augusto zambonatoO ensino fundamental no Brasil hoje pode ser considerado universal, com 99,2% das crianças de 6 a 14 anos frequentando a escola, o que representa 26,5 milhões de estudantes, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Educação (Pnad Contínua), divulgada no final de dezembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao mesmo tempo, um levantamento da unidade brasileira da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), também produzido com base na Pnad, identificou que, em 2002, apenas 10,7% dos jovens mais pobres do país chegavam ao ensino médio na idade adequada, patamar que hoje subiu para 39%. Sem deixar de reconhecer a importância desses avanços, os números indicam que as desigualdades que antes se manifestavam no acesso à escola pública, agora se revelam dentro dela, com crescentes diferenças nos níveis de aprendizagem, que podem chegar ao equivalente a três anos de escolarização entre crianças da mesma idade. O Núcleo de Pesquisa em Desigualdades Escolares (Nupede) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fez a constatação a partir de análises de edições da Prova Brasil entre 2005 e 2013, que envolveram cerca de 23 milhões de alunos e 70 mil escolas em todos os 5.570 municípios brasileiros.
“A desigualdade de aprendizagem entre grupos de diferentes níveis socioeconômicos cresceu. Alunos submetidos a mais de uma característica associada à exclusão social têm desempenho muito pior do que os outros”, afirma o estatístico José Francisco Soares, professor titular aposentado da UFMG, ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e um dos autores do trabalho, que teve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig). Soares destaca que, apesar de a evolução do desempenho escolar médio dos alunos da escola pública ter apresentado variação positiva de quase 20 pontos, o que corresponde aos conhecimentos de cerca de um ano escolar, a distância de aprendizagem entre alguns grupos pode chegar a três anos de escolarização. É o caso de meninos brancos com nível socioeconômico (NSE) alto e meninas negras com NSE baixo quando tiveram avaliados seus conhecimentos em matemática (ver gráficos). Os resultados da pesquisa foram divulgados no artigo “Desigualdades educacionais no ensino fundamental de 2005 a 2013: Hiato entre grupos sociais”, publicado na Revista Brasileira de Sociologia em 2016.
A Prova Brasil – antigo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) – é uma avaliação educacional realizada bianualmente pelo Inep. Composta por testes de matemática e língua portuguesa, afere notas de zero a 500 para alunos do 5º e 9º anos do ensino fundamental e é um dos componentes usados para calcular o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que avalia a qualidade da educação básica no Brasil. Para classificar os alunos das escolas em que a prova foi feita, os pesquisadores do núcleo utilizaram um indicador de NSE que relaciona critérios como escolaridade e ocupação dos pais, posse de itens, contratação de empregados domésticos e renda familiar. No estudo, as divergências de aprendizagem são avaliadas separadamente conforme o NSE, raça e gênero dos alunos e também por meio de recortes que relacionam os três itens, formando diversos subgrupos.
“Os problemas de aprendizado no ensino fundamental constituem uma barreira para o acesso a níveis mais altos de ensino. Proficiência menor de alunos pretos e pardos ou com NSE baixo os coloca em situação desvantajosa para seguir a trajetória escolar”, considera Maria Teresa Gonzaga Alves, professora do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação (Decae) da UFMG e coordenadora do Nupede. A pesquisadora explica que, ao analisar os dados de cinco edições da Prova Brasil, foram identificados avanços na proficiência dos anos iniciais do ensino fundamental. Porém, os grupos sociais mais favorecidos foram os que progrediram. Maria Teresa esclarece que, com a expansão do ensino básico, as desigualdades que antes afetavam mais acentuadamente o acesso e a progressão escolar vêm se revelando, agora, pelas desigualdades crescentes de aprendizado.
