Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde foi professor entre 1962 e 1977, Flávio Império (1935-1985) tornou-se um dos nomes mais importantes da cenografia brasileira, pintou quadros e trabalhou em espetáculos com figuras emblemáticas da cena nacional, como a cantora Maria Bethânia e o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa (1937-2023). Prevista para maio, uma exposição no prédio da Pinacoteca Estação, no centro da capital paulista, pretende percorrer o legado do multifacetado Império, cuja morte completa 40 anos em 2025.
“Ele é um dos personagens centrais para se compreender a cultura brasileira entre as décadas de 1960 e 1980”, afirma Yuri Quevedo, curador da Pinacoteca do Estado de São Paulo e responsável pela mostra. A retrospectiva deve reunir cerca de 300 itens, como desenhos de figurinos e três documentários em super-8 dirigidos por Império. É o caso de Colhe, carda, fia, urde e tece (1976), em que retrata o passo a passo da tecelagem manual no Triângulo Mineiro. “Nossa ideia é mostrar como Império olhou de forma recorrente para a cultura popular ao longo de sua carreira”, prossegue Quevedo, que é professor de história da arte na Faculdade de Arquitetura da Escola da Cidade (SP).
Um dos exemplos do apreço do artista, arquiteto, cenógrafo e figurinista pela temática é seu projeto cenográfico para o desfile do Carnaval de São Paulo de 1984. A documentação com assinatura de Império foi encontrada em 2023 pela arquiteta Angelina Gauna, da SPTuris, a empresa de turismo da prefeitura paulistana. O achado se deu na mudança do acervo histórico da instituição para o Arquivo Histórico Municipal de São Paulo (AHM-SP).
Na época em que Império desenhou o projeto, os desfiles das escolas de samba aconteciam no centro paulistano. “Todo ano a estrutura do Carnaval era construída e desmontada logo em seguida na avenida Tiradentes. No ano seguinte, repetia-se esse processo”, explica o arquivista Sátiro Nunes, coordenador da equipe do acervo permanente do AHM-SP. “Por isso, era preciso fazer projetos que contemplassem quesitos como arquitetura, cenografia e sinalização”, acrescenta Gauna.
Para se adequar ao local e ao orçamento disponível, o projeto de Império valeu-se da mesma estrutura metálica das arquibancadas, com nove pórticos interligados ao longo de 800 metros de extensão. Sobre a avenida, nos pórticos de 17 metros de altura, foi colocada uma série de flores (vermelhas, laranja e amarelas) e lâmpadas coloridas (brancas, amarelas e vermelhas). No período diurno, o desenho era definido pelas decorações florais, enquanto à noite, as formas seriam delineadas pelas luzes. “O projeto homenageia as festas populares brasileiras, mas é pautado pela sutileza para não interferir na apresentação das escolas de samba”, diz Nunes.
O croqui registra uma novidade em seu currículo. “Ele nunca tinha produzido nada ligado ao Carnaval e fez o projeto a convite do artista visual Cláudio Tozzi [responsável por desenhar o logotipo vencedor da festa de 1984]”, relata a diretora de arte Vera Hamburger, sobrinha de Império e uma das responsáveis pelo acervo on-line do artista, ao lado do curador Jacopo Crivelli Visconti e do arquiteto Humberto Pio Guimarães.
O site, que existe desde 2015, é uma iniciativa da Sociedade Cultural Flávio Império. Ela foi criada em 1987 por familiares, amigos, parceiros e antigos alunos, como o arquiteto Paulo Mendes da Rocha (1928-2021), na sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil – Departamento de São Paulo (IAB-SP). Coordenada nos primórdios pela irmã, Amélia Império Hamburger (1932-2011), que foi professora do Instituto de Física da USP, a entidade busca disponibilizar o extenso acervo de documentos reunidos pelo próprio artista. O catálogo físico, formado por mais de 22 mil itens, encontra-se atualmente sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
Uma das frentes do acervo digital está ligada à atuação de Império nas artes cênicas. Sua estreia profissional nessa seara se deu em Morte e vida severina, adaptação do poema de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) pela companhia Cacilda Becker, de São Paulo. Para o espetáculo, que entrou em cartaz em 1960, criou cenografia e figurino. “Ele projetou no palco fotografias de retirantes e tabelas com dados da desigualdade social brasileira. Foi uma inovação”, relata o arquiteto Rogério Marcondes, autor da tese de doutorado “Flávio Império, arquitetura e teatro 1960-1977: As relações interdisciplinares”, defendida em 2017 na FAU-USP. “Porém a revolução cenográfica de Império aconteceu por meio de suas parcerias com o Teatro de Arena e o Teatro Oficina.”
