Os parâmetros de qualidade tradicionalmente utilizados para avaliar uma agência de fomento à pesquisa são a competência e a credibilidade de seus processos de avaliação, a rapidez do processo de tomada de decisões e de liberação de recursos e, finalmente, os custos operacionais da instituição. Com base nesses critérios, a excelência do desempenho da FAPESP sempre foi reconhecida ao longo de seus 40 anos de existência. O reconhecimento documentado mais expressivo talvez seja o artigo de Daniel Newlon, então diretor do Programa de Economia da National Science Foundation (NSF), que, ao escrever sobre O estado da arte no financiamento à pesquisa¹ começou por redefinir o título de seu trabalho para O estado da arte no financiamento à pesquisa está no Brasil. Segundo Newlon, com base nos indicadores tradicionais apontados acima, nenhuma agência de fomento, incluindo a própria NSF, “does a better job than FAPESP”.
Nos dias de hoje, porém, o papel a ser desempenhado por uma agência de fomento vai, necessariamente, além dessas formas tradicionais de atuação. Espera-se de uma agência moderna que demonstre capacidade de reconhecer desafios e oportunidades, gerando estímulos e induzindo atividades de pesquisa que respondam a necessidades estratégicas para o avanço do conhecimento, para o desenvolvimento tecnológico e para a formação em grande escala de recursos humanos altamente qualificados que possam atender às demandas do sistema de inovação do país. Da mesma forma, a complexidade e multidisciplinaridade da pesquisa na fronteira do conhecimento passam a exigir das agências uma atividade articuladora de iniciativas que não poderiam ser geradas espontaneamente pelos pesquisadores, individualmente, ou dentro de grupos confinados aos limites institucionais. Especialmente num país como o Brasil, cujo sistema de pesquisa tem potencialiis e carências, é necessário adotar uma atitude mais pró-ativa de atuação, necessariamente conjugada à manutenção do padrão de qualidade atingido. Mas essa forma de atuação requer grande agilidade e flexibilidade. Há necessidade de ousar e de arriscar ser imperfeito para buscar efeitos rápidos.
A catedral e o bazar é o título do livro de Raymond e Young² sobre o sistema operacional Linux, construído por hackers da Internet, em um processo caótico só nas aparências. Nessa obra, os autores comparam duas formas de organização. A de catedral, que busca a perfeição absoluta e tem vocação de persistência milenar, obedecendo a planejamentos detalhados. E a do bazar, por outro lado, uma ordem eminentemente vinculada a seu contexto espacial e temporal, que procura responder com eficiência e rapidez às urgências e, por isso mesmo, é imperfeita e sujeita a permanente atualização. Aqui, a perfeição está no processo e não no produto.
Esse talvez tenha sido o grande desafio enfrentado pela FAPESP nos últimos anos: conjugar, de forma tão harmônica quanto possível, sua dimensão catedral e sua face bazar. E a resposta, que marcou a última década de atividades da Fundação, foi o lançamento de uma série de programas que respondem a objetivos estratégicos, visando enfrentar e sanar deficiências flagrantes ou criar oportunidades.
A indução conceitual na transferência de conhecimento
Os programas especiais lançados nos anos 90 deveriam estimular conceitualmente pesquisas de natureza específica, sem estipular áreas de conhecimento prioritárias.
A primeira iniciativa nesse sentido foi a criação, em 1990, dos projetos temáticos, voltados para o desenvolvimento de pesquisas multidisciplinares em projetos ambiciosos, de longa duração, que envolvessem equipes mais numerosas com a participação de grupos de excelência. Essa foi a primeira quebra de paradigmas. A partir de 1994, uma série de outras iniciativas tiveram o objetivo de encorajar a adoção de mecanismos eficientes de transferência de conhecimento do sistema de pesquisa para a sociedade, tanto para o setor público como para o privado. A característica comum entre elas é a preocupação de articular a oferta de pesquisa com a demanda de conhecimento por parte da empresa ou órgão do governo.
Entre essas ações, a pioneira foi o Programa Parceria para a Inovação Tecnológica, o PITE. Pela primeira vez começaram a ser financiadas propostas em que era exigida a participação de empresas que compartilhassem os custos e assumissem os riscos do projeto. O enunciado simples desse conceito visa documentar o real interesse do setor privado na apropriação dos resultados da pesquisa.
A mais inovadora, entretanto, foi o Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas, o PIPE, que, ao financiar projetos voltados para a inovação no ambiente empresarial, rompeu paradigmas vigentes no sistema de pesquisa nacional. O PIPE trata diretamente do principal desafio de política científica e tecnológica do país: a expansão dos limites do sistema de pesquisa para além das fronteiras do ambiente acadêmico ou dos institutos oficiais de pesquisa.
A transferência de conhecimento para setor público foi estimulada por dois programas, o de Pesquisa em Políticas Públicas e o de Ensino Público. Nos dois casos são financiados projetos cujos resultados possam influenciar a formulação de políticas públicas de relevância social. Do parceiro público – órgão de governo, escola pública – é exigido um compromisso com a execução do projeto e com sua implementação.
