Laura DaviñaDefender o organismo de si mesmo quando ele lança um ataque desesperado contra suas próprias células é o principal desafio dos médicos nos casos de sepse, infecção generalizada causada por bactéria ou vírus, acompanhada por uma inflamação agressiva contra os órgãos que deveria proteger. Avaliando a saúde de pacientes com sepse, problema que a cada ano atinge 18 milhões de pessoas no mundo, médicos do Brasil e de outros países observaram que o risco de morrer aumenta muito quando o órgão mais danificado é o coração: a taxa de óbito chega a 80% se o músculo cardíaco é afetado e passa a bombear com menos eficiência sangue rico em oxigênio para o restante do corpo, ante 20% quando não há dano cardíaco.
Agora pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto deram um passo além. Analisando o coração de pessoas e animais que morreram com sepse, a equipe coordenada pelo patologista Marcos Rossi e pelo farmacologista Fernando Cunha caracterizou o tipo de dano que a inflamação associada à sepse provoca nas células cardíacas. Mais importante: encontrou também um caminho promissor para proteger o coração e, assim, ganhar tempo para que o corpo recupere o controle da situação.
O principal avanço do grupo de Ribeirão foi ver o que acontece com as células cardíacas em escala molecular. Em estudos com animais em laboratório, os pesquisadores descobriram que moléculas de óxido nítrico liberadas na inflamação danificam a parede das células, tornando-as mais permeáveis ao cálcio. A consequência dessa alteração é uma superdosagem desse elemento químico que leva à morte celular – se a proporção de células afetadas for muito grande, diminui a capacidade do coração de bombear sangue. Publicado em março de 2010 no periódico científico Shock, esse achado é especial porque sugere formas de frear o processo de desgaste do coração. É que existem no mercado medicamentos que bloqueiam a absorção do cálcio, usados no controle da pressão arterial e na regulação do ritmo cardíaco.
Atualmente o grupo de Cunha e Rossi avalia, em parceria com pesquisadores do Albert Einstein College of Medicine, em Nova York, se essas drogas ajudam de fato a manter o coração funcionando quando administradas durante um quadro de sepse. O estudo ainda está em andamento, mas os resultados preliminares são bastante expressivos. Em um dos experimentos, os pesquisadores administraram compostos que impedem a absorção de cálcio – os chamados bloqueadores dos canais de cálcio – a camundongos que haviam sofrido perfuração nos intestinos e desenvolvido infecção generalizada. Em seguida, compararam com o que acontecia com um grupo de animais com sepse não tratados e com um grupo de roedores saudáveis.
Os bloqueadores dos canais de cálcio proporcionaram algum grau de sobrevida aos camundongos doentes. Sem o medicamento, a maioria dos animais com sepse morria em menos de 24 horas. Quando tratados, porém, todos sobreviveram ao primeiro dia. “A taxa de morte dos animais com sepse que receberam bloqueador de cálcio foi semelhante à dos camundongos do grupo de controle, que não tinha infecção”, explica Rossi. “É um resultado que nos deixou entusiasmados.”
Ainda são necessários muitos testes – e possivelmente anos de trabalho – para comprovar se essa estratégia é eficiente e pode ser adotada com segurança no dia a dia dos hospitais. Mas um fato deixa os pesquisadores otimistas: será mais simples realizar testes com seres humanos, uma vez que os bloqueadores de canais de cálcio já são utilizados para tratar problemas cardíacos. Rossi lembra, porém, que é prematuro supor que tudo dará certo, pois as circunstâncias a que os animais foram submetidos são bem diferentes das que envolvem os pacientes nos hospitais.
Como patologista, Rossi realizou muitas autópsias em pacientes que morreram com sepse e constatou que quase sempre o coração deles havia passado por mudanças radicais. “O coração de um paciente com sepse era diferente, meio flácido, o que indicava que em vida havia apresentado problema de funcionamento”, afirma. A análise do material obtido nas autópsias de fato indicava alterações morfológicas no músculo cardíaco. Apresentadas na Shock em 2007, essas alterações eram como um retrato do momento final.
A fim de conhecer como iniciam e evoluem os danos cardíacos associados à sepse, os pesquisadores tiveram de recorrer a um modelo experimental do problema – eles escolheram trabalhar com camundongos porque o organismo desses roedores funciona de modo semelhante ao humano. Por meio de uma incisão no intestino do animal, bactérias do trato digestivo alcançam a cavidade torácica e provocam uma infecção generalizada.
Já de início, os pesquisadores notaram uma modificação importante da estrutura do coração dos animais que desenvolviam sepse: houve uma redução expressiva na quantidade das proteínas responsáveis por manter as células do coração fortemente unidas. Como resultado, essas células, conhecidas como cardiomiócitos, se desconectavam umas das outras, observou Rossi ao analisar o tecido ao microscópio eletrônico. Era como se, em nível celular, o músculo cardíaco estivesse sendo desmontado.
Ainda que essa transformação, descrita em 2007 na Critical Care Medicine, ocorresse no nível microscópico, o desmonte produzia consequências facilmente observáveis. Para o coração bater com regularidade, suas células precisam estar firmemente ligadas entre si, de modo que contraiam ou relaxem em sincronia. Com as células desconectadas, o ritmo cardíaco tornava-se irregular e o coração rapidamente parava.
