Começa a se compreender agora por que a maior parte das pessoas com as formas mais graves de asma, com crises quase diárias de falta de ar intensas a ponto de impedirem uma caminhada rápida pela sala ou de apanhar um objeto caído no chão, não melhora nem com o tratamento mais potente disponível hoje em dia. Estudos recentes conduzidos por duas equipes da Universidade de São Paulo (USP) indicam que, nesses casos, a estrutura de todo o sistema respiratório – tanto das vias aéreas, os dutos pelos quais passa o ar, quanto dos alvéolos, as bolsas microscópicas que formam os pulmões – se encontra alterada. Nessas situações graves, que representam cerca de 5% dos casos de asma, tanto as vias aéreas como os alvéolos se apresentam mais enrijecidos e espessos do que o normal. Essas alterações, acreditam os pesquisadores, são consequência de inflamações persistentes no sistema respiratório ocorridas muito cedo na vida, provavelmente na infância.
Os grupos do pneumologista Rafael Stelmach e da patologista Thais Mauad, ambos da Faculdade de Medicina da USP, estão chegando a essa conclusão depois de analisar em detalhe o sistema respiratório de dois grupos de pessoas. O primeiro era formado por aquelas com asma grave para as quais a medicação não surtia o efeito desejado de manter a doença sob controle. E o segundo, por pessoas que haviam morrido asfixiadas em consequência da asma. Raras no mundo, essas mortes ainda são frequentes no Brasil, onde três pessoas em cada grupo de 200 mil morrem por sufocamento decorrente de crises de asma. Essa taxa de mortalidade só começou a diminuir no país na última década, depois que se tornou obrigatória a distribuição gratuita de medicamentos anti-inflamatórios contra asma pelo sistema público de saúde. Mesmo assim, entre 1998 e 2009 os índices de mortalidade caíram apenas nas regiões mais ricas. Levantamento recente feito pela equipe do pneumologista Álvaro Cruz, da Universidade Federal da Bahia, indica que as mortes por asma nesse período aumentaram nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.
Dose máxima
Em São Paulo, Stelmach iniciou há sete anos uma investigação minuciosa das características do sistema respiratório das pessoas com asma grave quando notou que uma parte considerável dos 2.500 pacientes atendidos no serviço de pneumologia do Instituto do Coração (InCor) da USP não melhorava nem com as doses máximas de medicação mais usada contra a asma. Esse tratamento em geral consiste de uma associação de potentes anti-inflamatórios hormonais, os corticoides, e broncodilatadores de ação prolongada, que aliviam a asfixia ao relaxar a musculatura ao redor dos canais das vias respiratórias. Considerada de alto custo, essa combinação de medicamento custa cerca de R$ 100 por mês, um valor proibitivo para uma população como a brasileira, em que metade dos trabalhadores tem renda mensal de até R$ 650. “Queríamos descobrir por que a asma dessas pessoas não ficava sob controle mesmo quando elas eram tratadas com o que há de mais eficiente”, conta Stelmach.
Ele e sua equipe decidiram, então, selecionar um grupo de 74 pessoas com asma grave e oferecer-lhes o melhor tratamento possível por 12 semanas, antes de repetir uma extensa bateria de exames para verificar se algo havia mudado com a terapia. Além de fornecer a medicação, os médicos acompanhavam de perto os participantes. Quem estava sob tratamento passava por consultas quinzenais em que era submetido a testes para avaliar não apenas se estava consumindo os medicamentos do modo correto, mas também se os havia tomado na dose indicada. Ao final da terapia, a pneumologista Regina de Carvalho-Pinto constatou que, mesmo com o tratamento em dose máxima, dois em cada três participantes não haviam melhorado e continuavam a apresentar sintomas quase diários de asma.
Ao comparar algumas características – como o tempo de doença, o grau de alergia, a capacidade respiratória e o nível de inflamação no sistema respiratório – de cada grupo, os pesquisadores encontraram apenas uma diferença significativa. Quem não havia melhorado continuava a apresentar uma capacidade respiratória muito inferior à de quem havia reagido à terapia como o esperado. Segundo Stelmach, 30% dessas pessoas tinham capacidade respiratória semelhante à de quem fumou um maço de cigarros por 20 anos e desenvolveu alterações irreversíveis nas vias aéreas. Os estudos indicam que, aos 45 anos de idade, quem tem asma grave apresenta apenas metade da capacidade respiratória de uma pessoa saudável. Isso é o equivalente a dispor de apenas um dos pulmões para respirar. “Essa alteração funcional pode acometer todo o sistema respiratório, o que inclui os brônquios e os alvéolos”, conta Stelmach.
Brônquios enrijecidos
Biópsias feitas em uma região específica dos brônquios dos participantes do estudo mostraram que, nos casos mais resistentes à ação dos medicamentos, a musculatura que forma a parede dos brônquios é mais espessa que o normal, o que pode favorecer a contração mais intensa durante as crises de asma, em geral disparadas por agentes alérgicos ou infecciosos. Além de mais espessa, a parede dos brônquios parecem estar mais enrijecidas. O imunologista Diogenes Seraphim Ferreira, integrante da equipe de Thais Mauad, que colabora com o grupo de Stelmach, identificou nos brônquios das pessoas que não apresentaram melhora níveis mais elevados de um dos vários tipos de colágeno. Essa proteína se organiza em longas cadeias que conferem resistência e rigidez aos tecidos. “O aumento da musculatura dos brônquios e dos níveis de colágeno são sinal de alteração da estrutura, provavelmente em consequência de uma inflamação de longo prazo”, conta Ferreira. “Os brônquios se tornam mais rígidos”, diz o imunologista, que apresentou esses dados em maio deste ano na conferência internacional da Sociedade Torácica Americana, em Filadélfia, Estados Unidos.
