No Brasil, um em cada três leitos nas unidades de terapia intensiva (UTIs) é ocupado por uma pessoa com sepse, uma resposta desajustada do sistema de defesa que surge em consequência de uma infecção. Estima-se que, a cada ano, cerca de 420 mil pessoas sejam internadas com a síndrome no país e que quase 230 mil morram. Publicados em 2017 na revista The Lancet Infectious Diseases, esses cálculos resultam do primeiro estudo que avaliou em uma amostra representativa das UTIs brasileiras – um total de 227, de todas as regiões – a frequência dos casos de sepse e de mortes relacionadas a ela. Bastante elevada, na casa dos 55%, a taxa de mortalidade por esse problema no Brasil é bem superior à de nações mais ricas (26%) e está estagnada há mais de uma década.
“Hoje a mortalidade por sepse no país é semelhante à que havia sido estimada no início dos anos 2000”, conta o médico intensivista Luciano Pontes de Azevedo, do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), que coordenou a pesquisa de 2017 em parceria com a infectologista Flávia Ribeiro Machado, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O comportamento da mortalidade observado entre adultos não é muito diferente do encontrado entre crianças e adolescentes. A frequência de sepse é menor entre elas. Estima-se que ocorram 75 casos em cada 100 mil crianças (ante 290 por 100 mil entre adultos), o que significa 42 mil casos por ano. Mas há quase três décadas a taxa de mortalidade permanece em 20%. “Nos anos 1960, a mortalidade de crianças por sepse superava 60%. Conseguimos reduzir para 20%, mas depois não caiu mais”, relata a médica intensivista Daniela de Souza, do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP). Ela é a atual presidente do Instituto Latino-americano de Sepse (Ilas) e a autora principal do estudo publicado em 2021 na revista The Lancet Child & Adolescent Health que avaliou a frequência de sepse em UTIs pediátricas brasileiras.
Algumas características do sistema de saúde ajudam a entender esses números. Uma é a falta de atendimento e monitoramento adequados a partir do momento em que a pessoa com sepse chega ao hospital. Diante da alta mortalidade nas UTIs, Azevedo e Machado decidiram investigar o que se passava nos prontos-socorros, a porta de entrada das internações. Por três dias, eles e colaboradores registraram os casos suspeitos de sepse atendidos no setor de emergência de 74 instituições de saúde brasileiras.
Das 331 pessoas com quadro compatível com sepse atendidas nos prontos-socorros, só 53% foram encaminhadas em até 24 horas para um leito de enfermaria ou UTI, onde há condições melhores de tratar casos graves. Por falta de vagas nas UTIs, 39% dos pacientes com sepse atendidos em instituições públicas permaneceram no pronto-socorro durante toda a internação, que em alguns casos durou 13 dias, e pouco mais da metade deles (55%) morreu ali mesmo. Nas instituições particulares, 9% ficaram no setor de emergência, segundo os resultados do trabalho, publicado este ano na revista Internal and Emergency Medicine. “Tratar casos de sepse em pronto-socorro é inadequado. Não há condições de fazer o monitoramento de que esses pacientes necessitam”, afirma Azevedo.
Além do atendimento em instalações inapropriadas, os especialistas citam dois outros fatores que podem retardar o início do tratamento: a população desconhece o que é sepse e os profissionais da saúde têm dificuldade de identificá-la, por ter sintomas que podem ser confundidos com outros problemas (febre, taquicardia, respiração ofegante e confusão mental). Um levantamento feito anos atrás pelo Ilas com 2.126 pessoas em 134 municípios brasileiros mostrou que 93% nunca tinham ouvido falar em sepse e desconheciam o que era preciso fazer, enquanto 98% sabiam o que era infarto, que tem mortalidade 10 vezes inferior à da sepse, e que deveriam buscar ajuda médica. “Retardar o diagnóstico e o início do tratamento aumenta o risco de morte”, comenta Souza.
49 milhões de casos de sepse ocorrem por ano no mundo, segundo estimativas recentes
Algumas iniciativas já mostraram que é possível reduzir a mortalidade por sepse. De 2004 a 2015, um grupo do Ilas auxiliou 63 hospitais brasileiros (25 públicos e 38 privados) a criar equipes para lidar com a sepse e implantar procedimentos desenhados por uma comissão internacional de especialistas para reduzir os óbitos. São medidas padronizadas que devem ser adotadas nas seis primeiras horas após a internação, como o monitoramento e o controle da pressão arterial, a avaliação do nível de oxigenação dos tecidos, a coleta de sangue para identificar a presença de agentes infecciosos e a administração de antimicrobianos.
