Quando a pandemia começou, fiquei um mês em casa, em Boston [Estados Unidos], sem poder trabalhar. Estava desesperada porque, como sou imunologista de doenças infecciosas e pesquiso sobre malária, acreditava que poderia ajudar a combater a pandemia. Mas naquele momento não podia fazer nada porque os laboratórios da Escola de Medicina de Harvard Medical, onde sou pesquisadora-visitante, foram fechados. Minha filha, de 8 anos, brincava que era cientista e tentava descobrir a cura da Covid-19. Aquilo era tudo o que eu queria fazer. Quando finalmente saiu a autorização para que eu pudesse fazer pesquisas sobre o Sars-Cov-2, no dia 15 de abril de 2020, minha filha chorou. Não de tristeza, mas de alegria. Ela me disse: “Mãe, eu sei o tanto que isso é importante para você!”.
Quando o lockdown começou, eu tinha acabado de voltar do Brasil, em março. A cada quatro meses viajo a Belo Horizonte porque sou pesquisadora do Instituto René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz]. Antes da pandemia, a linha principal de pesquisa do nosso Laboratório de Imunopatologia era a malária e eu conduzia um estudo na região amazônica, sua área endêmica. Dias antes da quarentena, outros colegas e eu passamos três semanas na cidade de Porto Velho, em Rondônia, fazendo coletas de amostras de sangue de pacientes infectados.
Trabalhamos principalmente com Plasmodium vivax, o protozoário causador da malária mais comum no Brasil e que não se consegue cultivar em laboratório. Tudo tem que ser obtido diretamente do paciente infectado: todo o processamento da amostra tem que ser feito e analisado por lá, tanto na Fiocruz Rondônia quanto no Centro de Pesquisa em Medicina Tropical [Cepem], prédios que ficam lado a lado. Com a chegada da pandemia, a pesquisa parou totalmente. O Cepem virou uma referência em estudos sobre Covid-19 e eles pararam de receber pacientes com malária. Além disso, como eu estava nos Estados Unidos, fiquei um ano e meio sem poder vir ao Brasil. Os voos para os quais eu já tinha passagens compradas foram todos cancelados.
Tanto os laboratórios da Fiocruz quanto o da física e médica Judy Lieberman, onde trabalho em Harvard, paralisaram suas pesquisas para focar na pandemia. Para mim foi fácil fazer essa transição da malária para a Covid-19 e passei a estudar o Sars-Cov-2 nos dois laboratórios. No começo, eu não conseguia encontrar um aluno que quisesse trabalhar com Covid-19 aqui nos Estados Unidos, porque as pessoas estavam com medo. Apenas eu e a portuguesa Ângela Crespo, pesquisadora em estágio de pós-doutorado, nos dispusemos a trabalhar com o novo vírus. Passamos a trabalhar entre 18 e 20 horas por dia, todos os dias, durante seis meses. Depois, os pesquisadores foram vendo que mexer com as amostras não era esse pesadelo todo e hoje tenho mais pessoas interessadas em participar dos estudos do que consigo absorver.
Em Harvard, procuramos entender principalmente o mecanismo da tempestade de citocinas causada pela Covid-19. O que pode levar à gravidade da doença não é o vírus por si só, mas sua relação com o próprio sistema imune. É o que chamamos de imunopatologia. Percebemos que os monócitos, células do sistema imune inato, também estão infectados pelo Sars-Cov-2. Eles têm potencial de morrer por piroptose, quando ativam certos receptores do sistema imune inato que, em vez de morrer de forma silenciosa, explodem. Isso favorece a amplificação da resposta imune e nosso sistema entende como algo perigoso. É uma morte inflamatória dessas células, por isso em muitos casos de Covid-19 ocorre uma inflamação sistêmica que se espalha. Ao mesmo tempo que percebíamos isso, o biólogo Dario Zamboni, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP [Universidade de São Paulo], percebeu a mesma coisa e publicou os resultados primeiro.
Agora estamos com um trabalho em revisão pela revista Nature no qual sugerimos como funciona a infecção desses monócitos, já que eles não têm o famoso receptor ACE2, o mais clássico para a entrada do Sars-Cov-2, mostrando que é um mecanismo dependente de anticorpos. O artigo está publicado como preprint [sem revisão por pares] no repositório Research Square.
