bens de capital de última geração produzidos no mundo”, afirma a pesquisadora.
“O parecer do TCU, bem como os resultados de outros relatórios sobre os Fundos de Apoio à Pesquisa elaborados pela Comissão de Ciência e Tecnologia, o CCT do Senado Federal, em 2016, é um documento precioso e deveria receber mais atenção”, considera Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico Administrativo da FAPESP. “Há avaliações das políticas de CT&I feitas por acadêmicos e pelo Ipea. Mas esses documentos são demasiadamente prisioneiros da questão da falta de recursos. Na comunidade científica e tecnológica, essa tem sido a preocupação central.” De acordo com Pacheco, o que o TCU e a Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado mostram é bem mais grave: a fragilidade das políticas públicas, a não definição de prioridades, a diluição de recursos e a falta de avaliação e de coordenação das ações. “Em um certo sentido, a falta de recursos é consequência, e não a causa, desse problema: a ausência de clareza dos objetivos e propósitos da política de CT&I dificulta explicar à sociedade e ao governo a relevância dessas ações. O discurso fica frágil, uma vez que se limita a tratar o investimento em conhecimento e inovação quase como um compromisso moral.”
Para tentar resolver parte dos problemas, o MCTIC abriu em novembro passado para consulta pública uma nova proposta de política nacional de inovação. “O texto foi estruturado em torno de seis diretrizes prioritárias, elaboradas para tentar reorganizar o ecossistema de inovação do país até 2030”, explica Marcelo Barros Gomes, da Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República. “A ideia é de que, após o período de consulta pública, essas diretrizes se desdobrem em estratégias e planos de ações objetivos, acompanhados de metas e indicadores concretos”, acrescenta. Um dos principais objetivos é estabelecer uma estrutura que procure dar coerência às ações implementadas pelo MCTIC e outros órgãos. “Estamos encarando a inovação como uma política de Estado capaz de articular todos os atores e arranjos institucionais envolvidos com o tema dentro do governo federal”, acrescenta Marcos Cesar Pinto, subchefe adjunto de Política Econômica da Subchefia de Ação Governamental da Casa Civil.
Marcelo Gomes explica que a nova proposta de política de inovação pretende abordar alguns dos pontos avaliados pelo TCU. Uma das ações relacionadas à consolidação das bases de conhecimento para a inovação no Brasil, por exemplo, envolverá justamente a promoção de iniciativas que ajudem a ampliar a infraestrutura de pesquisa no país. “Para que isso aconteça, é preciso assegurar a previsibilidade e a estabilidade dos recursos governamentais com foco nos desafios estratégicos em CT&I definidos.”
A proposta em consulta pública também toma como base estudos promovidos pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), nos quais foram realizadas entrevistas e oficinas com 30 atores do Sistema Nacional de CT&I, entre eles membros do governo e da indústria, representantes de startups, universidades, agências de fomento e centros de pesquisa. “Além disso, desde setembro do ano passado promovemos reuniões e coordenamos grupos de trabalho com representantes desses setores e de outros grupos institucionais em diferentes cidades do Brasil para discutir a elaboração de uma proposta que oriente o planejamento de iniciativas de pesquisa, desenvolvimento e inovação nos próximos anos no país”, informa Gomes.
Republicar