Evolução biológica é um dos assuntos científicos mais desafiadores para se organizar em uma única obra, voltada para o público geral. Trata-se de uma área extensa e multidisciplinar, o que impossibilita a formação de um pesquisador especializado em todas as questões relevantes dessa disciplina. Para uma abordagem mais ampla da evolução, é necessária a colaboração de uma equipe de especialistas. Entretanto, isso por si só não basta, pois a escolha das questões e da ordem de sua apresentação não é tarefa trivial. A evolução é fato, obra editada pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e coordenada pelo biólogo Carlos Menck, professor da Universidade de São Paulo (USP), oferece aos leitores um panorama abrangente de diversos tópicos relacionados à evolução dos seres vivos, incluindo informações atualizadas e recomendações bibliográficas ao final de cada capítulo.
A apresentação dos capítulos segue, aproximadamente, a cronologia da diversificação da vida. Após uma introdução geral e apresentação de evidências geológicas e moleculares da evolução, o livro explora os processos cósmicos e geológicos relevantes para o entendimento da evolução da vida na Terra. Em seguida, trata da origem da vida propriamente dita, das células, dos eucariotos, da transição para o ambiente terrestre de algumas linhagens e da evolução dos mamíferos no contexto da extinção dos dinossauros. Além disso, capítulos dedicados à evolução dos genomas e biologia do desenvolvimento enriquecem a obra, que é concluída com um resumo sobre processos microevolutivos, tópicos sobre a evolução humana – incluindo uma discussão a respeito da questão racial – e uma exposição da importância da biologia evolutiva no enfrentamento do Sars-CoV-2, vírus causador da Covid-19, e outros patógenos de evolução rápida.
A opção de encerrar a sequência narrativa histórica da obra com a evolução humana pode transmitir ao leitor leigo a impressão de que a evolução tem um propósito finalista. No entanto, essa é provavelmente a ordenação mais didática para introduzir o tema ao grande público. Afinal, os autores narram uma grande história, e os historiadores profissionais há muito reconhecem a impossibilidade de relatar qualquer história de forma completamente neutra. Esse mesmo viés se aplica à maior das histórias em biologia: a evolução da vida. Contada pela única espécie capaz de refletir sobre ela, a narrativa da evolução tende a assumir uma linearidade, com os eventos encadeados de forma a explicar nossa própria origem.
Ao concluir a leitura dessa obra agradável, informativa e muito bem-vinda, nota-se que os principais temas relacionados à história dos seres vivos foram tratados com clareza e atualidade. Contudo, a escolha de um título afirmativo – talvez até provocativo – instiga o leitor a refletir ainda mais sobre o próprio conceito de “fato científico”. Mesmo entre estudantes de graduação em ciências biológicas, é comum haver dúvidas sobre as definições de teoria, hipótese e fato científicos. Embora essa distinção raramente impacte o trabalho cotidiano dos cientistas, ela é de grande relevância para o público não especializado. Vale lembrar que, nas situações em que o ensino da biologia evolutiva foi judicializado, os cientistas e filósofos da ciência que atuaram como consultores precisaram esclarecer em tribunais os significados precisos desses termos em ciência. Foi, inclusive, após a decisão desfavorável aos criacionistas no caso Edwards vs. Aguillard (1987), nos Estados Unidos, que surgiu o termo “design inteligente”. Essa expressão foi uma tentativa de camuflar o criacionismo como uma “teoria científica” válida para inserção no currículo escolar, o que acabaria sendo desafiado em outro julgamento norte-americano, o caso Kitzmiller vs. Dover Area School District (2005).
Tais exemplos mostram que, além de uma clara exposição das ideias científicas, como bem apresentadas nesta obra, os biólogos evolutivos não podem ignorar as questões semânticas e filosóficas ao dialogar com o grande público. Afinal, na ausência de evidências empíricas contrárias, é justamente no campo da retórica que os ataques contra a evolução se concentram. Assumir uma posição clara, como a apresentada no livro, é crucial para a defesa da ciência e da educação científica das futuras gerações de brasileiros.
O biólogo Carlos Guerra Schrago é professor do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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