Ao avaliar as diferenças de aprendizagem segundo o sexo dos alunos, a pesquisa identificou que, em leitura, tanto no 5º quanto no 9º ano, as médias melhoraram. No entanto, as meninas atingiram proficiências melhores e as diferenças aumentaram em relação aos níveis dos meninos. Em matemática, as médias também se elevaram, mas, nesse caso, os meninos aprenderam mais.
Em relação às diferenças de raça, o estudo avaliou que os estudantes autodeclarados pretos melhoraram a proficiência. Entretanto, apresentaram pior desempenho se comparados aos alunos brancos ou pardos. Além disso, a diferença de aprendizagem entre pardos e pretos é menor em relação às divergências entre brancos e pretos. A pesquisa mostra ainda que estudantes pretos, mesmo frequentando a mesma série de alunos brancos, aprenderam o equivalente a um ano a menos de educação formal.
As maiores disparidades foram identificadas em relação ao NSE. A média geral de aprendizagem aumentou, mas os alunos de perfil socioeconômico baixo não apresentaram variações expressivas em suas notas. Nesse contexto, um dos dados mais significativos pode ser observado em 2013 no 5º ano, tanto nas provas de leitura quanto nas de matemática. Nessa etapa, os alunos com NSE baixo apresentaram desvantagem equivalente a mais de dois anos de aprendizado, se comparados a estudantes com NSE alto.
Ao cruzar os três critérios (gênero, raça e NSE), o estudo identificou os grupos em que as diferenças são mais aparentes. No gráfico que mede os resultados em leitura, a grande diferença aparece entre meninas brancas com NSE alto (5º grupo) e meninos pretos com NSE baixo (1º grupo). Observa-se que, no 5º ano, a distância entre esses dois grupos extremos cresceu de 2005 a 2013. No gráfico que mostra a aprendizagem em matemática, a diferença maior emerge entre meninos brancos com NSE alto e meninas pretas com NSE baixo. A pesquisa identificou que alunos matriculados na mesma série, mas diferentes em relação ao sexo, à cor e ao NSE, podem apresentar diferenças de aprendizagem superiores a três anos.
Diferenças municipais
O estudo da UFMG também procurou mensurar a equidade entre grupos sociais nas escolas conforme os municípios. Maria Teresa, da UFMG, esclarece que, em uma situação de equidade educacional, os efeitos de características associadas à exclusão social, como perfil socioeconômico baixo, sexo feminino e cor preta, deveriam ser iguais ou próximos de zero nos níveis de aprendizagem. “Para a proficiência em matemática, não encontramos municípios em que os alunos de cor preta e os de cor branca têm resultados médios equitativos”, destaca Maria Teresa. De acordo com ela, em Salvador, o efeito da cor na aprendizagem é menos desigual. Porém, as médias gerais dos alunos são baixas, o que significa que a equidade existe em uma situação de aprendizagem insatisfatória para todos os grupos.
Sobre essa segunda parte da pesquisa, José Francisco Soares conta que os níveis de aprendizagem das cidades foram classificados em básico, adequado e avançado e que em Teresina (PI) as diferenças de aprendizagem são menores, porém o nível dos alunos fica abaixo do básico. Em Florianópolis a média geral subiu, mas os negros aprenderam menos. “As desigualdades educacionais são diferentes em cada parte do país. Um tipo especialmente perverso é a disparidade observada em cidades cuja média de desempenho é alta, mas determinados grupos aprendem menos”, observa.
Arnaldo Mont’Alvão, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e da Universidade do Estado de Iowa, nos Estados Unidos, sugere algumas justificativas para explicar esse panorama. Segundo ele, à medida que os sistemas educacionais se expandem, as desigualdades se deslocam vertical e horizontalmente. Quando o acesso à educação primária se torna universal, as desigualdades se deslocam para o nível imediatamente superior, o secundário, criando gargalos que impedem a passagem de diversos jovens para esse nível escolar. O pesquisador explica que no Brasil isso acontece porque, enquanto a educação fundamental está quase universalizada, no ensino médio as vagas são mais escassas, de maneira que ocorre uma competição por ocupar os lugares disponíveis, processo que privilegia alunos com melhores desempenhos. “Usamos o conceito de estratificação vertical para discutir a forma como as desigualdades afetam as sucessivas transições entre pontos do sistema educacional”, diz Mont’Alvão.