Segundo Stelmach, alguns marcadores funcionais sugerem que a alteração estrutural que viram nos brônquios chega até as partes mais periféricas do sistema respiratório, próximo aos alvéolos pulmonares. “Somados, esses resultados indicam que as pessoas que não melhoram com o tratamento ou têm a doença desde criança, ou apresentam uma forma de asma muito mais grave do que os demais asmáticos”, diz.
A inflamação e as alterações estruturais observadas agora nos casos de asma grave refratária ao tratamento haviam sido identificadas anteriormente pelos patologistas Thais Mauad, Marisa Dolhnikoff e Paulo Saldiva também no sistema respiratório de pessoas mortas por asfixia durante uma crise de asma, a chamada asma fatal. Embora a gravidade dessas duas situações possa ser distinta, as informações reveladas por uma complementam a da outra. A morte por asma é o desfecho mais extremo do problema, mas não é possível saber se a doença dessas pessoas era mais grave do que a daquelas refratárias ao tratamento.
Ilustração: Pedro Hamdam Infográfico: Ana Paula CamposDesde 1998, Thais, Marisa e Saldiva estudam o que há de errado no sistema respiratório de cerca de 130 pessoas que morreram com asma na cidade de São Paulo e passaram por autópsia no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital, para onde são encaminhados os casos de morte natural sem causa determinada. Em cada autópsia, os pesquisadores coletaram pequenas amostras de 30 a 40 áreas diferentes do sistema respiratório. Analisando esse material, eles constataram que o sistema respiratório das pessoas que morreram com asma apresentava uma inflamação importante disseminada, que atingia da mucosa nasal até as regiões mais profundas e distantes dos pulmões, passando pelos canais (brônquios e bronquíolos) de diferentes calibres.
Nas camadas mais internas das paredes dos brônquios e bronquíolos, as fibras elásticas se encontravam rompidas. Além disso, a musculatura era cerca de 50% mais espessa que o normal (ver Pesquisa FAPESP nº 165). Mais recentemente Thais colaborou com Alan James, da Universidade da Austrália Ocidental, em um estudo que revelou diferenças na musculatura das vias aéreas de pessoas com asma fatal e asma não fatal. Publicado em 2012 no American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, o trabalho mostrou que em ambos os casos o volume de cada célula muscular era maior – elas sofreram hipertrofia. Além de maiores, as células musculares de quem morreu com asma também existem em número bem maior (hiperplasia). “Como essas alterações ocorreram independentemente do tempo de duração da asma, acredita-se que elas comecem muito cedo na vida”, diz Thais.
Essas mudanças, porém, não são as únicas. Thais e colegas canadenses e australianos constataram que na parede dos brônquios, uma rede de canais cada vez mais estreitos que conduzem o ar da traqueia aos pulmões, há mais glândulas produtoras de muco e que essas glândulas apresentam maior capacidade de contração, segundo artigo publicado na revista Thorax. “Nas vias mais estreitas, o muco pode se acumular e formar um tampão que impede completamente a passagem de ar”, explica Ferreira. “A falta de ar que essas pessoas sentem causa uma sensação de quase morte, que não pode ser compreendida por quem nunca sofreu o problema”, conta.
Nos brônquios das pessoas com asma também há mais vasos sanguíneos. Thais e seus colaboradores encontraram ao redor desses vasos mais células do sistema imune associadas à inflamação. De acordo com a patologista, essas células liberam compostos que podem alterar a capacidade de contração da musculatura dos brônquios e contribuir para a falta de ar na asma grave.
À medida que se somam os indícios de que podem começar muito cedo na vida essas alterações no sistema respiratório – é o chamado remodelamento, no jargão médico –, o foco de atenção deixa de ser apenas o tratamento e passa a abranger também a prevenção. “Cada vez mais se torna evidente que o importante é descobrir a janela de tempo em que é possível agir para tentar evitar as alterações que levam ao remodelamento”, afirma Thais. Caso se determine em qual fase da infância as alterações começam, os pediatras poderiam iniciar o rastreamento de crianças com carga genética que favorece o desenvolvimento da asma e os pais a tentar reduzir a exposição dos filhos a fatores ambientais que aumentam o risco de asma, como infecções respiratórias por vírus. Thais lembra, porém, que “evitar completamente a exposição a esses fatores ambientais é muito difícil”.
Artigos científicos
CARVALHO-PINTO, R.M. et al. Clinical characteristics and possible phenotypes of an adult severe asthma population. Respiratory Medicine. v. 106, p. 47-56. 2012.
JAMES, A. L. et al. Airway Smooth Muscle Hypertrophy and Hyperplasia in Asthma. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. v. 185, n. 10, p. 1058-1064. 15 mai. 2012.
GREEN, F.H.Y. et al. Increased myoepithelial cells of bronchial submucosal glands in fatal asthma. Thorax. v. 65, p 32-3. 2010.
SHIANG, C. et al. Pulmonary periarterial inflammation in fatal asthma. Clinical and Experimental Allergy. v. 39, p. 1499-1507. 2009.