Na batalha sem fim que a humanidade trava com um dos maiores assassinos de todos os tempos, o Mycobacterium tuberculosis, a principal bactéria causadora da tuberculose, um grupo de pesquisadores brasileiros espera, em breve, fornecer um novo arsenal de armas químicas para endurecer os combates contra o microscópico inimigo, que anualmente ceifa a vida de 2 a 3 milhões de pessoas, a maioria absoluta em países pobres: drogas sintéticas especialmente desenhadas para explorar os pontos fracos do patógeno, matá-lo de forma mais rápida e menos tóxica ao homem, reduzindo o tempo de tratamento e seus efeitos colaterais. Uma molécula com aparente potencial para atingir esse conjunto de objetivos foi apresentada, discretamente, num artigo de duas páginas na edição de janeiro da revista científica britânica Chemical Communications, da Sociedade Real de Química da Grã-Bretanha.
Batizado informalmente de IQG 607, o composto metálico – um ferrocianeto associado à molécula da isoniazida (INH), droga que há 50 anos é o carro-chefe no tratamento contra a tuberculose – já foi patenteado no Brasil e está na fase final de testes pré-clínicos com camundongos. A molécula é mais um resultado promissor de um grupo de cientistas ligados à Rede Brasileira de Pesquisa e Combate à Tuberculose (Rede TB). Criada há três anos, tal iniciativa congrega cerca de 170 cientistas de 47 instituições de pesquisa de vários estados do país que estudam a doença, negligenciada pelos grandes laboratórios farmacêuticos por ser um problema de saúde típico dos pobres.
Embora ainda haja um percurso de anos pela frente até a candidata à droga antituberculose se mostrar realmente segura e eficiente, os resultados iniciais dos experimentos com a nova molécula são animadores. “Nos animais, ela mata não só a variedade comum do M. tuberculosis como também as principais linhagens mutadas da bactéria que se tornaram resistentes aos medicamentos”, afirma o bioquímico Diógenes Santiago Santos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), coordenador dos estudos com o IQG 607 e outros compostos contra o agente causador da tuberculose, também conhecido como bacilo de Koch. “Por ter se mostrado menos tóxica do que as drogas hoje disponíveis no mercado, talvez possa ser usada em dosagens mais elevadas do que as prescritas para a isoniazida e, assim, acelerar o processo de cura do paciente.” Para mostrar que a nova molécula tende a causar menos efeitos colaterais, Santos cita dados de um experimento feito em seu laboratório. Roedores que receberam diariamente uma elevada quantidade da nova droga (1 grama da molécula por quilo de peso) demoraram 20 dias para morrer. Já os que tomaram 250 miligramas de isoniazida, uma dose quatro vezes menor, morreram em apenas quatro horas.
Drogas seletivas e refinadas, que ataquem mais o bacilo e menos o homem, podem levar a uma redução considerável no tempo necessário para tratamento da tuberculose, hoje de seis meses, durante os quais quatro distintos medicamentos são ministrados aos pacientes. Atualmente, a terapia é demorada porque os remédios disponíveis, muito tóxicos, têm de ser administrados em pequenas doses. Dessa forma, com a sucessão de drogas dadas aos enfermos ao longo de meio ano, os médicos conseguem matar ou esterilizar as diversas linhagens de bactéria que porventura infectem os doentes sem lhes causar grande desconforto. Ainda assim, por um motivo ou outro, como os indesejados efeitos colaterais da quimioterapia (náuseas, vômitos e icterícia), uma parte não desprezível dos pacientes não completa o longo esquema de tratamento, preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Cerca de 15% das pessoas que procuram nossos serviços abandonam o tratamento”, diz Reynaldo Dietze, diretor do Núcleo de Doenças Infecciosas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Essas pessoas, mais os pacientes que não foram plenamente curados devido a erros de procedimentos terapêuticos, são as candidatas a ter recaídas e a desenvolver a tuberculose multirresistente, de difícil e caro tratamento. No Brasil, essa forma mais agressiva da doença – caracterizada pela resistência a pelos menos duas drogas antituberculose, em geral a isoniazida e a rifampicina – ainda é rara, respondendo por cerca de 1% dos 120 mil novos casos anuais da enfermidade. Mas, em outras partes do mundo, como nas ex-repúblicas soviéticas, já representa um grave e novo obstáculo para o controle da tuberculose. Depois de ter emitido sinais de que estava sob controle há algumas décadas, graças ao emprego de um coquetel de drogas baratas e capazes de curar 95% dos pacientes e à adoção maciça de uma vacina preventiva (a BCG), esse antigo mal redobrou seu fôlego com o surgimento da Aids, nos anos 1980.