Para o primeiro, trabalhou em Arena conta Zumbi (1965), dos dramaturgos Augusto Boal (1931-2009) e Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006). A peça narra a trajetória de Zumbi (?-1695), um dos líderes do quilombo dos Palmares, refúgio de escravizados nos séculos XVII e XVIII na então capitania de Pernambuco. Em cena, nove atores se revezavam para fazer os papéis de nobres, escravizados e soldados. “Ele vestiu os atores com camisas coloridas e calças jeans brancas, compradas em uma loja da rua Augusta, para aproximar a história de Zumbi do tempo presente”, prossegue Marcondes.
Império assinou a cenografia e o figurino de outro marco da dramaturgia brasileira: a peça Roda viva, escrita por Chico Buarque. Com direção de Martinez Corrêa, a montagem do Teatro Oficina foi encenada em 1968 no Rio de Janeiro, em São Paulo e Porto Alegre. “O figurino baseava-se naquela malha usada tradicionalmente por bailarinos para transmitir a ideia de androginia. Ele também criou uma passarela que saía do palco e ia até a plateia, que os atores percorriam e interagiam com o público”, conta Marcondes. “E, na parte final do espetáculo, o elenco trazia à cena um fígado de boi de verdade, cujo sangue respingava na audiência.”
De acordo com a arquiteta Lívia Loureiro, professora do Instituto Federal de São Paulo (IF-SP), Império gostava de trabalhar fora da caixa cênica à italiana, estrutura associada ao teatro burguês europeu. “O teatro convencional quer criar um mundo ilusório. Flávio, por sua vez, não buscava reproduzir a realidade, mas deixar evidente em cena o fazer artístico”, observa Loureiro, autora da dissertação de mestrado “Flávio Império: Desenho de um percurso”, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2012.
Em seu trabalho arquitetônico, Império fez parte do grupo Arquitetura Nova, ao lado dos arquitetos Rodrigo Lefèvre (1938-1984) e Sérgio Ferro. A parceria começou na FAU, em 1961, e logo os três colegas dividiram um escritório no centro de São Paulo, que funcionou até 1968.Cerca de dois anos mais tarde, Lefèvre e Ferro foram presos pelo regime militar.
“A autoria dos projetos era vista como uma prática coletiva construída ao longo de uma intensa convivência e troca de ideias, inclusive com os engenheiros e operários nos canteiros de obra”, diz a arquiteta Ana Paula Koury, da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e da Universidade São Judas, em São Paulo. “Eles utilizavam materiais baratos, como blocos de concreto, e dispensavam revestimento com o intuito de evidenciar os processos de trabalho na construção”, acrescenta a pesquisadora, autora de um livro sobre o grupo, lançado em 2003, pela Edusp.
Segundo o arquiteto Felipe Contier, da UPM, o único trabalho individual de Império na arquitetura que foi de fato construído é a residência Simão Fausto (1961). “Esse projeto, executado em Ubatuba [SP], traz inovações como um jardim sobre a cobertura de abóbadas de tijolo. Era uma solução experimental que, além de melhorar o isolamento térmico, celebrava o trabalho artesanal e favorecia a integração na paisagem”, explica Contier.
A influência da arquitetura marca também a atuação de Império nas artes plásticas, como a série Construções, da década de 1980. Além de telas, ele fez gravuras, colagens, instalações e objetos. “Império foi um intérprete da vida cotidiana. Seu trabalho nas artes visuais é um esforço de compreender como as pessoas viviam e as soluções que encontravam em meio à precariedade e ao subdesenvolvimento do nosso país”, analisa Quevedo, da Escola da Cidade e autor da dissertação de mestrado “Entre marchadeiras, mãos e mangarás: Flávio Império e as artes plásticas”, defendida em 2019 na FAU-USP.
O título da pesquisa faz referência à obra A marchadeira das famílias bem pensantes (1965), uma das pinturas mais conhecidas do artista. Nela, critica a Marcha da família com Deus pela liberdade, de março de 1964, manifestação contra o governo do presidente João Goulart (1919-1976), que seria derrubado pelo golpe militar. “Nos anos 1970, Império passou a se dedicar cada vez mais à pintura, atividade que praticava desde a infância. Ainda que tenha abordado temas claramente políticos nos seus desenhos, foi nas artes visuais que ele criou um espaço de reflexão mais íntimo”, conclui Quevedo.
A reportagem acima foi publicada com o título “Mergulho no popular” na edição impressa nº 347, de janeiro de 2025.
Artigos científicos
KOURY, A. P. et al. Para ler Arquitetura Nova Brasileira: Arquitetos Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro. Arq.Urb. n. 29, p. 01-03. 2020.
QUEVEDO, Y. F. A marchadeira das famílias bem pensantes: A pintura de Flávio Império entre o máximo e o neutro teatral. Arq.Urb. n. 29, p. 78-86. 2020.
Capítulo de livro
MARCONDES, R. Teatro, arquitetura e ditadura: Um recorte na carreira de Flávio Império. In: RIBAS, M., MENDES, R. (org.). Modernismos pra lá e pra cá. Campo Grande, MS: Editora dos Autores, 2022.