Análises químicas mais sofisticadas usando uma técnica (imunofluorescência) que faz certas proteínas brilharem quando presentes numa amostra reforçaram a suspeita de que a desestruturação cardíaca ocorria em nível molecular. Mas não no interior das células. O problema estava no exterior, no chamado meio extracelular. O grupo notou que uma estrutura proteica – o complexo distrofina-glicoproteína (DGC), que serve como ponto de apoio e dá forma às células – parecia se dissolver no coração dos animais vítimas da sepse, revelaram os pesquisadores de Ribeirão em artigo publicado no Laboratory Investigation de abril deste ano.
Se esses danos cardíacos forem de fato provocados pela inflamação associada à sepse, a saída para aumentar a taxa de sobrevivência de quem desenvolve as formas mais graves pode estar no controle da inflamação e dos danos por ela causados. De acordo com os pesquisadores de Ribeirão, essa seria uma transformação importante na maneira de lidar com o problema, uma vez que, em geral, tenta-se combater apenas os agentes infecciosos com antibióticos e antivirais. “As alterações identificadas surgem como alvos terapêuticos cuja modulação poderá reduzir a morbidade e a mortalidade na sepse”, afirma Rossi.
E eles não são os únicos a pensar assim. Na Universidade de Utah, nos Estados Unidos, o grupo chefiado pelo cardiologista Dean Li, do qual participa o médico brasileiro Fernando Augusto Bozza, do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas, no Rio de Janeiro, tentou controlar as reações inflamatórias decorrentes da sepse ou da gripe aviária de maneira inusitada. Os pesquisadores deram aos camundongos um composto que impedia que os comunicadores químicos que alimentam a inflamação deixassem a corrente sanguínea e chegassem aos tecidos. Assim, conseguiram reduzir o nível de dano no organismo dos roedores, segundo artigo publicado em 17 de março na Science Translational Medicine. “Ao bloquear os efeitos nocivos da inflamação no hospedeiro e estabilizar os vasos sanguíneos, identificamos uma estratégia totalmente diferente para tratar essas infecções”, disse Li. “Em essência, mostramos que, em vez de atacar o patógeno, podemos mirar o hospedeiro para ajudá-lo a lutar contra a infecção.”
O controle adequado da sepse, porém, deve exigir mais de uma estratégia de ação. Em um trabalho recente feito em parceria com pesquisadores da Universidade de Glasgow, na Escócia, o farmacologista José Carlos Alves Filho, da equipe de Cunha, administrou a camundongos com sepse uma proteína naturalmente produzida pelas células do sistema de defesa que atua como um comunicador químico de ação anti-inflamatória: a interleucina 33 ou IL-33. Além de reduzir a inflamação no organismo sem a eliminar no foco original de infecção, essa proteína estimulou a migração de um tipo específico de células de defesa – os neutrófilos – que eliminam as bactérias de modo eficiente.
Os resultados dessa terapia experimental foram claros. Apenas 20% dos roedores tratados com IL-33 morreram em consequência da sepse, enquanto a taxa de mortalidade no grupo que recebeu um composto inócuo foi de 80%. No artigo em que apresentam esses dados na Nature Medicine de 16 de maio, os pesquisadores sugerem que o efeito que a IL-33 produziu nos camundongos também deve ser observado nos seres humanos, uma vez que os neutrófilos são menos ativos nas pessoas que desenvolvem quadros mais graves de sepse.
Menos de um mês antes, outro integrante da equipe de Cunha e de Rossi, o farmacologista Fernando Spiller, havia demonstrado que o uso de sulfeto de hidrogênio – ou ácido sulfídrico (H2S), o gás responsável pelo mau cheiro dos ovos podres – induz a migração de neutrófilos e de outro grupo de células de defesa, os leucócitos, para a área inicial de infecção (ver Pesquisa FAPESP nº 146). Esse reforço celular eliminou as bactérias e reduziu para 13% a mortalidade entre os camundongos que receberam o composto, ante quase 80% entre os que não foram tratados, segundo artigo publicado no American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine.
Apesar de animadores, esses avanços representam apenas o passo inicial de um longo percurso para melhorar o controle da sepse, problema de saúde pública especialmente grave nos países em desenvolvimento, onde os recursos são mais escassos. Um levantamento feito anos atrás pelo Instituto Latino-americano para Estudos da Sepse revelou que, dos R$ 41 bilhões gastos em 2003 com terapia intensiva pelo sistema de saúde brasileiro, mais de R$ 17 bilhões foram destinados a tratamento de 400 mil pacientes com sepse, dos quais 227 mil morreram.
Os Projetos
1. Mediadores envolvidos na gênese da dor e migração de leucócitos e na sepse (nº 2007/51247-5); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Sergio Henrique Ferreira –USP/RP; Investimento R$ 2.303.227,35.
2. Sepse e choque séptico: alterações funcionais e morfológicas do coração: estudo experimental em camundongos (nº 2004/14578-5); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Sergio Henrique Ferreira – USP/RP; Investimento R$ 153.565,78.
3. Avaliação in vitro da expressão de distrofina em cardiomiócitos submetidos a diferentes estímulos (nº 2009/53544-2); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Marcos Antonio Rossi – USP/RP; Investimento R$ 310.920,30.
Artigos científicos
ROSSI, M.A. et al. Myocardial structural changes in long-term human sepsis/septic shock may be responsible for cardiac dysfunction. Shock. v. 27 (1), p. 1-18. jan. 2007.
CELES, M.R. et al. Disruption of sarcolemmal dystrophin and beta-dystroglycan may be a potential mechanism for myocardial dysfunction in severe sepsis. Laboratory Investigation. v. 90, p. 531-42. fev. 2010.