“No Brasil e no exterior, muita gente achava que a tuberculose estava sob controle e não era mais necessário investir em pesquisa, mas essa ideia era um engano”, afirma Afranio Kritski, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), outro pesquisador da Rede TB. Presente hoje em um terço da humanidade, o M. tuberculosis, que é transmitido pelo ar e causa infecções sobretudo nos pulmões, formou uma dupla maligna com o vírus HIV. Normalmente, 90% das pessoas que carregam o bacilo em seu organismo nunca vão desenvolver a tuberculose, nem mesmo serão capazes de transmiti-la pelo ar. Mas indivíduos fragilizados, com um sistema de defesa imunológico debilitado, como os doentes de Aids, são presas fáceis para as infecções causadas pela bactéria. Os grandes campos de refugiados e os recentes movimentos de migração (forçada) de grandes contingentes humanos ao redor do globo também são apontados como causas do recrudescimento da tuberculose.
Em 1993, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a situação da doença era emergencial no mundo e instituiu a data de 24 de março como o Dia Internacional da Tuberculose, uma forma de chamar atenção para o problema. “É claro que o surgimento da Aids e as migrações em massa ajudaram a aumentar os casos de tuberculose no mundo”, afirma Antonio Ruffino Netto, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMUSP/RP), coordenador dos estudos epidemiológicos da Rede TB. “Mas não podemos esquecer que a presença do bacilo no organismo é necessária, mas não suficiente para provocar a doença. A causa mesmo da doença é a desigualdade social”. Locais fechados, pequenos e apertados, como campos de refugiados, prisões e mesmo favelas e cortiços superpovoados, representam ambientes propícios para a disseminação do bacilo, que infecta uma pessoa a cada segundo em alguma parte do planeta, 8 milhões de indivíduos por ano. Se, no final do século 19, a doença chegou a ser romantizada e até descrita como um mal que atingia inclusive os estratos mais elevados da sociedade, a tuberculose é hoje essencialmente vista como uma doença quase restrita às camadas mais humildes da população. Estima-se que 95% dos casos e 98% das mortes ocorram em países pobres. O Brasil é o único país das Américas a figurar na lista das 22 nações que concentram 80% das ocorrências de tuberculose no mundo. Oficialmente, a doença mata anualmente de 5 a 6 mil pessoas no Brasil, mas especialistas estimam que o número de óbitos deve chegar a 10 mil.
A ideia de alterar a fórmula da isoniazida – e, assim, criar uma molécula contra tuberculose – ganhou corpo depois que a ciência desvendou o mecanismo de ação dessa droga no final dos anos 1990. O fármaco interfere na síntese dos ácidos micólicos, uma das vias químicas responsáveis pela produção das paredes celulares do bacilo de Koch. Ao fazer isso, impede a formação plena dessa estrutura rígida, essencial para a proteção das células do patógeno. Dessa forma, a droga não deixa a bactéria se multiplicar, levando-a, por fim, à morte. Falando assim, de maneira resumida, o mecanismo de ação da isoniazida – o mais antigo e importante dos remédios que os pacientes tomam ao longo de seu tratamento – parece até simples. Mas, na verdade, trata-se de um processo complexo, que desencadeia uma série de reações químicas não só no patógeno que se quer matar como também em seu hospedeiro. “A isoniazida é metabolizada no fígado humano formando compostos como a hidrazina, que são tóxicos a esse órgão e ao sistema nervoso central”, afirma Santos. Daí as náuseas, vômitos e outros efeitos colaterais que incomodam os doentes durante o tratamento antituberculose. Além de intrincado, o mecanismo de ação da droga sobre o bacilo é indireto: para ter algum algum efeito terapêutico, a isoniazida deve ser ativada pela enzima catalase peroxidase, produzida por um gene presente na bactéria da tuberculose, o KatG. Se isso não ocorrer, o fármaco não funciona.
