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Física

Exótica fase da matéria pode ser útil para desenvolver computadores quânticos

Composto magnético que apresenta estado conhecido como líquido de spin parece ser mais estável do que se pensava

Ilustração de como seria o comportamento de um material bidimensional na fase quântica de líquido de spin

Universidade de Arkansas

Um material magnético bidimensional que pode ser a base de uma nova forma da computação quântica parece ser mais estável do que aparentava. Mesmo após a introdução de pequenas perturbações em um modelo teórico que emula seu comportamento, esse composto – que, quando super-resfriado, apresenta uma exótica fase ou estado quântico da matéria denominada líquido de spin – mantém propriedades que podem ser essenciais para o funcionamento de um computador desse tipo.

Essas conclusões constam de um artigo de dois físicos brasileiros publicado na revista científica Physical Review Letters em julho deste ano. “A teoria não previa que esse modelo continuasse válido depois da ocorrência de certas perturbações no sistema”, diz o físico Eric Andrade, da Universidade de São Paulo (USP), principal autor do trabalho, também assinado por Vitor Dantas, ex-aluno de mestrado. “Mas vimos que o material pode suportar entre 1% e 2% de vacâncias do elétron em sua estrutura e ainda manter suas propriedades quânticas.”

As vacâncias são espaços vazios em certos pontos de conexão da estrutura interna de um material em razão da ausência de elétrons. Na prática, os buracos fazem com que algumas ligações atômicas sejam mais fortes e outras mais fracas. Esse tipo de imperfeição, ou desordem, para usar o jargão da área, ocorre ao acaso em muitos materiais. Se sua incidência for muito elevada, pode alterar as propriedades do composto.

“Na natureza, os átomos de um material podem ocupar posições erradas. O hidrogênio [que faz parte da fórmula do material estudado] é um átomo muito leve e escapa com certa frequência de seu lugar esperado”, comenta o físico Rodrigo Pereira, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que não participou do estudo.

O material empregado nas simulações foi um óxido de irídio (H3LiIr2O6), que apresenta uma estrutura hexagonal na forma de colmeia similar à do grafeno. Em experimentos, esse composto é um dos que mais forneceram indícios de se comportar como previsto pelo chamado modelo de Kitaev. Proposto em 2006 pelo físico russo Alexei Kitaev, hoje professor do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), esse conceito prevê a existência da fase de líquido de spin em certos materiais 2D, cristais sólidos formados por uma única camada de átomos, quando resfriados a temperaturas próximas ao zero absoluto (-273,15 °C). “O modelo de Kitaev é simples, por isso trabalhamos com ele”, comenta Andrade.

Até hoje, ainda não há consenso entre os físicos de que algum material possa realmente apresentar a fase quântica de líquido de spin, ideia proposta há quase 50 anos, embora existam vários candidatos promissores. Nesse estado, o arranjo geométrico dos átomos de um material faz com que o spin dos elétrons não siga um ordenamento magnético preciso. O spin é uma propriedade quântica intrínseca dos elétrons e de outras partículas subatômicas que influencia sua interação com campos magnéticos. Pode apresentar duas configurações, que são representadas como spin para cima e para baixo. Os spins dos materiais tendem a se ordenar de forma homogênea: todos apontam para cima ou para baixo, ou alternadamente para cima e para baixo. Na fase de líquido de spin, no entanto, o momento angular dos elétrons não se fixa em uma configuração, fica flutuando entre os diferentes arranjos (daí a analogia com um líquido).

Nesse estado exótico da matéria, algumas propriedades quânticas se intensificariam, um efeito benéfico que talvez possa ser explorado no desenvolvimento de novas formas de computação. Entre essas propriedades, destacam-se um forte grau de emaranhamento quântico e a presença de análogos dos férmions de Majorana, misteriosas partículas subatômicas cuja existência foi proposta na teoria, mas nunca comprovada experimentalmente.

O emaranhamento quântico faz com que duas ou mais partículas estejam tão correlacionadas a ponto de uma determinar o que ocorre com a outra, mesmo se separadas por distâncias enormes. Os férmions de Majorana seriam partículas quânticas diferentes de todas as conhecidas. Ao mesmo tempo, atuariam como partículas e antipartículas de si mesmas. Uma partícula tem a massa igual à de sua respectiva antipartícula, mas carga elétrica oposta. É o caso, por exemplo, do elétron (negativo) e do pósitron (positivo). “A dualidade dos férmions de Majorana pode ser uma propriedade interessante a ser explorada na computação quântica”, explica Pereira.

Desde os anos 1980, a ideia de construir computadores capazes de usar as estranhas propriedades da mecânica quântica, como superposição de estados e emaranhamento, para alcançar um poder de processamento sem paralelo é um objetivo perseguido ainda sem resultados revolucionários. Grandes empresas, como Google, Microsoft e IBM, já anunciaram diferentes versões de computadores quânticos de uso restrito a certas tarefas, quase sempre envoltos em mistérios e dúvidas.

As dificuldades derivam de uma limitação aparentemente intrínseca das propostas de construção desse tipo de máquina: a falta de estabilidade e robustez dos arranjos quânticos que são necessários para seu funcionamento. Mínimas alterações no ambiente, como um levíssimo aumento de temperatura ou tênues vibrações mecânicas, provocam erros nesses sistemas. “Compreender a fase de líquido de spin talvez possa ser útil para desenvolver computadores quânticos mais estáveis”, diz Andrade.

Projeto
Magnetos frustrados: anisotropia e inomogeneidades (nº 19/17026-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Eric Andrade (USP); Investimento R$ 49.329,63.

Artigo científico
DANTAS. V. & ANDRADE. E.C. Disorder, Low-Energy Excitations, and Topology in the Kitaev Spin Liquid. Physical Review Letters. v. 129. n. 3. jul. 2022.

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