Em quatro anos de acompanhamento, a taxa de mortalidade dos hospitais caiu de 54%, em média, para 39%, segundo dados publicados em 2017 na revista Critical Care Medicine. A redução foi maior e mais duradoura nas instituições privadas, onde passou de 48% para 27%, e menor (de 61% para 55%) e mais breve nas públicas, que costumam ter menos recursos e leitos de UTI, além de equipes menores. “Para mudar as taxas atuais, é preciso conscientizar a população, os profissionais da saúde, os gestores de hospitais e a administração pública da relevância do problema”, afirma a presidente do Ilas.
É uma questão de saúde pública internacional. Afinal, calcula-se que 20% das mortes no mundo sejam decorrentes de sepse. A cada ano são cerca de 49 milhões de casos e 11 milhões de óbitos, segundo estimativas publicadas em 2020 na revista The Lancet. Quarenta por cento dos casos ocorrem em crianças menores de 5 anos.
“A mortalidade por sepse pode ser bastante reduzida no Brasil e em outros países apenas com os instrumentos de que dispomos hoje”, afirma o infectologista Reinaldo Salomão, chefe do Laboratório de Pesquisa em Sepse da Unifesp e um dos fundadores do Ilas. Ele fala com a experiência de quem estuda sepse há mais de 30 anos e já viu promessas de tratamentos mais eficazes surgirem e serem descartadas por se mostrarem ineficientes. Desde que se interessou pelo tema, ainda na residência médica, Salomão testemunhou o conceito de sepse mudar três vezes.
Em sua definição mais antiga, que vigorou por décadas, a sepse era considerada uma infecção generalizada. O agente patogênico (bactéria, fungo, vírus ou outro microrganismo) se disseminava pelo organismo, que, na tentativa de combatê-lo, originava uma inflamação que atingia todo o corpo. Essa ideia começou a vir por terra nos anos 1980, quando se descobriu que moléculas de comunicação (citocinas) liberadas pelas células de defesa podiam ativar uma inflamação disseminada, mesmo que a infecção continuasse restrita a um órgão.
O peso recaiu, então, sobre a inflamação e, em 1991, um grupo internacional de especialistas propôs o seguinte conceito para a sepse: uma inflamação sistêmica que surge em decorrência de uma infecção. Dez anos depois o conceito foi refinado para caracterizar melhor os níveis de gravidade e definir sintomas e critérios laboratoriais que indicassem o grau de danos aos órgãos. Ao testar estratégias para controlar essa inflamação, no entanto, os médicos perceberam que o fenômeno era bem mais complicado. Havia pessoas que, sim, respondiam à infecção com uma inflamação exacerbada. Mas havia outras em que a resposta inflamatória estava diminuída. Em 2016, a sepse passou, então, a ser compreendida como uma disfunção orgânica com risco de morte causada por uma resposta desregulada do hospedeiro a uma infecção.
“Essas mudanças foram importantes para incorporar novos conhecimentos ao conceito e direcionar a busca de alvos terapêuticos”, conta Salomão. “Nesse tempo todo, descobrimos que os pacientes são heterogêneos e respondem à infecção de acordo com as características genéticas, a idade e as doenças preexistentes. Também aprendemos que a sepse envolve a modulação simultânea de genes que coordenam processos biológicos de combate à infecção e de outros que tentam evitar danos aos tecidos”, afirma o pesquisador, que discute essas ideias em uma revisão publicada em 2019 no Brazilian Journal of Medical and Biological Research.
Na Unifesp, Salomão e sua equipe realizam experimentos com células de defesa isoladas do sangue de pacientes com sepse com o objetivo de compreender quais fenômenos representam uma resposta disfuncional do organismo – e, em princípio, deveriam ser combatidos – e quais indicam uma tentativa de adaptação a um ambiente hostil e poderiam ser estimulados.
