Um fóssil bem preservado da crista de um pterossauro que 115 milhões de anos atrás sobrevoava a atual região da chapada do Araripe, no Nordeste, pode mudar o entendimento da origem e evolução das penas, estruturas atualmente presentes apenas nas aves e, no passado remoto, em dinossauros. Segundo um artigo publicado hoje (20/04) na revista científica Nature, a protuberância na região da cabeça do exemplar estudado desse réptil alado extinto tinha duas coberturas de tecido mole análogas a penas coloridas: uma de tamanho reduzido e constituída por um filamento único semelhante a um cabelo; e outra maior, formada por estruturas ramificadas, mais parecida com as penas das aves atuais.
A presença dessas penas ou protopenas de diferentes tonalidades (impossíveis de serem precisadas) foi identificada por um grupo de paleontólogos europeus e brasileiros a partir de análise dos vestígios da crista e de parte do crânio de um pterossauro atribuído à espécie Tupandactylus imperator. Esse era um animal de grande porte, cujas asas abertas alcançavam uma envergadura estimada de 5 metros. O fóssil estava em posse do Instituto Real Belga de Ciências Naturais, de Bruxelas, e foi repatriado para o Museu de Ciências da Terra (MCTer), do Serviço Geológico do Brasil ‒CPRM, no Rio de Janeiro, em fevereiro deste ano de forma amigável, sem processo judicial (ver quadro). O biólogo Hebert Bruno Nascimento Campos, do Centro Universitário Maurício de Nassau, de Campina Grande, na Paraíba, destaca a qualidade de conservação do pterossauro do Araripe. “O nível de preservação das estruturas moles é surpreendente”, diz Campos, um dos dois brasileiros que coassinam o estudo. O outro é o paleontólogo Edio-Ernst Kischlat, da unidade em Porto Alegre do Serviço Geológico do Brasil – CPRM.
Com o emprego de técnicas modernas de microscopia eletrônica, os pesquisadores encontraram, no tecido mole da crista preservada em rocha, dois tipos de melanossomos, com formatos diferentes. Essas organelas carregam o pigmento melanina, que dá cor à pele e às penas das aves atuais e de alguns dinossauros. Uma das formas das organelas tem uma geometria mais arredondada; a outra é mais comprida e ovalada. Os melanossomos foram identificados no interior de picnofibras da crista do Tupandactylus, um tipo de filamento denso típico da pele de pterossauros. Alguns estudiosos consideram as picnofibras como um revestimento mais semelhante aos pelos dos mamíferos. Outros, como a equipe do novo estudo, argumentam que são uma variante das penas.
“Nas aves de hoje, a cor das penas está fortemente ligada à forma dos melanossomos”, diz, em comunicado de imprensa, a paleontóloga Maria McNamara, do University College de Cork (UCC), da Irlanda, uma das coordenadoras do estudo. “Como os tipos de penas dos pterossauros tinham diferentes formas de melanossomo, esses animais devem ter tido o maquinário genético para controlar as cores de suas penas. Esse recurso mostra que a coloração era uma característica crítica até mesmo das primeiras penas.”
Os pterossauros foram o grupo de vertebrados mais próximo evolutivamente dos dinossauros, dos quais descendem as aves atuais. Foram contemporâneos e praticamente surgiram e desapareceram da Terra ao mesmo tempo. Coexistiram entre 235 milhões e 66 milhões de atrás, quando ambos os grupos se extinguiram. Como alguns dinossauros e os pterossauros teriam penas coloridas, a equipe de McNamara sugere que essas estruturas de revestimento teriam uma origem muito antiga. As penas, ou algo análogo a elas, já estariam presentes entre os vertebrados dos quais derivaram tanto os dinossauros como os pterossauros, por volta de 250 milhões de anos atrás.
Na interpretação dos autores do trabalho, essas penas ou protopenas do Tupandactylus não ajudavam os pterossauros a voar. Isso parece um paradoxo, visto que os pterossauros foram os primeiros vertebrados capazes de alçar voo, dezenas de milhões de anos antes das aves. As (candidatas a) penas coloridas do fóssil do Araripe deviam auxiliá-los a controlar a temperatura corporal e funcionavam possivelmente como um tipo de comunicação visual, um predicado extra, para atrair parceiros reprodutivos.