Finalmente, o financiamento em caráter experimental dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão, os CEPIDs – que conjugam pesquisa multidisciplinar, transferência de conhecimento para o setor público e privado, e atividades educacionais inovadoras – propõe um novo paradigma para a organização da pesquisa, funcionando como um corolário dessas iniciativas.
Presença articuladora
A iniciativa em genômica foi, sem dúvida, a que teve a maior repercussão nacional e internacional. O Programa Genoma conjugou excelência científica, busca de solução de problemas socioeconômicos e formação de recursos humanos altamente qualificados em uma área de importância estratégica para o país, o que exigiu da Fundação agilidade, eficiência, capacidade de se alimentar de idéias propostas pelas lideranças acadêmicas do Estado, competência na avaliação, credibilidade com a iniciativa privada e grande articulação com todo o sistema de pesquisa do Estado – universidades, públicas e privadas, institutos de pesquisa.Mais ainda, os projetos Genoma propiciaram à FAPESP buscar parcerias com organismos internacionais, entre eles o Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer e o Ministério da Agricultura dos Estados Unidos.
O indicador final de sucesso do programa é o aparecimento de um promissor sistema de pesquisa e desenvolvimento em Genética Molecular, sinalizado pela criação das empresas de base tecnológica Alellyx e Scylla.
De relevância comparável, o programa BIOTA-FAPESP, ambiciosa iniciativa que está inventariando, mapeando e estudando toda a biodiversidade do estado de São Paulo, também teve origem no diálogo permanente da comunidade científica com a instituição. Não há precedentes internacionais de uma ação concertada entre mais de 400 pesquisadores doutores articulados por esse verdadeiro instituto virtual da biodiversidade, aderindo ao mesmo protocolo de registro de informação e disponibilizando na Internet toda a informação obtida em suas pesquisas. O programa contribui para o avanço do conhecimento sobre uma das biodiversidades mais ricas do planeta e para a definição de políticas públicas relativas à conservação e uso sustentável de nosso patrimônio ecológico. Em 1999, o Biota recebeu o prêmio Henry Ford de Conservação Ambiental na categoria Iniciativa do Ano em Conservação.
Escapando à dicotomia: demanda induzida x espontânea
A criação de cada um desses programas representou novos modelos de atuação e um processo de aprendizagem para todos os atores envolvidos – a comunidade de pesquisadores, as instituições, as empresas, o poder publico e a própria FAPESP. Finalmente devemos refletir sobre os fatores que têm viabilizado essa trajetória institucional.
Um traço marcante da atuação da FAPESP ao longo de seus 40 anos de atividades é o compromisso inarredável com o processo conhecido como avaliação pelos pares. Segundo essa sistemática, as decisões sobre o financiamento se baseiam em pareceres de assessores ad hoc, especialistas na área de conhecimento específica em que se enquadram os projetos. Muito embora essa mesma sistemática seja adotada pelas mais prestigiosas agências nacionais e internacionais, na FAPESP ela assume características singulares e seu impacto sobre a instituição vai muito além dos processos de avaliação. Isso porque o processo é coordenado por comissões formadas por pesquisadores ativos, lideranças em suas respectivas áreas de atuação, que definem a escolhas dos pareceristas ad hoc e que, de posse desses pareceres, os transformam em recomendações para a decisão.
Essas comissões, ao mesmo tempo em que garantem a qualidade do processo de avaliação pela escolha dos pareceristas e pela análise de seus pareceres, constituem-se em uma interface muito estreita entre a instituição e a comunidade de pesquisa do Estado. A presença forte e contínua dessas lideranças constitui-se, sem dúvida, em fator decisivo para a qualidade da atuação da agência, que procura se manter em permanente sintonia com os anseios e preocupações da comunidade. Trata-se de uma presença inspiradora que distingue a FAPESP entre as instituições congêneres e dá à Fundação uma vantagem competitiva da qual apenas as agências regionais de fomento podem se beneficiar.
A presença desse quadro de assessores, pesquisadores ativos, tem sido responsável não somente pela manutenção do padrão catedral, mas pelo permanente aperfeiçoamento da instituição, pela geração de novos programas, em suma, pela face bazar, que busca sintonia com as expectativas da sociedade que a financia. Nenhum dos programas lançados pela FAPESP teria sido concebido ou implementado sem essa contribuição e todos eles tiveram a decisiva participação dessa equipe – um dos grandes fatores de sucesso da Fundação. Poucas agências de fomento terão tido uma influência tão constante e intensa da comunidade científica, participando em todas as instâncias da ação institucional.
¹Daniel Newlon, The state of the art and research funding, World Bank Discussion Papers, 325, 1996.
²Eric S. Raymond and Bob Young, The cathedral and the bazaar, Musings on Linux and Open Source by an Accidental Revolutionary, O’Reilly and Associates, 2001.
José Fernando Perez é diretor científico da FAPESP
Republicar