Em uma das contribuições recentes, o grupo verificou que, no início da sepse, as células do sistema imune adotam uma estratégia aparentemente menos eficiente de produzir energia, mas que favorece a eliminação dos agentes infecciosos. A biomédica Bianca Lima Ferreira identificou essa alteração no funcionamento das células ao comparar a produção de proteínas de monócitos e linfócitos extraídos do sangue de pacientes em dois momentos – no dia da internação e uma semana mais tarde.
Na ausência de infecção, essas células, assim como as demais do corpo, usam a glicose dos alimentos para produzir energia por meio da respiração celular, um processo químico que consome oxigênio e gera 32 moléculas de trifosfato de adenosina (ATP), o combustível celular. Ferreira notou que, já no início da infecção, os monócitos e os linfócitos das pessoas com sepse haviam desligado a respiração celular e produziam energia por meio da glicólise anaeróbica, como haviam observado um pouco antes pesquisadores do Rio de Janeiro. Embora renda apenas duas moléculas de ATP, esse processo é mais rápido e evita o consumo de ingredientes que entram na produção de espécies reativas de oxigênio, compostos usados no combate aos invasores, e na produção de citocinas, sinalizadores que atraem outras células de defesa para o local da infecção.
Uma semana mais tarde os monócitos e os linfócitos diminuíram o uso da glicólise e da produção de citocinas, o que pode evitar danos às células sadias, mostraram os pesquisadores em artigo publicado em 2022 na Frontiers in Immunology. “Essa desativação parece ser uma tentativa de retorno à normalidade, e não um esgotamento da célula, já que a maioria desses pacientes sobreviveu à sepse”, conta Ferreira.
Em outro trabalho, realizado em parceria com a equipe do imunologista Tom van der Poll, da Universidade de Amsterdã, nos Países Baixos, o bioinformata Giuseppe Leite analisou o perfil de expressão dos genes e da produção de proteínas de uma gama maior de células de defesa encontradas no sangue de pessoas com sepse. Publicados em 2021 também na Frontiers in Immunology, os resultados indicaram tanto o aumento da atividade das células que integram a primeira linha de defesa, como os monócitos e os neutrófilos, quanto a supressão dos linfócitos, células do sistema imune que entram em ação em um segundo momento de uma infecção. “Mostramos que, na sepse, os dois fenômenos ocorrem simultaneamente”, explica Salomão.
11 milhões de pessoas morrem por ano por causa da síndrome, o correspondente a 20% dos óbitos mundiais
Enquanto o grupo da Unifesp trabalha para conhecer a capacidade de resposta das células de defesa, a equipe do imunofarmacologista Fernando de Queiroz Cunha, no campus da USP em Ribeirão Preto, investiga como a ação do sistema imunológico, além de destruir o agente causador da infecção, danifica o próprio organismo e agrava a situação. Nas duas últimas décadas, ele e seus colaboradores identificaram ao menos dois mecanismos que lesam os tecidos saudáveis.
O primeiro, detalhado em artigos publicados entre 2006 e 2010, é a produção de óxido nítrico (NO), uma molécula altamente reativa que interage com as estruturas das células e as danificam. Diferentes células do sistema imune sintetizam NO e o lançam sobre os patógenos. Na sepse, porém, essa produção atinge níveis mil vezes superiores ao normal, o que prejudica o desempenho das células de defesa, faz baixar drasticamente a pressão arterial e avaria as células de órgãos como o coração (ver Pesquisa FAPESP nºs 146 e 172). Mais recentemente a equipe de Cunha encontrou um segundo mecanismo: a liberação de armadilhas extracelulares pelos neutrófilos.
Neutrófilos são as células de defesa muito abundantes no sangue e uma das primeiras a migrar para o foco de infecção. Ao encontrar um patógeno, o neutrófilo o envolve e lança sobre ele um banho corrosivo de óxido nítrico. Se a situação foge ao controle, sinais do ambiente levam o neutrófilo a desenovelar o seu DNA e, em um evento explosivo e suicida, lançá-lo embebido em compostos tóxicos sobre os invasores.