A segunda explicação apresentada se relaciona ao fato de que, conforme determinado nível escolar atinge a universalidade, novos caminhos se abrem para assegurar que alguns estudantes continuem com vantagens na competição pelas melhores vagas. “Famílias dos estratos socioeconômicos mais altos procuram resguardar para seus filhos os caminhos do sistema educacional que trarão maiores retornos social e econômico”, diz o pesquisador, lembrando que esse fenômeno é conhecido por estratificação horizontal.
No artigo “A dimensão vertical e horizontal da estratificação educacional”, publicado em 2016 na Revista Teoria e Cultura, do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, Mont’Alvão recorda que os estudantes que completam o ensino médio e avançam para o superior precisam escolher o tipo de instituição e a área educacional que pretendem cursar. De acordo com ele, essas escolhas são condicionadas socialmente, de modo que estudantes dos estratos socioeconômicos mais altos têm vantagens de acesso às instituições mais prestigiadas e a campos educacionais com maior retorno socioeconômico. Mont’Alvão identifica uma dinâmica similar na educação básica, quando algumas famílias com melhores níveis socioeconômicos buscam garantir vagas para seus filhos nas escolas mais bem conceituadas nas avaliações do MEC.
Amélia Cristina Abreu Artes, pesquisadora do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas (FCC), de São Paulo, afirma que, ao universalizar a educação pública, o Brasil passou a atender estudantes negros e de camadas populares que possuem menos familiaridade com uma cultura valorizada pela escola, motivo que pode explicar parcialmente o aumento das desigualdades de aprendizagem. “A escola pública não está preparada para lidar com a diversidade de alunos e considerar as diferentes bagagens intelectuais e culturais que crianças e jovens trazem ao chegar ao ambiente escolar”, avalia.
Estudo de caso
O trabalho desenvolvido pelos professores da UFMG se insere em um campo metodológico de pesquisas educacionais que procura avaliar as desigualdades escolares quantitativamente, baseando-se nas respostas de questionários que medem o desempenho de grupos de estudantes e escolas. Outra metodologia utilizada na área tem caráter qualitativo e utiliza entrevistas, observação participante e outras técnicas para entender significados e redes de relações que permeiam o processo escolar. Por meio do conhecimento de contextos específicos, esses estudos buscam entender a realidade global do sistema educacional brasileiro.
Entre 2011 e 2013, uma pesquisa procurou avaliar como os níveis de vulnerabilidade social dos territórios afetam a distribuição de oportunidades educacionais, com a finalidade de explicar parte das dinâmicas que se refletem em avaliações amplas como a Prova Brasil. Para isso, se ateve a escolas na subprefeitura de São Miguel Paulista, distrito da região leste do município de São Paulo que abriga cerca de 250 mil habitantes. Por meio de mapas georreferenciados que mostravam a localização das instituições e os índices de pobreza da área, o estudo “Educação em territórios de alta vulnerabilidade social” identificou que nas regiões mais pobres do bairro os resultados globais das escolas eram os mais baixos. Para entender os motivos dessa dinâmica, os pesquisadores percorreram cinco escolas localizadas em áreas centrais e periféricas do bairro. O estudo foi financiado pela Fundação Tide Setubal e pela FAPESP, com coordenação técnica do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e apoio da Fundação Itaú Social e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Mauricio Ernica, professor do Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte (Delart) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador da equipe, conta que uma das conclusões do estudo é que escolas em regiões vulneráveis estão mais isoladas de outros serviços públicos e com frequência funcionam como a única presença do estado na região. Segundo exemplo dado pelo pesquisador, nessas áreas, as mães levam os filhos para a escola não apenas para estudar, mas para ter outras demandas sociais atendidas, como acesso aos serviços de saúde. “Um conjunto de problemas deságua nessas instituições. Nelas, sempre há um funcionário deslocado, fazendo encaminhamento de crianças para outros serviços. Assim, a instituição passa a ter seu funcionamento afetado”, analisa Ernica.