O paleontólogo britânico Michael Benton, da Universidade de Bristol, do Reino Unido, está convencido de que as picnofibras são um tipo de pena. “Em todos os detalhes, elas são idênticas a certas penas de dinossauros e aves – sua forma geral, tamanho, ramificação, fixação à pele e por conter melanossomos”, comenta Benton, em entrevista a Pesquisa FAPESP. O pesquisador de Bristol não participou do trabalho com o fóssil do Araripe, mas escreveu um comentário sobre o artigo de McNamara e colegas para a Nature.
Especialista em pterossauros, o paleontólogo Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional (MN) do Rio de Janeiro, discorda de Benton. “Não quero diminuir a importância desse novo estudo. O trabalho usa técnicas muito modernas, impulsiona um debate muito relevante sobre a origem das penas e foi feito com um material de qualidade do Araripe, um dos principais sítios do mundo com fósseis de pterossauros”, pondera Kellner. “Mas não estou convencido de que os melanossomos estavam dentro de penas.”
O paleontólogo do MN descreveu, em 1997, o primeiro exemplar conhecido de Tupandactylus imperator, o chamado holótipo da espécie. Em 2009, com base em um fóssil da China, denominou de picnofibras os filamentos típicos que costumam cobrir a pele de pterossauros. Kellner afirma que as picnofibras não têm as características essenciais das penas, em especial a raque, eixo principal de onde parte uma série de ramos (as barbas). “Também é possível que não se trate de melanossomos e que essas estruturas identificadas no artigo como penas não sejam da epiderme [camada mais superficial da pele], mas da derme [camada mais interna, abaixo da epiderme]”, argumenta Kellner. “A pele cortada e exposta de um pterossauro poderia gerar estruturas que podem ser confundidas com as picnofibras. Já vi isso em um exemplar de dinossauro”.
Nem sempre é fácil divisar nos fósseis as diferentes estruturas que constituem os tecidos moles. Os organismos preservados nas camadas geológicas são usualmente achatados, com o corpo pressionado e “estampado” na rocha. Isso pode dificultar a separação e identificação das partes moles de um fóssil, como pele, músculos e tecido conjuntivo.
Há pelo menos cinco décadas, os paleontólogos debatem se os filamentos sobre a pele dos pterossauros podem ser considerados como penas. Essa discussão, que tem partidários dos dois lados, ganhou impulso depois da descrição em 1971 de um pequeno exemplar desses répteis alados encontrado no Cazaquistão, entre a Ásia central e o leste da Europa. Era um fóssil com apenas 60 centímetros de envergadura de asas que tinha inequivocamente partes do corpo cobertas por filamentos. Não por acaso a espécie foi denominada Sordes pilosus, diabo peludo em uma tradução livre do latim.
Se ficar demonstrado que as picnofibras dos pterossauros podem ser consideradas penas, e ainda por cima coloridas, é possível que essas estruturas sobre a pele tenham se originado muito antes do que era consenso até agora. Elas podem ter sido uma característica de um grupo animal denominado Avemetatarsalia, uma linhagem de vertebrados que inclui tanto o grupo dos dinossauros (e das aves) quanto o dos pterossauros.
“Nesse caso, o cenário mais simples e parcimonioso para a origem das penas consistiria no aparecimento de estruturas a elas equivalentes, como as picnofibras, uma única vez no processo evolutivo”, comenta o paleontólogo Max Langer, da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto. “As penas teriam surgido nos primeiros Avemetatarsalia, talvez há uns 250 milhões de anos, que teriam transmitido essa característica para linhagens que posteriormente deram origem a dinossauros e pterossauros.” É possível que as penas tenham aparecido mais de uma vez na história evolutiva, de forma independente e em períodos distintos, nos dinossauros e nos pterossauros. Mas os paleontólogos gostam de abraçar hipóteses econômicas, como presumem ser a lógica da natureza.