Com a Fiocruz, a pesquisa sobre Covid seguiu de forma remota. Eu já estava acostumada a trabalhar a distância com eles porque, antes da pandemia, estava havia dois anos nos Estados Unidos. No Brasil, seguimos a mesma linha de pesquisa que desenvolvo em Harvard, que envolve impedir o mecanismo da tempestade de citocinas. Estamos testando um medicamento que pode inibir a piroptose, o Dissulfiram, geralmente usado em casos de alcoolismo. O objetivo é impedir que a doença se agrave a ponto de a pessoa precisar ser internada em uma unidade de terapia intensiva. Conseguimos bons recursos para os estudos de Covid-19, tanto para o teste clínico como para bolsas de pós-doutorado, o que antes da pandemia era muito difícil de conseguir em Minas.
Em 2021 as pesquisas sobre malária no Brasil estão voltando a ser feitas. Em janeiro publicamos um artigo na Nature Immunology sugerindo que um tipo de linfócito T pouco estudado, conhecido como gama delta, é capaz de fagocitar, ou engolir, o parasita P. falciparum. Usamos dados coletados dos pacientes de Rondônia em 2019 e 2020. Em julho deste ano, finalmente pude retornar e fiquei um mês entre Belo Horizonte, São Paulo e Rondônia. Pelo que pudemos perceber em Porto Velho, o número de casos de malária está se elevando. Agora, me preocupa o pós-Covid e como ficará o cenário dessas doenças infecciosas. Elas precisam muito de apoio governamental para o controle de mosquitos e para um diagnóstico e tratamento rápidos. Mas acabaram ficando de lado por conta da pandemia.
Isso ocorre no mundo todo. Não é à toa que pesquisadores, organizações e instituições de fomento estão começando a pensar no cenário pós-Covid. A malária, a Aids e a tuberculose são as principais causas de morte por doenças infecciosas no mundo e os casos estão aumentando. Precisamos pensar também nas endemias, que são aquelas doenças que não desaparecem. Se os casos crescerem demais, pode surgir uma cepa mutante e a situação sair do controle. Se não cuidarmos dessas doenças endêmicas, elas podem se tornar epidêmicas. Esse é um dos problemas das doenças infecciosas.
Outro problema que me chama a atenção é o uso indiscriminado da cloroquina por pessoas com Covid-19, quando há evidências de que ela não combate essa doença. Como a cloroquina é um medicamento contra a malária, há o risco de que esse uso elevado cause uma resistência do parasita ao medicamento, algo que já acontece em outros países nos quais as pessoas contraem malária 100 vezes na vida e precisam tomar muitas vezes esse tipo de remédio. É preciso ficar atento a isso.
Enquanto eu estava em Rondônia, minha filha ficou em Belo Horizonte e pegou Covid-19. No começo da pandemia eu chegava em casa, onde moro com ela e com minha mãe, minhas companheiras de quarentena, e desabafava: “Esse vírus é um monstro!”. Porque a cada dia eu descobria uma coisa pior sobre os danos que ele causava. Então, quando soube que estava com a doença, ela chorava e dizia: “Eu peguei o monstro!”. Foi difícil, mas ela se recuperou bem.
Este mês, agosto, retornamos para os Estados Unidos. Por aqui, o clima é de normalidade. No laboratório, algumas pessoas tinham abandonado as máscaras, mas voltaram a usar por conta da variante delta. Eu nunca deixei de usar, mesmo vacinada com as duas doses, porque sei que ainda há o risco e não quero me infectar. Quanto mais a gente estuda, mais percebe que ele pode causar danos a todo o corpo. Ninguém sabe o que pode acontecer no longo prazo – hoje já há hospitais por aqui dedicados às síndromes pós-Covid.
Ainda não tenho coragem de ir a um cinema, com tudo fechado, ou a um show, com muita gente. No ano passado eu fazia happy hour de três horas com as minhas amigas, via Zoom, umas três vezes por semana. Montava uma mesa com vinho e antepastos e a conversa rolava solta, era a nossa terapia. Esses encontros virtuais me ajudaram a descansar a cabeça. Agora, com cuidado, usando máscara e higienizando as mãos, a vida aos poucos volta ao normal.
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