O economista e demógrafo Haroldo Torres, membro do Conselho Consultivo da Fundação Tide Setubal, desenvolveu uma pesquisa no Centro de Estudos da Metrópole (CEM) entre 2006 e 2009 e identificou que professores com melhor formação e mais experiência trabalhavam em escolas centrais da cidade de São Paulo, enquanto instituições na periferia costumavam abrigar docentes temporários ou substitutos. “Muitos desses profissionais, nos anos seguintes, solicitavam mudança de escola, o que desfavorece o desenvolvimento de um projeto pedagógico”, relata.
Boas práticas na escola
Maria Teresa, da UFMG, afirma que os dados da Prova Brasil sugerem que escolas nas quais questões de liderança administrativa e pedagógica estão mais bem resolvidas, em que professores, alunos e famílias participam de processos de tomada de decisões, que possuem menos problemas de recursos humanos, onde os espaços educacionais são adequados, com recursos audiovisuais e de informática, os alunos têm menor risco de exclusão e mais chance de estar no nível adequado de ensino. A pesquisadora chegou às conclusões a partir de um estudo realizado em 2016 com financiamento da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).
Outras práticas que permitiriam reduzir a desigualdade na educação básica, segundo Mont’Alvão, seriam investir no desenvolvimento de escolas de tempo integral com atividades diversificadas. “Mais integração da escola com equipes de saúde, além de políticas contra a discriminação racial, também seria eficaz”, analisa.
Alessio Costa Lima, presidente da União Nacional dos Dirigentes da Educação Pública Municipal (Undime) e dirigente municipal em Alto Santo, no Ceará, lembra que em 1997 mais de 40% dos alunos que concluíam o ensino fundamental no estado não sabiam ler e escrever. Para reverter a situação, foram colocadas em prática políticas públicas duradouras que envolveram a formação de professores, o desenvolvimento de material didático centrado nas dificuldades de alfabetização dos estudantes, os investimentos em educação infantil e a criação de recursos para controlar a frequência dos alunos. Além disso, o estado passou a identificar as 150 escolas com melhores e piores desempenhos. As instituições com melhores resultados apadrinham aquelas com performances negativas para ajudá-las a sanar problemas de ensino e, no ano seguinte, recebem uma premiação em dinheiro caso as piores escolas melhorem seus indicadores. “Instituições em cidades distantes dos centros urbanos tendem a apresentar maiores dificuldades e com esse sistema fazemos com que escolas privilegiadas sejam corresponsáveis por melhorar a educação no estado”, relata. Como resultado das ações, Lima afirma que hoje 80% dos alunos do estado aprendem a ler e escrever já no segundo ano do ensino fundamental.
Projeto
Educação em territórios de alta vulnerabilidade social de grandes centros urbanos (nº 10/20245-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Maria Alice Setubal (Cenpec); Investimento R$ 43.806,95.
Artigos científicos
ALVES, M. T. G. et al. Desigualdades educacionais no ensino fundamental de 2005 a 2013: Hiato entre grupos sociais. Revista Brasileira de Sociologia. v. 4, n. 7, p. 49-82. jan./jun. 2016.
MONT´ALVÃO, A. A dimensão vertical e horizontal da estratificação educacional. Revista Teoria e Cultura. v. 11, n. 1, p. 13-20. 2016.
ÉRNICA, M. e BATISTA, A. A. G. A escola, a metrópole e a vizinhança vulnerável. Outros Temas. v. 42, n. 146, p. 640-66. mai./ago. 2012.