Material do Araripe foi devolvido em fevereiro deste ano e está em museu no Rio de Janeiro
No domingo 6 de fevereiro deste ano, chegou ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, um malote diplomático originário de Bruxelas, capital da Bélgica, com cinco pedaços de uma laje rochosa, quatro maiores e um menor, que formam um quadrado de cerca de 60 centímetros de lado e totalizam por volta de 20 quilos. A peça trazia impressa a crista e partes do crânio de um fóssil bem preservado de pterossauro da espécie Tupandactylus imperator, que viveu 115 milhões de anos atrás na atual da chapada do Araripe, na divisão do Ceará, Pernambuco e Piauí.
O material havia deixado ilegalmente o Brasil, como ocorre com outros fósseis daquela região, em época ignorada e foi parar nas mãos de um colecionador particular da Europa. Um acordo firmado em 11 de outubro do ano passado entre a embaixada do Brasil em Bruxelas e o Instituto Real Belga de Ciências Naturais, no qual o fóssil estava abrigado para estudos dos pesquisadores da instituição, garantiu a repatriação de forma amigável, sem a necessidade de medidas judiciais, da peça para o país. O fóssil está agora no Museu de Ciências da Terra (MCTer), do Serviço Geológico do Brasil ‒ CPRM, no Rio de Janeiro. “Ele está em exposição no museu em uma mostra de fósseis e réplicas de pterossauros brasileiros até o dia 7 de maio”, diz Rafael Costa da Silva, curador do setor de paleontologia do MCTer.
Quando estava no Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha, estudando fósseis de pterossauros, o biólogo Hebert Bruno Nascimento Campos viu em 2016 uma apresentação em vídeo sobre um exemplar de pterossauro do Araripe pela paleontóloga Aude Cincotta, que então fazia doutorado no Instituto Real Belga de Ciências Naturais. “Fiquei interessado no material e pedi permissão para vê-lo”, conta Campos. Ele foi a Bruxelas e examinou rapidamente o espécime. Descobriu depois que o fóssil, apesar de estar no instituto, pertencia a um colecionador particular.
Em 2017, ele, Cincotta, o paleontólogo alemão Eberhard Frey, curador do museu de Karlsruhe, e outros dois coautores fizeram um breve relato sobre o fóssil em um congresso de paleontologia. Mais tarde, Campos contatou o paleontólogo brasileiro Edio-Ernst Kischlat, da unidade em Porto Alegre do Serviço Geológico do Brasil ‒ CPRM, que iniciou um processo informal de negociação com a direção do Instituto Real Belga de Ciências Naturais para a devolução do fóssil ao Brasil. As tratativas oficiais com o instituto acabaram sendo tocadas pelo Ministério das Relações Exteriores e, como atesta o desembarque do fóssil em fevereiro, o acordo chegou a bom termo. Antes de o artigo sobre as aparentes penas coloridas do Tupandactylus sair na Nature, o material já estava no Brasil.
O desfecho foi muito diferente do que ocorreu com outro fóssil do Araripe, que saiu irregularmente do país. Em dezembro de 2020, o paleontólogo britânico David Martill, da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido, e outros colegas publicaram na revista Cretaceous Research um artigo com a descrição de um raro exemplar de dinossauro, informalmente denominado Ubirajara jubatus, que viveu há 120 milhões de anos (ver Pesquisa FAPESP nº 301). O estudo, que não explicava de forma convincente a origem do material, foi muito criticado pelos paleontólogos brasileiros e nas redes sociais. A Cretaceous Research resolveu então retratar o artigo, anulando sua publicação. O fóssil do dinossauro em questão se encontra no museu de Karlsruhe. Seu curador, Eberhard Frey, aliás, era um dos coautores, ao lado de Martill, do trabalho retratado. (MP)
Artigo científico
CINCOTTA, A. et al. Pterosaur melanosomes support signalling functions for early feathers. Nature. On-line 20 abr. 2022.