Em uma sala com paredes brancas distribuem-se quatro caixas de som. Ao centro, duas portáteis em formato de maleta, de uma marca popular, e nas laterais, duas profissionais, dessas que equipam estúdios de gravação. As centrais tocam funk e música gospel, ritmos populares ouvidos pelos moradores da Cracolândia, região no centro de São Paulo frequentada por comerciantes, profissionais liberais, artistas, funcionários públicos e dependentes químicos. As caixas de som profissionais tocam música erudita, que faz parte do programa de concertos da Sala São Paulo e é ensinada na Escola de Música do Estado de São Paulo (Emesp), localizada no mesmo território da Cracolândia.
Na tentativa de promover o encontro e, principalmente, a escuta entre dois mundos tão distantes socialmente, embora geograficamente próximos, pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Internet do Futuro para Cidades Inteligentes (InterSCity), financiado pela FAPESP, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), montaram a exposição Des-habitar escutas: escuta em disputa na Cracolândia, ocorrida entre 4 e 19 de junho no Espaço das Artes Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), localizado no bairro do Butantã, na capital paulista. Uma versão reduzida da exposição está programada para ser montada na segunda quinzena de agosto no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP.
A exibição foi um dos resultados do estudo conduzido pelas artistas e pesquisadoras do Núcleo de Pesquisa em Sonologia (NuSom), da USP, Lílian Campesato e Valéria Bonafé, também integrantes do InterSCity. Desde 2017, a dupla trabalha no projeto “Microfonias: invenção e compartilhamento de escuta”, que investiga e aplica métodos de conversação e de escuta para criação artística e produção científica.
“É uma linha de pesquisa mais baseada na prática”, explica Campesato. “Entendemos que o conhecimento pode ser produzido de outras maneiras, não apenas por meio da reflexão crítica, como é feito academicamente, mas também por meio de ações, metodologias e propostas que movem os sentidos, como o olhar e a escuta”, complementa Bonafé. Neste ano, elas publicaram um artigo científico na revista Unlikely – Journal for Creative Arts, sobre a metodologia aplicada em uma pesquisa artística feita durante a pandemia de Covid-19.
Terra de contrastes
A dupla frequentou entre 2023 e os primeiros meses deste ano a região central da cidade, escolhida como objeto de estudo por sua ambiguidade. O local é, ao mesmo tempo, culturalmente rico, em razão de espaços vinculados à arte como a Sala São Paulo, a Emesp, o Museu da Língua Portuguesa e o Teatro de Contêiner, e repleto de estigmas por conta dos usuários de drogas que circulam por ali. “É um território onde a escuta está sempre em disputa: quem é ouvido ali e quem é silenciado? Quem tem direito à palavra e quem tem direito à escuta? Quais vozes são ignoradas e quais são valorizadas?”, questiona Bonafé.
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Para a exposição na USP, além da instalação com as caixas de som, realizada em parceria com o artista André Damião, as pesquisadoras produziram vídeos mostrando “o dentro e o fora” do território da Cracolândia. Os dois termos – dentro e fora – refletem a contradição intrínseca da região e contrapõem os espaços culturais institucionalizados à rua onde perambulam os usuários de drogas, explicam as pesquisadoras. Para quem está fora o espaço interno é distante e inalcançável.
Com a ajuda de Ivanise Rocha, dona do bar da Nice, situado na Cracolândia, que deu orientações para Campesato e Bonafé, e Aline Cristina Rodrigues, conhecida como Mc Docinho, elas tiveram contato com artistas e outros frequentadores da Cracolândia. As duas auxiliaram as musicistas a revelar as múltiplas realidades das ruas da região em um documentário, À escuta do território, que ocupou uma das salas da exposição.
Mc Docinho também foi protagonista de uma das instalações audiovisuais em que atuava como a blogueirinha da Cracolândia. No vídeo, ela anda pelas ruas e muitas pessoas passam para conversar e abraçá-la. “Não houve preparação, apenas a seguimos e ela foi nos guiando, contando coisas do cotidiano e da realidade local”, lembra Campesato.
Outras duas instalações mostram o encontro de artistas locais com profissionais: a cantora Laurah Cruz, que escolheu a música Confesso, de Ana Carolina, para gravar com músicos da Emesp no espaço do Teatro de Contêiner, situado na rua dos Gusmões, na região da Cracolância, e a atriz Danee Amorim, que apresentou uma performance da obra Tempestade, de William Shakespeare, no mesmo local. “São trabalhos potentes que puderam ser vistos pelos frequentadores da Cracolândia”, comenta Bonafé.
Além dos encontros, as pesquisadoras também gravaram o percurso que frequentadores da região realizam entre a Sala São Paulo e a Estação da Luz, importante hub ferroviário da capital, na mesma região. Dois músicos da Emesp fizeram o caminho, um por dentro do boulevard Maestro João Carlos Martins, uma passarela segregada que liga a sala de concertos à estação de trem, inaugurada em 2022, tocando clarinete, e outro pelo lado de fora, tocando fagote pela rua Mauá.
“Muitos elementos de dentro e de fora moldaram a forma como eles tocavam. O clarinetista se sentiu em um ambiente mais acolhedor e protegido e demorou mais tempo para chegar ao destino, enquanto a fagotista chegou mais rápido”, aponta Bonafé.
As tensões entre as duas realidades tão distantes também é percebida nas mensagens em formato de lambe-lambe do artista local e poeta Átila Fragozo, exibidas em uma das paredes do espaço da exposição. “Cão que Lattes não morde” e “Os acadêmicos Lattes, mas o fluxo não para!”, ambas em referência ao currículo Lattes, demonstram a distância entre a vida no fluxo e a vida universitária.
O momento de maior tensão da exposição ficou por conta de instalação feita em parceria com o pesquisador e artista Fernando Iazzetta, onde se ouvem apenas os sons do fluxo de usuários de drogas que se reúnem no trecho entre as ruas Vitória e dos Gusmões. “É como se fosse uma grande feira”, comenta Campesato. Mas, ao invés de frutas, verduras e legumes, são vendidos drogas e outros itens.
“Foi o último lugar onde gravamos, e só captamos o áudio. Essa decisão foi construída ao longo do trabalho e demandou tempo, conexão com as pessoas. Não é simplesmente chegar lá e atravessar as ruas”, afirma Bonafé. “O problema não é só a dependência química, aquela população sofre com pobreza, miséria, violência, falta de banheiro, de moradia, de tudo. Mas é também um lugar de afetos. As pessoas criam vínculos entre elas e com o espaço”, reflete.