Ronaldo de Souza e Dimitri Gadotti, astrônomos da Universidade de São Paulo (USP), dispuseram-se nos últimos cinco anos a investigar como e quando se formaram as galáxias. Hoje não têm todas as respostas, claro, mas conseguem explicar melhor a formação e o desenvolvimento de cerca de um terço do 1 bilhão de galáxias existentes no Universo. A observação de quase uma centena desses aglomerados de estrelas, aliada à perspicácia de recorrer a um antigo teorema da mecânica clássica, permitiu aos dois astrônomos elaborar um programa de computador que calcula a idade e as dimensões de estruturas peculiares de galáxias similares à Via Láctea, que abriga o Sistema Solar. Souza e Gadotti constataram que essas estruturas com a forma aproximada de retângulos – ou barras – podem ser relativamente recentes ou, nos casos extremos, quase tão antigas quanto as próprias galáxias chamadas de barradas. São as barras, como eles verificaram, que alimentam a região central dessas galáxias com poeira e gás que formarão novas estrelas. O modelo matemático que criaram está ajudando a reclassificar até mesmo outros tipos de galáxias.
As galáxias barradas são similares à Via Láctea, classificada como galáxia espiral, porque também apresentam centenas de milhões de estrelas na região central em forma de esfera – o núcleo – e outras centenas de milhões dispersas em um fino disco de gás e poeira semelhante a um redemoinho cósmico. Uma característica das barradas é que, naquela faixa luminosa em forma de retângulo, a densidade de estrelas é maior que no disco, mas inferior à do núcleo, também chamado de bojo.
Uma série de estudos teóricos atribuía às barras o papel de fermento galáctico. Formadas em regiões de maior concentração de estrelas no disco, essas estruturas crescem como um pão no forno, mas muito lentamente – em até bilhões de anos. À medida que se tornam mais espessas que o disco, as barras alimentam o bojo das galáxias com poeira e gás, matérias-primas para a produção de estrelas, contribuindo para o acúmulo de matéria no núcleo. Mas esse era um panorama construído a partir de simulações em computador. Faltavam dados de observação direta para confirmar se o comportamento do Cosmo era mesmo esse. “Cinco anos atrás, quase nada se sabia sobre a idade, as dimensões e a evolução das barras,” comenta Souza, coordenador dessa linha de estudos que integra um projeto temático sobre a evolução de galáxias, conduzido por Sueli Viegas, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP.
Os primeiros sinais de que o modelo estava certo surgiram em 2001. Em parceria com a astrônoma Sandra dos Anjos, também do IAG, Gadotti analisou imagens de 257 galáxias espirais. Constatou que realmente há uma concentração maior de estrelas jovens no bojo das galáxias barradas – como a NGC 4314 à direita – do que no núcleo daquelas sem barra. Era um indício de que as barras alimentam a região central dessas galáxias, uma vez que as estrelas em geral se formam em regiões distantes dali, no disco.
Medidor de galáxias
Com o auxílio de um telescópio no hemisfério Norte e de outro no hemisfério Sul, os astrônomos da USP observaram as características de 14 galáxias que aparecem no céu próximas à projeção da linha do Equador, o chamado Equador Celeste. Ao longo de dez noites de 1999, 2000 e 2002, Souza e Gadotti registraram em pontos do disco, da barra e do bojo de cada galáxia a média das velocidades com que as estrelas se deslocam, aproximando-se ou se afastando do observador em Terra – medida conhecida como dispersão de velocidades. Descobriram que, no disco, as estrelas se movimentam a velocidades que, em média, variam de 5 a 20 quilômetros por segundo (km/s), enquanto esses valores são próximos a 100 km/s no bojo.
Foram essas medidas que permitiram aos pesquisadores estimar a idade das barras. “Identificamos barras bastante jovens, formadas há 1 bilhão de anos, e outras mais evoluídas, quase tão antigas quanto as próprias galáxias, formadas cerca de 10 bilhões de anos atrás,” afirma Gadotti, atualmente no laboratório da astrônoma grega Lia Athanassoula, no Observatório Astronômico de Marselha-Provença, na França. Isolados, porém, esses dados eram insuficientes para determinar a espessura e o tempo de formação dessas estruturas.
Para definir a espessura das barras, os astrônomos recorreram a um antigo teorema da mecânica clássica – o Teorema de Virial, proposto em 1870 pelo físico alemão Rudolf Clausius -, por meio do qual associaram a dispersão das velocidades das estrelas à massa das diferentes regiões das galáxias. Feitos os cálculos, concluíram: a formação das barras dura de 1 a 2 bilhões de anos, quando elas atingem sua espessura máxima, correspondente a duas ou três vezes à do disco. Em uma galáxia barrada com a dimensão da Via Láctea, a espessura do disco seria de cerca de 9,5 quatrilhões de quilômetros e a da barra, de 19 a 27 quatrilhões de quilômetros – o tripulante de uma nave capaz de viajar a velocidades próximas à da luz levaria entre 19 mil e 27 mil anos para percorrer a espessura da barra. Também observaram que essas barras podem desaparecer e depois ressurgir, num processo cíclico que alimenta continuamente o bojo da galáxia.
Novas formas
Outro achado surpreendente: duas galáxias com uma barra bastante desenvolvida, mas sem o disco que a teria originado – uma estrutura inusitada. Uma avaliação mais detalhada revelou que, na realidade, a região interna do disco havia desaparecido, restando apenas seu resquício: um anel que envolvia a barra e o bojo. Ainda não existe uma explicação consensual para a ausência de disco. Em um artigo publicado no Astrophysical Journal em 2003, Souza e Gadotti propuseram duas possibilidades: ou essas galáxias são exemplos extremos em que a formação da barra consumiu quase todo o disco, ou estariam envoltas em um halo ligeiramente achatado de uma forma de matéria que não emitiria luz e, portanto, não poderia ser observada pelos telescópios – a chamada matéria escura. “Testamos o modelo da matéria escura e constatamos que o halo com forma elíptica pode induzir à formação das barras mesmo sem a existência do disco,” explica Gadotti.
O programa de computador que ele, Souza e Sandra criaram deve também facilitar a vida dos astrônomos que se dedicam à classificação das galáxias segundo sua forma. Esse método, criado pelo astrônomo Edwin Hubble em 1926, separa as galáxias em dez categorias, que incluem das esferóides, com bojo semelhante a uma esfera perfeita e sem disco, às elípticas e às espirais com ou sem barras. Chamado Budda (sigla em inglês para Análise da Decomposição Bojo/Disco), o programa usa equações desenvolvidas pela equipe do IAG para analisar 11 parâmetros relacionados à luminosidade e à geometria do disco e do bojo da galáxia – antes observavam-se só três parâmetros. No primeiro teste foram examinadas imagens de 51 galáxias observadas no Laboratório Nacional de Astrofísica, em Minas Gerais. E o Budda impressionou ao identificar estruturas ocultas – como discos que não podiam ser observados ou a existência de barras secundárias – e detectar incorreções na classificação de 15 galáxias. Estima-se que de 10% a 15% das galáxias estejam classificadas em categorias erradas.
Republicar