Mas, afinal, como todo esse conhecimento sobre o mecanismo de ação da isoniazida auxiliou os pesquisadores brasileiros na confecção da nova candidata à droga? A pista de que, por caminhos tortuosos, tal fármaco era capaz de matar a bactéria porque atuava sobre a via metabólica ligada à síntese dos ácidos micólicos, responsáveis pela formação da parede celular do patógeno, forneceu subsídios para os cientistas desenharem compostos capazes de chegar exatamente ao mesmo alvo – só que por uma trilha mais direta. Por um atalho químico que poderia ser mais eficiente no cerco ao bacilo e provocasse menos efeitos colaterais no homem. “Nosso objetivo era criar moléculas que atuassem sobre essa via metabólica, um dos pontos fracos da bactéria, mas que não precisassem ser ativadas pela enzima produzida pelo gene KatG e nem pelo sistema hepático humano”, explica o químico Ícaro de Souza Moreira, vice-reitor da Universidade Federal do Ceará (UFCE), que concebeu a estrutura do novo compostoferroso, cuja fórmula química é [Fe11(CN)5(INH)]3-. Tal pré-requisito se justifica: o KatG é um dos cinco genes do bacilo de Koch em que já foram detectadas mutações que tornam a isoniazida ineficaz contra a tuberculose. Alterações na composição do KatG parecem estar ligadas à metade dos casos em que a bactéria da tuberculose apresenta maior resistência à ação da isoniazida. Portanto, desenhar uma molécula antituberculose cuja ação independesse desse gene parecia ser um jeito de desenvolver uma droga com potencial para tratar os casos comuns – e também os mais graves – de tuberculose.
A estratégia de desenhar complexos químicos totalmente novos a partir da junção de compostos metálicos com a isoniazida se impôs desde o início das pesquisas, cerca de três anos atrás. “Os metais se combinam mais facilmente no meio celular”, comenta Santos. Com essa abordagem, o cearense Moreira, o químico inorgânico do grupo, desenvolveu dez moléculas distintas. Algumas eram complexos que interagiam com o rutênio, outras com o cobalto e outras ainda com o ferro, como é o caso da molécula IQG 607. Por ser um metal mais em conta do que os demais, o ferro recebeu prioridade, já que a meta é desenvolver drogas eficazes e baratas contra a tuberculose. Por isso, os estudos com o IQG 607, um composto ferroso, estão em estágio mais adiantado. “Mas, além do IQG 607, vimos que outras cinco moléculas matam o bacilo de Koch”, diz Moreira. Para encontrar a molécula ideal, que melhor se encaixaria nas vias metabólicas mais vulneráveis do bacilo, os pesquisadores lançaram mão de recursos sofisticados. No Laboratório de Sistemas Biomoleculares da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São José do Rio Preto, o físico Walter Filgueira de Azevedo Jr. simulou, em três dimensões, como seria o ajuste dos compostos metálicos – não só do IQG 607, mas dos outros nove candidatos à droga – à enoil-redutase, enzima alvo da via química a ser atacada. “Assim, antes mesmo de ser feito qualquer teste in vitro, já tínhamos informações sobre quais compostos se encaixavam melhor ao sítio ativo da enzima”, explica Azevedo Jr. O IQG 607 foi um deles.
Tal molécula e os outros compostos metálicos em desenvolvimento não são a única esperança fornecida pela Rede TB. Em laboratório, cerca de mil extratos de plantas já foram testados contra a bactéria da tuberculose, dos quais 30 exibiram algum resultado interessante. Grupos de todas as regiões do país tentam desenvolver exames mais eficazes para a detecção da doença, vacinas e medicamentos contra a doença. Na busca desse objetivo comum, algumas iniciativas lançam mão, às vezes, de estratégias bastante singulares, numa diversidade de abordagens que, em vez de estimular a concorrência, promove a complementaridade dos esforços feitos no âmbito da Rede TB. Um grupo de pesquisadores chefiado pelo bioquímico Célio Lopes Silva, da FMUSP/RP, desenvolveu, por exemplo, uma vacina gênica, a partir do DNA do M. tuberculosis, que, em experimentos com animais, foi capaz de prevenir e curar a doença (veja Pesquisa FAPESP 81). Embora tenha sido concebida para pessoas com tuberculose, a vacina é agora alvo de testes clínicos em seres humanos que têm uma forma avançada de câncer de cabeça e pescoço e não respondem a nenhum outro tipo de tratamento. “Em seis meses, devemos ter os primeiros resultados dos experimentos”, afirma Silva, que também é o coordenador geral da Rede TB.
Caros, demorados, trabalhosos e de resultado imprevisível, os testes em seres humanos são a última prova de fogo pela qual todo e qualquer novo remédio ou vacina tem de passar a fim de que sua comercialização seja aprovada. Primeiro, são avaliados a toxicidade e os efeitos colaterais. Depois, qual a sua dose ideal. E, em seguida, sua eficiência. Com as candidatas a drogas contra tuberculose, não é diferente. Santos estima que todas as fases de testes clínicos com a molécula IQG 607 deverão consumir, ao longo de dois ou três anos de experimentos com pelo menos 2 mil pessoas, uma quantia equivalente a US$ 40 milhões. Uma quantia que, se nunca for obtida, fará com que o possível remédio contra a tuberculose tenha o mesmo fim de tantas outras promissoras moléculas: informação interessante que nunca saiu das páginas de um artigo científico. “A maioria dos grandes laboratórios internacionais não investe em drogas para doença de pobres”, constata Santos.