Em experimentos simulando a sepse em camundongos, a farmacologista Paula Czaikoski constatou que a liberação dessas armadilhas de DNA era um dos mecanismos de lesão nos órgãos. Sua produção aumenta muito após o início da infecção – algo observado também no sangue de pessoas com sepse –, assim como os danos aos tecidos. A infecção e as lesões só foram controladas com o uso de um antibiótico associado a uma enzima que degrada o DNA e é usada para tratar fibrose cística, segundo resultados publicados em 2016 na revista PLOS ONE. “Essa e outras formas de tentar desfazer essas armadilhas estão sendo avaliadas em testes clínicos”, conta Cunha. Seu grupo, que participou da força-tarefa da USP para estudar a Covid-19, mostrou em um artigo publicado no Jornal of Experimental Medicine em 2020 que esse também é o mecanismo por trás de parte das lesões pulmonares causadas pelo novo coronavírus.
Em paralelo à identificação desses mecanismos, o imunofarmacologista José Carlos Alves Filho e a biomédica Daniele Nascimento descobriram duas causas da imunossupressão duradoura observada nos sobreviventes da sepse. Uma, descrita em 2010 na Critical Care Medicine, é a proliferação de linfócitos T reguladores, células do sistema imune que suprimem a reposta inflamatória e desativam outras células de defesa. Tecidos lesionados liberam citocinas que ativam mecanismos de reparo e estimulam a multiplicação desses linfócitos. Em 2021, na revista Immunity, a dupla demonstrou que uma subpopulação de linfócitos B libera altas doses de um composto que desativa os macrófagos, células que englobam e destroem os patógenos. “Nos experimentos com roedores, esses linfócitos B permaneceram ativos por muito tempo”, relata Alves Filho.
Apesar dos avanços na compreensão dos mecanismos envolvidos na sepse, o tratamento não deve mudar tão cedo. Por ora, afirmam os especialistas, o mais eficaz ainda é combater a infecção com antimicrobianos o mais cedo possível, para evitar que saia do controle, o que já seria suficiente para reduzir a mortalidade.
Projetos
1. Sepse: mecanismos, alvos terapêuticos e epidemiologia (nº 17/21052-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Reinaldo Salomão (Unifesp); Investimento R$ 3.614.841,78.
2. Sepse: integrando a pesquisa básica e a investigação clínica II (nº 11/20401-4); Modalidade Projeto temático; Pesquisador responsável Reinaldo Salomão (Unifesp); Investimento R$ 2.930.179,02.
3. Impacto da implementação de protocolo assistencial gerenciado na mortalidade por sepse em hospitais públicos do estado de São Paulo (nº 09/53227-7); Modalidade Pesquisa em Políticas Públicas para o SUS; Pesquisadora responsável Flávia Ribeiro Machado (Unifesp); Investimento R$ 95.519,45.
4. CPDI – Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (nº 13/08216-2); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Fernando de Queiroz Cunha (USP); Investimento R$ 67.979.975,52.
5. Mecanismos envolvidos na fisiopatologia da artrite reumatóide, dor e sepse (nº 11/19670-0); Modalidade Projeto temático; Pesquisador responsável Fernando de Queiroz Cunha (USP); Investimento R$ 4.156.944,81.
6. Papel da ectonucleotidase CD39 no estabelecimento da imunossupressão induzida pela sepse (nº 15/25974-3); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável José Carlos Alves Filho (USP); Bolsista Daniele Carvalho Bernardo Nascimento; Investimento R$ 222.554.85.
Artigos científicos
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DE SOUZA, D. C. et al. The epidemiology of sepsis in paediatric intensive care units in Brazil (the Sepsis PREvalence Assessment Database in Pediatric population, SPREAD PED): an observational study. Lancet Child & Adolescent Health. v. 5, n. 12. dez. 2021.
MACHADO, F. R. et al. Sepsis in Brazilian emergency departments: a prospective multicenter observational study. Internal and Emergency Medicine. v. 18, p. 409-21. 2 fev. 2023.
MACHADO, F. R. et al. Quality improvement initiatives in sepsis in an emerging country: Does the institution’s main source of income influence the results? An analysis of 21,103 patients. Critical Care Medicine. v. 45, n. 10, p. 1650-9. out. 2017.
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SALOMÃO, R. Sepsis: Evolving concepts and challenges. Brazilian Journal of Medical and Biological Research. 15 abr. 2019.
FERREIRA, B. L. et al. Glucose metabolism is upregulated in the mononuclear cell proteome during sepsis and supports endotoxin-tolerant cell function. Frontiers in Immunology. 18 nov. 2022.
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