“E a indústria farmacêutica brasileira não têm o hábito nem a verba necessária para financiar pesquisas clínicas.”No entanto, ele não desanima e, no momento, tenta convencer um laboratório britânico a bancar os testes clínicos com o IQG 607. Outra saída é batalhar por financiamento de governos e entidades filantrópicas. No mês passado, a Fundação Bill&Melinda Gates, criada pelo bilionário dono da Microsoft, a maior empresa de software do mundo, doou cerca de US$ 83 milhões para uma instituição norte-americana sem fins lucrativos que pesquisa novas vacinas contra a tuberculose, The Aeras Global TB Vaccine Foundation. Tal entidade acaba de iniciar os testes em seres humanos de uma nova versão, geneticamente modificada, da BCG.
Vítimas famosas do bacilo
Descrita provavelmente pela primeira vez em velhos textos indianos, a tuberculose pulmonar foi chamada de tísica pelos antigos gregos, desde os tempos de Hipócrates, o pai da Medicina, há mais de 2 mil anos. A palavra quer dizer enfraquecimento ou desgaste, uma clara alusão a um dos sintomas mais visíveis da doença numa época em que ainda não havia tratamento efetivo: o consumo progressivo da saúde de suas vítimas. Desde então, a tuberculose recebeu outros nomes – peste branca, consumição, capitã de todas as mortes. Ao longo dos séculos, fez 100 milhões de vítimas, uma estimativa que a torna uma das doenças mais letais de todos os tempos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que, se a escalada atual da doença não for detida, outros 100 milhões de indivíduos perecerão nas próximos duas décadas – na maioria gente pobre, em idade produtiva (entre 15 e 50 anos), que poderia ser curada, em grande parte, com os remédios já disponíveis.
Um traço particular e paradoxal da tuberculose – o nome contemporâneo da moléstia deriva do tipo de lesão que a bactéria Mycobacterium tuberculosis causa nos pulmões, caracterizada por nódulos ou tubérculos de matéria cinza morta – é sua frequente romantização, às vezes glamorização, em determinadas épocas. Principal musa do Renascimento, imortalizada em pinturas famosas do florentino Sandro Botticelli, como o Nascimento de Vênus, e num retrato póstumo feito por Piero de Cosimo, Simonetta Vespucci morreu tísica, aos 22 anos, em 1476. Sua palidez e delicadeza, decorrentes provavelmente da ação do bacilo, eram vistas como traços ideais da beleza feminina. A tuberculose parece ter exercido um mórbido fascínio entre artistas e intelectuais, especialmente entre escritores, que, quando não sucumbiam à doença, faziam seus personagens padecerem de tísica.
Apesar de a causa da tuberculose ter sido determinada em 1882 pelo bacteriologista alemão Robert Koch, a medicina demorou décadas para encontrar tratamentos mais eficazes do que receitar temporadas de ar fresco e limpo nos sanatórios. Entre os doentes que feneciam nesse tempo, havia uma leva de artistas, cuja condição financeira nem sempre era das melhores. Entre 1848 e 1855, as irmãs e romancistas inglesas Charlotte, Emily e Anne Brontë – a primeira com menos de 40 anos e as duas últimas por volta dos 30 – morreram de tuberculose. Na música, uma das vítimas mais famosas foi o compositor polonês Frédéric Chopin, morto em 1849, antes de completar 40 anos. O bacilo de Koch também colocou um ponto final precocemente na carreira literária de Franz Kafka: o escritor tcheco se foi com pouco mais de 40 anos, em 1924. Numa época em que já havia drogas contra a doença, a atriz britânica Vivien Leigh morreu de tuberculose em 1967, com 53 anos. No Brasil, não faltam exemplos de ilustres vítimas fatais da tuberculose: o poeta Castro Alves faleceu aos 24 anos em 1871 e o músico Noel Rosa, aos 26, em 1937. Sem falar em Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, José de Alencar…
O Projeto
Novas Estratégias para Controle da Tuberculose no Brasil; Coordenador
Diógenes Santiago Santos – PUC-RS; Investimento R$ 2.500.000,00 (CNPq, Ministério da Saúde e Unesco)